“As redes sociais fomentam o instinto tribal entre o ‘nós’ e o ‘eles’. Tendem a dividir-nos”

Foto: Luis Barra

“As redes sociais fomentam o instinto tribal entre o ‘nós’ e o ‘eles’. Tendem a dividir-nos”

Olha para a História para falar de cidades. Em Metrópoles, Ben Wilson traça um fio condutor que vai de Uruque, na Suméria, 4000-1900 anos a.C., que considera ser a primeira cidade do mundo, à megacidade de Lagos, na Nigéria, nos nossos dias. O que pretende através dessa obra, que foi publicada em português pelas Edições Desassossego, no final do ano passado, é demonstrar que a cidade é o maior feito do Homem. No livro, fala também de Harappa e Babilónia, Atenas e Alexandria, Roma, Bagdade, Lübeck, Lisboa, Malaca, Tenochtitlan, Amesterdão, Londres, Manchester e Chicago, Paris, Nova Iorque. Ao longo de mais de seis mil anos, defende o historiador inglês, “a Humanidade tem feito contínuas experiências com formas de viver no turbilhão humano”: “Somos bons a viver em cidades, e as cidades são criações resilientes capazes de aguentar guerras e desastres. Ao mesmo tempo, somos muito maus construtores de cidades; planeámos e construímos, em nome do progresso, lugares que aprisionam em vez de libertarem, que nos fazem miseráveis em vez de nos elevarem o espírito.” Nascido em 1980, Ben Wilson formou-se em História, no Pembroke College, em Cambridge, foi consultor de vários programas de televisão e ainda colaborador de alguns jornais britânicos. Como explica nesta entrevista à VISÃO, é sobretudo como um lugar de criação que vê a cidade, com todos os seus sucessos e insucessos. Durante a pandemia, acentuou-se a ideia da cidade como um sítio de contaminação, mas, no mundo pós-coronavírus, vê Lisboa como um símbolo do futuro.

Escreveu um livro sobre as origens históricas das cidades. Vive numa cidade?
Nasci em Londres e vivi lá durante muito tempo. Mas, como tantas outras pessoas, por razões familiares, mudei-me há cerca de dez anos. Agora, estou a cerca de uma hora de Londres. A verdade é que Londres mudou bastante nas últimas décadas, tornou-se sobretudo um centro financeiro. Como tantos outros escritores, vivo meio exilado.

Porquê exilado?
Falo essencialmente do facto de as pessoas com empregos mais criativos não conseguirem suportar o preço das casas. Em Londres, só há lugar para os super-ricos. Ao dizê-lo, estou a pensar nos meus amigos que têm empregos em áreas criativas, como a escrita, a música ou o teatro. Londres tornou-se um sítio impossível de se estar. Além disso, também penso que a cidade é um excelente lugar para uma altura muito particular do nosso ciclo de vida. Quando se é novo, é na cidade que os contactos se fazem, que se estabelecem redes de associações, como se fôssemos parte integrante daquele buzz. As cidades estão, por isso, muito ligadas ao ciclo de vida, são uma espécie de corpo vivo.

Também defende que são lugares de criatividade. É por essa razão que as cidades são tão atraentes em determinados momentos da nossa vida?
Claro que sim. É muito difícil replicar o que se vive na cidade. Acho, claro, que as pessoas se sentem atraídas pelo trabalho e pelos empregos que ela proporciona, mas também, durante uma parte fundamental das nossas vidas, por aquilo que eu chamo “encontros casuais”. Muita da nossa criatividade está relacionada com a espontaneidade e com o inesperado que conseguimos obter em espaços, instituições e entretenimentos. Comer, beber e socializar… Tudo isso é vital numa determinada altura da vida, e não há tecnologia que o substitua. As cidades sempre tiveram esse efeito de reunir as pessoas.

E isso também é válido nas cidades do mundo em vias de desenvolvimento?
Claro. Todos os dias, nos países subdesenvolvidos, centenas de milhares de pessoas, muito pobres, procuram nas cidades esse mesmo efeito de aglomeração. São pessoas que, muitas vezes, foram expulsas das suas terras ou que não tinham emprego na terra. Juntas, na cidade, conseguem tornar-se extraordinariamente empreendedoras. Esse movimento também ajuda, por exemplo, na educação das crianças. No livro, o que tentei fazer foi justamente isso: demonstrar como, ao longo da História, a inventividade e a inovação aconteceram nesses lugares. Julgo que isso ocorre a um nível macro mas também a um nível micro. Claro que agora, com a pandemia, estamos a passar por um período em que temos menos certezas disto…

No seu entender, a pandemia poderá tornar mais próspero outro tipo de cidades. Quer explicar?
Até à pandemia, havia um conjunto de cidades superstar – como Londres, Nova Iorque, Los Angeles, Houston, Dallas… – que atraía todo o poder, dinheiro e ideias. Agora, com a possibilidade de se trabalhar a partir de qualquer lugar, as pessoas estão a escolher a cidade onde querem viver com base em critérios de prazer e de habitabilidade. Parece-me que este movimento provém dos EUA e que, de facto, no pós-pandemia, as cidades que virão a prosperar são as de tamanho médio, que oferecem mais acesso ao campo, onde é possível construir comunidades. Talvez venha a existir uma mudança da energia dos centros tradicionais para centros que oferecem mais qualidade de vida. As cidades devem ser vividas ao ritmo do pedestre e do ciclista, e, quando isso acontece, tornam-se lugares mais agradáveis. Barcelona é um bom exemplo desta tendência. Por isso é que, em todo o lado, estão a tentar livrar-se dos carros, fechando ruas, criando áreas de baixo tráfego. Tudo aquilo de que eu falo no livro, na mistura das pessoas, na experiência de estar nas ruas, pode ser destruído devido à presença dos carros na cidade. E não se trata apenas da questão da circulação, quando os veículos estão a fazer alguma coisa vagamente útil, mas também da questão do próprio espaço que ocupam quando estão estacionados. Os carros dividem e arruínam as próprias comunidades.

Mas as pessoas precisarão sempre de movimentar-se. Qual seria, para si, a cidade ideal?
A ideia ideal é uma cidade legível, isto é, que faça sentido, uma cidade que conseguimos conceptualizar na nossa cabeça. Não é uma cidade gigante, como Los Angeles, que é muito difícil de ler. Quando uma cidade possui um bom sistema de transportes públicos, como acontece em Londres, por exemplo, isso significa que é possível compreendê-la no nosso mapa mental.

Se tivesse de escolher uma só palavra para definir a cidade, que palavra escolheria?
Existem muitas palavras que definem bem a cidade. Poderia dizer cultura, poderia dizer civilização… Mas acho que prefiro dizer energia. Sabe, quando olho para as cidades historicamente, apercebo-me de que aquilo que, na verdade, as distingue é o facto de elas serem uma espécie de motor de mudança. As mudanças acontecem de forma muito rápida nas cidades, como se estas tivessem as condições certas para a mudança. Se olharmos para o caso de Lisboa, no século XV, estão lá todos estes ingredientes: Lisboa era uma cidade aberta, cosmopolita, com muitas possibilidades de troca de ideias e de pessoas.

Lisboa é, de resto, uma das cidades de que fala no seu livro. Podemos, então, dizer que foi a primeira cidade global?
É exatamente isso que eu quero demonstrar. Nesse período histórico, Lisboa é muito importante para Portugal, para a Europa e também para o resto do mundo, porque consegue conectar os principais continentes com condições de habitabilidade à época. E fá-lo pela primeira vez na História, tornando-se uma cidade de ligação numa rede de cidades que se estende do Japão até à América do Sul, de África até ao Médio Oriente. No século XV, Lisboa conseguiu como que arrastar-se para o centro das rotas comerciais, para o centro das pessoas que se movimentam, convertendo uma cidade europeia periférica numa espécie de coração da Europa, no centro das Descobertas, do dinheiro, da troca de produtos e de ideias. Como de certa maneira Veneza também o fez. Portugal aproveitou todo o seu poder militar, de construção naval e de navegação para entrar no oceano Índico, nos mares da China e, a partir daí, dar a conhecer ao mundo novas cidades.

Na Grécia Antiga, a pólis foi o embrião do espaço público moderno, ainda que, na altura, nem todos fossem considerados cidadãos. As cidades ainda são lugares políticos?
Sim, completamente. Transportamos essa ideia até aos nossos dias. As cidades gregas foram construídas em volta desse tipo de espaços públicos, como a ágora ou os teatros, que combinam comércio, atividades e todo o tipo de saudações. As cidades que as precederam eram controladas, de cima para baixo, por sacerdotes, reis ou imperadores, e dominadas por exibições e rituais de adoração. O que me parece interessante é que os gregos misturavam tudo: a ágora era o lugar onde se tratava dos casos jurídicos mais sérios e, simultaneamente, era o lugar da coscuvilhice e de toda aquela confusão. A ágora não era um espaço público oficial; era também o lugar que era capaz de acolher um estrangeiro do mundo grego que ali chegava com ideias novas.

Há quem defenda que, atualmente, as redes sociais desempenham o papel de socialização que, depois, foi cumprido pelos cafés europeus. O que acha desta ideia?
Não sei. Ao mesmo tempo que acho que as redes sociais podem cumprir esse papel, também acho que nada têm que ver com esse ambiente… As redes sociais fomentam o instinto tribal entre o “nós” e o “eles”. É capaz de ser um bocadinho exagerado, mas nos cafés de Londres havia uma verdadeira troca de ideias entre indivíduos, com diferentes tipos de rendimento e com opiniões políticas distintas. As pessoas conheciam-se e misturavam-se, e queriam realmente trocar notícias – aliás, foi aí que as notícias começaram… Julgo que, ao invés, as redes sociais têm um modo de funcionamento que tende a dividir-nos. Não é a mesma a ideia inclusiva dos banhos públicos da Roma Antiga, da praça pública ateniense, do teatro ou do café europeu.

No século XV, Lisboa conseguiu arrastar-se para o centro das rotas comerciais, convertendo uma cidade europeia periférica numa espécie de coração da Europa

A palavra que agora usamos é polarização.
Sim, as redes sociais podem ser bastante polarizadoras. Além disso, quando estamos frente a frente, cara a cara, tendemos a atuar de maneira completamente diferente.

Conhece bem Lisboa. Como olha para a cidade dos nossos dias?
Colocaria Lisboa na categoria de cidades altamente habitáveis. É muito bom passear em Lisboa, tomar um café, comer qualquer coisa… Lisboa tem essa sensação de energia de que falávamos há pouco. Também tem muitos carros, é verdade, e isso é algo que deveria ser mudado. São lugares assim, simpáticos, divertidos, habitáveis, que atraem pessoas criativas capazes de trazer novas conexões e ideias. Digo isto enquanto penso na minha adorável cidade de Londres, que se tornou, sobretudo, um parque infantil para ricos, um lugar para investir…

Há quem diga quase o mesmo sobre Lisboa. Não é apenas uma questão de escala e, principalmente, de ponto de vista?
Eu sei, mas em Lisboa é diferente. Lisboa pode bem simbolizar o futuro das cidades. Das urbes que não serão apenas lugares para investir, de arranha-céus e de centros financeiros. Serão lugares onde as pessoas vão querer estar, desenvolvendo um certo estilo de vida, inclusive mais sustentável.

É um otimista do pós-pandemia?
Sim, sou. Julgo que, definitivamente, há uma tendência para o espaço dos escritórios sair do centro das cidades. Talvez devêssemos pensar que as cidades são sobretudo lugares de prazer. Nesse sentido, acho que o centro das cidades deve ser reconquistado – e não apenas por turistas. Outra das questões que eu quis demonstrar, no livro, está relacionada com a resiliência das cidades. De uma guerra a uma praga, é preciso muito para destruir uma cidade. Na II Guerra Mundial, Varsóvia foi arrasada provavelmente como nenhuma outra cidade europeia o foi, e, no final, as pessoas quiseram reconstruí-la, não como uma cidade modernista, com um plano predefinido, de cima para baixo, mas tal qual como a cidade de que se lembravam nas suas memórias e emoções.

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