“Pessoas com o perfil de Putin não sabem dar nem receber, convencem-se de que ninguém gosta delas e o seu objetivo é serem temidas. Caso se sintam humilhadas, podem ser muito destrutivas”

“Pessoas com o perfil de Putin não sabem dar nem receber, convencem-se de que ninguém gosta delas e o seu objetivo é serem temidas. Caso se sintam humilhadas, podem ser muito destrutivas”

A conversa, por WhatsApp, teve como pano de fundo a ilha do Pico, nos Açores, aonde o médico se deslocou para lançar o seu mais recente livro, Uma Luz na Noite Escuraa Solidão e a Capacidade de Estar Só (Bertrand Editora, 192 págs., €15,50), no Museu dos Baleeiros. Nascido em Ponta Delgada, há 61 anos, foi em Lisboa que o mais velho de três irmãos decidiu ficar, para estudar, constituir família e seguir a carreira hospitalar. “Tenho um grande amor à minha terra e sinto-me um ilhéu, mas, a certa altura, cansei-me e quis ir para longe”, reconhece o psiquiatra.

Após ter escrito sobre o narcisismo e as personalidades-limite, o coordenador do Hospital de Dia do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca investigou diversas experiências de isolamento: um pescador que deu duas voltas ao mundo num barco, um alpinista, um explorador, um astronauta, mas também pessoas anónimas que se viram sozinhas por imposição das circunstâncias. Em todos os casos, conseguiram tirar partido da própria companhia sem se sentirem, de facto, sós. A sua meta foi dar a conhecer uma faceta diferente de um estado mental inerente à condição humana que suscita fascínio. E medo: de não ter um propósito ou de se sentir desconectado, dos outros e, pior ainda, de si.

Ser psiquiatra é, pelo menos em parte, uma profissão solitária?
Sim, é um facto. Embora haja uma comunicação muito forte com os pacientes, a vários níveis, não posso transmitir tudo o que sinto enquanto faço um diagnóstico, nem tudo o que penso, para não os sobrecarregar. Nesta profissão, ouvem-se histórias pesadas, mas isso também acontece quando se liga a televisão: logo a seguir, passa-se dos dramas para coisas mais leves. Em consulta, as palavras vêm envolvidas numa grande angústia. É preciso contê-la, elaborá-la e partilhá-la de forma mais atenuada.

Qual a razão do título do livro, Uma Luz na Noite Escura?
A noite escura é a solidão, é quando uma pessoa não consegue aceder ao seu próprio mundo interno porque não sente, dentro de si, a representação interna de outros, que resulta das experiências vividas. António Coimbra de Matos falava de uma tarefa de desenvolvimento prévia a esta representação interna, que é sentir a constância de si dentro do objeto da relação, o outro. Sem ela, a pessoa sente que perdeu importância, que o outro a esqueceu, daí que algumas pessoas precisem muito do contacto, da presença física. Na psicanálise, existe o conceito da mãe suficientemente boa. Winnicott falou dele de modo informal, num congresso da BBC, sem imaginar que teria tanto impacto. Adquirimos a capacidade de estar sós quando, em crianças, estivemos sós na presença de alguém.

A autonomia e a intimidade aprendem-se cedo, portanto.
Uma vez tive uma paciente que, numa sessão de grupanálise, comentou: “Nós, aqui no grupo, não somos amigos, somos íntimos.” A intimidade é conseguir estar em silêncio consigo mesmo na companhia de alguém, sem que tal seja uma fonte de angústia. Hoje, isso é algo cada vez mais raro.

No livro, fala de pessoas que, estando sozinhas, não se sentiam solitárias. Como explica isso?
Quando se tem um objetivo e se quer levá-lo até ao fim, não se sente solidão. No caso do alpinista João Garcia, a meta era chegar ao cume do Evereste e voltar, mas ele distraiu-se um pouco, e isso teve as consequências conhecidas. Quando perguntei a Genuíno Madruga [pescador açoriano] – que fez duas expedições sozinho, a partir do Pico, num barco pequeno [na segunda, passou pelo temido Cabo Horn] – se sentia solidão, ele disse-me: “A gente não pensa nisso, porque tem a intenção de levar o objetivo até ao fim.” A estada nas ilhas Samoa foi uma das experiências mais agradáveis que teve nas viagens, ao  ponto de ser capaz de viver lá o resto da vida, mas estava determinado a regressar ao Pico na data que tinha planeado, e assim fez. Estas pessoas ensinam-nos que, havendo uma ocupação, um propósito, isso ajuda-nos a não sentir solidão. Ou a não sucumbir a ela.

O homem que ficou preso no seu corpo após um acidente vascular cerebral grave não teve escolha. Como se supera esse isolamento?
Perante uma situação imposta, que o deixou completamente paralisado, o objetivo que arranjou foi ser autor de um livro. O Escafandro e a Borboleta foi ditado com os movimentos de uma pálpebra e mostra como, até nas piores circunstâncias, é possível apreciar pequenas coisas do dia a dia, que nós, na lufa-lufa em que andamos, tendemos a não valorizar nem desfrutar.

Estar nas situações a 100%, mesmo as mais duras, é uma via para “bloquear” a solidão?
É uma boa maneira de ver a questão. Ao estar mais presente, consegue-se experimentar as coisas numa outra dimensão. A brancura da neve, o silêncio… assim foi com o explorador norueguês Erling Kagge [o primeiro homem a completar, a pé, sozinho, o “desafio dos três polos”: o Norte, o Sul e o pico do Evereste].

Costuma dizer-se que ir para sítios longínquos e inóspitos é escapismo ou masoquismo. Concorda?
E se fosse por fuga ao quotidiano, teria menos mérito? E, não indo, qual seria a alternativa? Provavelmente, o sentimento de desespero. De um modo geral, as pessoas fazem o seu melhor. Há quem só consiga libertar-se de outros estímulos, internos e externos, e atingir estados mentais que considera importantes através de situações radicais do ponto de vista físico. Há uma escolha, procura-se atingir um fim maior, o que é bem diferente de masoquismo, que pressupõe aguentar, por não ter saída.

É preferível estar sozinho a estar na companhia de alguém que, para se sentir bem, diminui os outros e os maltrata. Infelizmente, ainda há muitas pessoas que preferem continuar mal acompanhadas

O que lhe evoca a expressão “mais vale só que mal acompanhado”?
É preferível estar sozinho a estar na companhia de alguém que, para se sentir bem, diminui os outros e os maltrata. Infelizmente, ainda há muitas pessoas que, por terem muita dificuldade em sentir a presença dos outros dentro de si, preferem continuar mal acompanhadas.

Aprendemos alguma coisa com o isolamento ditado pela pandemia?
Alguns conseguiram sintonizar-se melhor e respeitar mais o seu ritmo. A outros, custou-lhes mais, tiveram necessidade de pisar a linha, não queriam sujeitar-se a amarras, incluindo a da própria máscara. Quem quer viver intensamente tudo o que não viveu durante o confinamento talvez não tenha aprendido com a experiência do isolamento, se for isso que quer saber.

Ser parte de uma minoria e sentir-se à margem pode ser vivido como uma punição?
Sim, sobretudo se o isolamento for imposto de forma cruel por quem projeta as suas angústias e medos em pessoas que elege para esse fim. Por exemplo, quando ouvimos, repetidas vezes, “eu sou muito homem, ele é que está mal”, é caso para pensar: se estivesse realmente bem, não sentiria necessidade de estigmatizar os outros.

No atual cenário de guerra, como ler a postura do Presidente russo?
Além de características psicopáticas, Vladimir Putin tem um funcionamento narcísico muito frágil. Pessoas com este perfil não sabem dar nem receber, convencem-se de que ninguém gosta delas e o seu objetivo é serem temidas. Caso se sintam magoadas ou humilhadas, reagem com raiva narcísica e podem ser muito destrutivas.

E Volodymyr Zelensky? Tem razões para se sentir solitário?
Ele sabe que uma parte grande do mundo está com ele. Porém, é natural que tenha momentos de solidão, na medida em que está à frente de um país, de um povo que depende das decisões que ele tomar.

Um estudo norte-americano revelou que 11% dos adultos têm medo do escuro. Quer comentar?
O escuro e o silêncio não fazem mal a ninguém, mas privam-nos de estímulos externos e confrontam-nos com os nossos fantasmas. Quanto menos uma pessoa tomar contacto com as suas emoções – quanto menos se conhecer –, mais medo terá do escuro.

As diferenças de personalidade contam na maneira como lidamos com os nossos vazios?
O grau em que temos essa necessidade varia: quem é introvertido precisa mais de ter momentos sozinho para recarregar baterias, mas esse processo é diferente no caso de um extrovertido, que adora estar com outros e cativá-los, e se não o fizer é capaz de ficar neura!

Se a solidão traz coisas boas, porque é difícil caminhar com ela?
Há um reduto intransmissível dentro de nós que não se comunica por palavras. Do ponto de vista biológico, o nosso cérebro desenvolveu-se bastante e permite-nos fazer abstrações ou ter pensamentos elaborados que compensam a falta da presença física dos outros, mas essa necessidade existe. Por outro lado, temos tendência a sentir-nos menos sós quando estamos com pessoas que atravessam o mesmo tipo de dificuldades que nós. Elas conhecem bem as questões que nos afetam e percebem-nos quando falamos sobre isso. Em última análise, enquanto espécie, somos o único animal que sabe que vai morrer. Isto cria uma angústia acrescida e provoca um sentimento de solidão.

Como explica que uns queiram pôr fim à vida e outros vivam com medo de morrer?
É verdade, e tem que ver com necessidades muito profundas. O medo da morte é uma manifestação da angústia de separação, que é universal. Quando morremos, deixamos de sentir. O sentimento de abandono e a perspetiva de nos desligarmos de tudo, no fim da vida, é que podem ser angustiantes e, por vezes, dolorosos.

É possível, em termos neuroquímicos, morrer de solidão?
A prova disso são aquelas pessoas que tiveram relacionamentos duradouros e muito cúmplices, com respeito pela individualidade de cada um. Após várias décadas juntos, a viverem um para o outro, renunciando a outros interesses e ambições pessoais, há uma parte da pessoa que se perde quando quem vive a seu lado morre: as coisas deixam de fazer sentido, perde-se o tal objetivo que as faz seguir em frente.

É verdade que os momentos solitários promovem a criatividade?
Essa pergunta lembra-me Augusto Abelaira, que era conhecido por escrever em cafés, no meio da confusão: a criatividade brota de nós. E lembra-me, ainda, de ter assistido a um programa televisivo, há alguns anos, sobre um compositor. Havia dois rapazes que comentavam: “Como é possível que ele tenha composto tantas obras sem consumir nenhuma droga?” Uma observação curiosa, por pressupor que a qualidade de uma obra depende de moléculas externas ao organismo! 

Como inspirar-se em tempos difíceis e, por vezes, propícios à desesperança?
Num cenário de guerra como aquele que estamos a viver, assiste-se a atos heroicos, inspiradores e a movimentos solidários, porque as pessoas unem-se e são levadas a cooperar e a serem empáticas no meio deste drama.

Os gestos de ajuda são também uma forma de nos sentirmos menos sós?
Estas situações tendem a tornar-nos menos egoístas, porque nos levam a pensar: “O que são os meus problemas, quando comparados com estes?” Ganha-se perspetiva e, ao dar qualquer coisa de si, fica-se mais próximo dos outros e das próprias emoções. 

Como lida com os seus estados de solidão?
Tendo características de introversão e, dado o meu trajeto de vida, fui desenvolvendo a capacidade de estar só. Tenho a sorte de contar com muitas pessoas à minha volta, que gostam de mim, e também me dedico aos outros. Às vezes, tenho momentos desses, mas não são dolorosos. Como trabalho muito e tenho tido pouco tempo para mim, quando estou sozinho sabe-me muito bem.

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