Para compreender o populismo, José Pedro Zúquete, politólogo e investigador principal no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, “mergulhou” na história da política portuguesa, concluindo que o fenómeno tem uma longa tradição no nosso país e até já foi utilizado por nomes improváveis. À VISÃO, o autor falou das suas conclusões sobre o tema, no recém-lançado Populismo: Lá Fora e Cá Dentro (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 270 págs., €10).
No seu livro diz que, durante a pesquisa, teve uma sensação de déjà-vu. O populismo não é, afinal, algo novo em Portugal?
Não é, não. Em Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett dizia que “o povo está são, nós é que somos corruptos, pensamos saber e tudo ignoramos”. Esta divisão entre a salubridade do povo e os desvarios das elites é algo muito presente, desde sempre, na literatura portuguesa mas também na política – a ideia central do populismo português, a de que a derradeira autoridade do Estado deve ser o povo, surgiu nos séculos XVIII e XIX. Quando estava a fazer a pesquisa para este livro, muitas vezes questionei-me se estaria a ver bem a data. Por exemplo, nas memórias de [Francisco José da] Rocha Martins sobre Sidónio Pais, o autor conta que, um dia, numa rua, um anti-Sidónio lhe disse “isto agora é tudo vosso!” e ele respondeu “não, isto agora é dos homens de bem!”.
O populismo tem a ambição utópica de eliminar a distância que existe entre o conceito de democracia ideal, em que o poder estaria nas mãos do povo, e a democracia como ela realmente é, em que o poder está nas mãos dos seus representantes
O fenómeno surge hoje muito associado ao Chega e a André Ventura. Significa que as estratégias e os códigos utilizados são, neste caso, mais imitação do que inovação?
Atualmente, os académicos costumam afirmar que o populismo em Portugal é algo novo, mas este livro propõe-se provar o contrário. Os populistas até podem não estar conscientes disto, mas não há dúvidas de que existe uma longa tradição de populismo na política portuguesa.
Defende que o conceito de populismo pode ser “escorregadio”. Como o descreveria?
De uma forma simples, diria que o populismo tem a ambição utópica de eliminar a distância que existe entre o conceito de democracia ideal, em que o poder estaria nas mãos do povo, e a democracia como ela realmente é, em que o poder está nas mãos dos seus representantes. Os populistas alegam que existem “corpos” – como poderes supranacionais, bancos centrais ou juízes, entre outros –, que fogem a esse controlo popular, e acusam as democracias liberais de, muitas vezes, contribuírem para que as sociedades sejam controladas por elites que defendem interesses particulares e não coletivos.
Mas quando os populistas chegam ao poder não são também as elites que passam a controlar o Estado?
As elites, como minorias organizadas, vão sempre existir – e só as elites substituem outras elites. Quando o populismo chega ao poder, isso significa que o poder passa a ser controlado por outras elites, mas, na perspetiva dos populistas, estas vão estar mais em sintonia com os interesses da nação e do povo.
O populista acredita, de facto, naquilo que defende ou é apenas um oportunista que usa esta estratégia para alcançar o poder?
Há vários casos. Pode existir uma componente inata, e outra construída. Mas aqui pergunto: isso será assim tão diferente dos outros políticos? Todos os políticos constroem uma personalidade pública…
Como se distingue, então, o populista do político comum que também fala ao povo?
Portugal teve muitos políticos populares, como Mário Soares, que, no entanto, não alimentavam esta divisão entre elites e povo. O populista adota sempre esse discurso e, depois, tem na base da sua ação política uma performance. E isso é feito de variadíssimas maneiras: o gesto, o discurso, os símbolos, o apelo às emoções… André Ventura é um mestre neste capítulo. O populista adota sempre uma postura antissistema e de contracorrente, rejeita as grandes narrativas hegemónicas da sociedade, venham elas dos partidos “tradicionais”, da Academia ou dos media… A luta é contra “o estado das coisas”.
Dá vários exemplos de populistas portugueses, desde D. Miguel até ao Chega de André Ventura. Entre os exemplos, surgem nomes menos óbvios, como Humberto Delgado, Francisco Sá Carneiro ou Francisco Louçã… Podemos pô-los no mesmo plano dos populistas atuais?
Este livro é contra o esquecimento e para confrontar as pessoas com aquelas que, um dia, foram as próprias palavras – acho isso saudável em democracia. Há, de facto, muitos políticos portugueses que foram populistas ou que, pelo menos, tiveram momentos populistas. Claro que há uma gradação de populismo, e nem todos abraçaram esta linha ao longo da carreira, mas o fio condutor está presente. Se dissermos, hoje, que Humberto Delgado foi um populista, dado o caráter depreciativo do termo, as pessoas ficam chocadas, mas ele apenas se tornou uma ameaça para o Estado Novo pelo seu populismo, pela capacidade de mobilizar as massas contra o regime. E não se coibia de falar de um “povo escravizado” às mãos de Salazar e das elites.
Portugal teve muitos políticos populares, como Mário Soares, que, no entanto, não alimentavam esta divisão entre elites e povo. O populista adota sempre esse discurso
Isso significa que o populismo e o populista (e a sua demagogia) deveriam ser vistos de forma menos negativa?
Na Grécia Antiga, “demagogia” significava, literalmente, a “liderança do dêmos [povo]”, e não tinha uma conotação negativa. O populista, ou o demagogo, era aquele que era capaz de incentivar o povo, as classes mais baixas, e que passou a ser visto como uma ameaça à paz social e ao statu quo. Ou seja: existe subjacente ao populismo um preconceito elitista de que o povo é impetuoso e imprevisível, o que até me permite concluir que, por vezes, criticar o populismo pode ser claramente um ato antidemocrático. O que é importante perceber é que existem várias gradações de populismo e que este fenómeno não leva, necessariamente, a uma ditadura. Em alguns contextos é até importante, pois é o populismo que permite dar voz a grupos sociais que se sentem abandonados pelos detentores do poder – e isso não é necessariamente mau.
Esta abordagem é diferente da que a maioria dos politólogos refere face a uma nova vaga populista – com a eleição de Donald Trump, Jair Bolsonaro ou os bons resultados de Marine Le Pen nas presidenciais francesas. As preocupações são exageradas?
Não são exageradas, mas, no século XX, já tivemos várias vagas populistas, incluindo em Portugal. Se me perguntar se estamos a atravessar um desses momentos, diria que sim. Se me perguntar qual a razão, responderia que seria a globalização e os seus efeitos.
A nova vaga populista, em Portugal e no mundo, é uma reação à globalização?
Exatamente. Com o crescente fluxo de pessoas, bens e capitais, com todo este turbilhão, muitas pessoas sentiram que perderam o equilíbrio e o controlo das suas vidas. As transformações tiveram efeitos sociais, profissionais, económicos, culturais… Essas mudanças contribuíram, entre outras coisas, para o aumento da precarização, das desigualdades e até da perda de estatuto e dignidade de muitas pessoas. Ao mesmo tempo, temos a questão das migrações, a crescente diversidade, o multiculturalismo. Todos estes elementos geraram, em muitas populações autóctones dos países ocidentais, reações contras as elites que passaram a ser vistas como destruidoras das comunidades, através de uma espécie de desenraizamento… Esta questão é fundamental para compreendermos a ascensão do populismo nos nossos dias.
Mas o populismo deve, afinal, ser combatido ou simplesmente tolerado como algo normal?
Deve, sobretudo, ser compreendido. Em Portugal, por exemplo, existe uma grave crise de confiança em relação à política e aos políticos, e é isso que abre espaço para o populismo. Atualmente, continuam a existir dois partidos hegemónicos, PS e PSD, e assim não há verdadeiros incentivos para alterar o estado das coisas, para se fazer reformas que poderiam permitir uma maior participação dos cidadãos na política. A verdade é que estes partidos, muitas vezes, funcionam como cartéis que monopolizam o Estado, o que alimenta o descontentamento popular – imediatamente aproveitado pelo populismo que alimenta e se alimenta das questões emocionais, ligadas à insegurança das pessoas.
E como devem os media lidar com este fenómeno?
A relação entre populismo e media obedece a um ciclo: há uma fase emergente, quando o populismo surge e a atenção mediática é brutal. O populista, se tiver talento – e André Ventura tem –, está permanentemente debaixo dos holofotes, porque os media não resistem à diferença, ao choque, e, claro, esses conteúdos diferentes também vão ao encontro dos interesses comerciais da própria comunicação social. Depois, há uma fase em que o partido ou o político começam a ficar estabelecidos – e é essa a fase para a qual o Chega caminha –, e que, normalmente, é crítica para o populismo, pois deixa de ser novidade. Por fim, temos a fase do declínio, que é quando os media deixam de dar tanta importância a estes partidos e políticos, porque já perderam o interesse…
Defende que, na maioria dos populismos, existe essa “tentação de Ícaro”. Isso significa que, depois da ascensão, a queda é sempre inevitável?
É especulativo dizer, mas posso afirmá-lo, que, ao longo da História, houve populistas que abandonaram a política, outros que foram assassinados e ainda outros, a maioria, que simplesmente engordaram e se fizeram “barões” do sistema. É, aliás, o próprio sistema que, na maior parte das vezes, anula o populista. É muito mais confortável para o populista entrar no sistema e, mais tarde, se tornar até um crítico do populismo que ele usou para crescer na política.
Encontra, como grande exemplo de populismo na política portuguesa contemporânea, o caso do CDS de Basílio Horta, Manuel Monteiro e Paulo Portas. Antes do Chega, o CDS já era populista?
Não sempre, mas muitas vezes. A mobilização populista do CDS começa com Basílio Horta, que dá o mote na sua candidatura contra Mário Soares, em que dizia: “Eu digo alto aquilo que as pessoas pensam em silêncio” – e esta é a pedra de toque de todo o populismo. Com Manuel Monteiro e Paulo Portas, fazia-se muito a crítica de que a direita do CDS era mais radical, dura, em comparação à direita civilizada de Diogo Freitas do Amaral. Hoje, vemos essa crítica dirigida ao Chega.
Afirma, então, que, mais do que uma novidade, o Chega é sobretudo um sucessor do CDS?
Claramente. O Chega não é novo, apenas se insere numa tradição populista que existe, há muito, na política portuguesa.
Se assim é, por que razão nunca houve uma reação tão negativa em relação ao CDS, e às personalidades citadas, ou em relação a outros populistas, à direita ou à esquerda, como há, hoje, com o Chega?
Porque a sociedade mudou. Como disse, a globalização alterou a forma de as pessoas pensarem e estarem na vida Hoje, há coisas que não podem ser ditas da mesma maneira que se diziam há 30 anos. E quando surge a comunicação política de André Ventura, a sua agressividade, a divisão entre os portugueses de “bem” e os outros, gerou-se uma reação mais crítica dos opositores. Depois, ao contrário do CDS, que sempre teve notáveis ligados ao partido, o Chega não tem grandes figuras da aristocracia da política nacional. A verdade é que, em relação ao Chega, também existe o preconceito de que já falei por parte dos meios politizados nacionais – como se aquelas pessoas fossem uns intrusos.