“Os vírus não distinguem entre quem tem seguro de saúde e quem não tem”

“Os vírus não distinguem entre quem tem seguro de saúde e quem não tem”

A desigualdade de género na saúde tem provocado uma maior mortalidade nas mulheres. O financiamento público direcionado maioritariamente a cancros cuja mortalidade é maior entre os homens, o encaminhamento mais frequente destes para a realização de exames e a determinação de diagnósticos baseada sobretudo em sintomas masculinos são apenas alguns exemplos de variáveis que contribuem para a situação. Quem o diz é Judit Vall Castelló, professora associada do Departamento de Economia da Universitat de Barcelona e investigadora do Centro de Pesquisa em Saúde e Economia da Universidade Pompeu Fabra. A especialista em avaliação de políticas de economia da saúde e economia do trabalho participou na 17ª Conferência Nacional de Economia da Saúde, que decorreu em outubro, em Lisboa, e à VISÃO revela estas e outras conclusões de uma análise recente que fez a seis países europeus: França, Alemanha, Itália, Portugal, Espanha e Reino Unido. Além das diferenças e lacunas existentes a nível da saúde física, Judit Vall Castelló analisa ainda as que pautam a saúde mental, particularmente amplificadas durante a pandemia de Covid-19. Com a VISÃO partilha também aquelas que acredita serem as políticas essenciais a implementar nos sistemas de saúde, a fim de os tornar mais resilientes e capazes de responder aos desafios do futuro.

Nos estudos que tem conduzido, observou que, por vezes, os sinais de alerta considerados modelo-padrão para certas doenças têm em conta os sintomas típicos dos homens. De que forma esta prática afeta a mortalidade e a prevenção precoce de doenças nas mulheres?

Apesar de homens e mulheres terem sintomas diferentes para a mesma doença, a maioria dos protocolos de tratamento está demasiado baseada nos sintomas masculinos, o que faz com que os médicos possam não detetar tantos dos sintomas femininos. Se olharmos para os registos das consultas médicas, particularmente em Portugal, vemos que as mulheres vão muito mais ao médico do que os homens. Isto acontece porque vivem mais anos e têm mais doenças crónicas. No entanto, uma vez chegadas à consulta, a probabilidade de serem referenciadas para exames de diagnóstico, como colonoscopias, rastreios ou check-ups, essenciais para a deteção precoce de determinadas doenças, é muito menor. Já os homens, apesar de irem menos ao médico, são encaminhados mais frequentemente para exames de diagnóstico, enquanto o tratamento das mulheres acaba por passar muito mais pela prescrição de medicamentos. É difícil dizer com toda a certeza por que razão isto acontece, mas é algo transversal a muitos países e pode estar relacionado com o facto de muitos médicos não terem informação suficiente sobre determinadas doenças que afetam mais predominantemente as mulheres.

Porque é que essa informação está em falta?

Pode ser por não existir investigação suficiente direcionada para este tipo de doenças. Os fundos disponibilizados pela Comissão Europeia para a investigação oncológica, por exemplo, estão maioritariamente destinados aos cancros que representam uma mortalidade mais alta para os homens. Vários estudos têm mostrado que os cancros ginecológicos e o cancro da mama são extremamente subfinanciados, o que faz com que o número de ensaios clínicos e opções terapêuticas para estes cancros, que afetam sobretudo as mulheres, sejam muito mais reduzidos, levando a uma mortalidade mais alta. Além disso, a própria persistência destas diferenças tornará quase impossível para este tipo de cancros acompanhar alguns dos grandes avanços que estão já a ocorrer no tratamento de cancros como o da próstata, o do pulmão ou no melanoma.

Portanto, o problema não se prende tanto com o facto de a maioria dos participantes em ensaios clínicos ser homens, mas com o facto de a maioria dos ensaios clínicos se destinar a cancros que afetam mais os homens…

Na verdade, é um pouco das duas coisas. A maioria dos ensaios clínicos, atualmente, tem de cumprir protocolos éticos e, por essa razão, a questão das quotas já está mais salvaguardada, embora, por vezes, ainda haja mais homens do que mulheres. A maior diferença são mesmo os fundos alocados aos diferentes tipos de cancro, que sabemos que são determinantes para conseguirmos encontrar novos tratamentos e aumentar a esperança média de vida dos doentes, neste caso, das mulheres.

A discrepância entre saúde mental masculina e feminina existe há 15 anos, mas a diferença é agora muito maior do que antes da Covid-19

É uma situação que acontece apenas no cancro ou verifica-se também noutras doenças?

Nas doenças crónicas a diferença entre géneros também é bastante evidente, ainda que haja menos estudos, pois a mortalidade associada a estas doenças é menor do que a do cancro. A maioria das doenças crónicas, como por exemplo a depressão crónica, tem uma incidência mais alta nas mulheres, que vivem mais anos e acabam por ter mais tempo para desenvolver este tipo de problemas.

Que políticas de saúde pública deveriam ser repensadas a fim de alterar esta realidade?

Penso que o primeiro passo para quebrar este tipo de enviesamentos é ter a consciência de que eles existem. Para isso, são necessários mais estudos e investigação nesta área, porque muitos homens, mulheres, médicos e investigadores nem sequer sabem que estão a contribuir para este enviesamento de dados. Em segundo lugar, seria importante que os fundos públicos fossem mais direcionados para certos tipos de doenças que afetam muito as mulheres, como é o caso da depressão crónica. Conseguir mais fundos públicos para o serviço nacional de saúde mental dos vários países significaria tratar mais mulheres e travar algum enviesamento de dados que possa existir.

A pandemia veio agravar esta iniquidade de género no campo da saúde mental?

A discrepância entre saúde mental masculina e feminina é algo que existe há mais de 15 anos. Tanto homens como mulheres pioraram a saúde mental durante a pandemia, mas no caso das mulheres o impacto foi mais forte. Em Portugal, por exemplo, se compararmos o número de horas semanais que as mulheres e os homens trabalharam, nos respetivos empregos, durante a pandemia, a diferença nem é significativa, com as mulheres a trabalharem 36 horas e os homens 38. Porém, se a essas horas acrescentarmos aquelas de trabalho não pago, como limpar a casa, cozinhar, cuidar dos filhos ou tomar conta de membros da família mais idosos, as mulheres portuguesas trabalharam 75 horas semanais e os homens apenas 64. Perante isto, não deixa de ser curioso que os homens, que já dedicavam mais horas por dia a praticar exercício físico do que as mulheres, tenham reconhecido que encontraram ainda mais tempo para o fazer durante a pandemia… De todos os países europeus que analisei, a diferença da carga horária de trabalho, pago e não pago, entre homens e mulheres, é especialmente acentuada em Portugal e em Itália e representa um claro peso para as mulheres, que acabaram por sofrer um impacto muito maior na saúde mental durante a pandemia. Em Portugal 27,5% das mulheres reportaram sintomas de depressão durante a pandemia, em comparação com apenas 24% dos homens. A saúde mental das mulheres está agora muito pior do que a dos homens e a diferença entre os dois é muito maior do que antes da Covid-19. É urgente começar a tomar medidas.

Porque, se não, a própria estrutura socioeconómica do País começa a ressentir-se?

Claro. Os níveis de produtividade e o Produto Interno Bruto nacional descem, além de esta ser uma situação com consequências preocupantes para todas as crianças que pertencem a agregados familiares onde um dos membros tem problemas de saúde mental.

Seria importante que os médicos e os enfermeiros fossem capazes de atuar noutras áreas para lá da sua especialização e que existisse uma maior articulação e comunicação entre o sistema de saúde primário e os hospitais

Os fatores de stresse que a pandemia trouxe foram especialmente danosos para as famílias?

Sim, a pandemia aumentou os níveis de ansiedade em muitas famílias, afetando particularmente os mais jovens e as mulheres. O facto de as pessoas estarem isoladas em casa, e o medo que tinham de perder o emprego, levou ainda a um aumento da violência doméstica. Este aumento pode ser observado quando olhamos para o número de chamadas feitas para as linhas de apoio às vítimas de violência doméstica. É algo que se verificou em muitos países. No entanto, como durante o isolamento era muito mais difícil para as mulheres conseguirem sair de casa, as denúncias à polícia acabaram por diminuir, tal como a identificação destes casos por parte dos sistemas de saúde. Essa redução deixará agora muitas mulheres desprotegidas e expostas à violência dos seus parceiros.

Quais as estratégias que os governos devem começar a adotar hoje a fim de construir um futuro mais sustentável no campo da saúde e assegurar que não são apanhados desprevenidos de novo?

Uma das coisas mais importantes é transformar os sistemas de saúde em algo mais flexível, com capacidade de se adaptarem e reajustarem rapidamente a mudanças no quadro social e sanitário de cada país. Em todo o mundo assistimos a um aumento de desastres naturais, sejam eles pandemias ou outros, o que reforça esta necessidade de uma organização na saúde que não seja tão fechada, tão compartimentada. Por exemplo, seria importante que os médicos e enfermeiros estivessem prontos e fossem capazes de atuar noutras áreas para lá da sua área de especialização e que existisse uma maior articulação e comunicação entre o sistema de saúde primário e os hospitais. Alargar os sistemas de saúde não será uma prioridade, porque, no geral, têm a dimensão necessária para dar resposta à atividade diária regular. O caminho passa por assegurar que, em momentos de crise, estes sistemas são capazes de se adaptar. Ao nível dos hospitais, por exemplo, é necessário que haja a capacidade de distribuir as diferentes alas de forma mais fluida para que o sistema de saúde possa reorganizar-se e adaptar-se perante emergências como uma pandemia.

A prevenção de pandemias é a área onde devemos investir mais dinheiro?

Não apenas a prevenção de pandemias, mas a área da saúde pública no geral, que engloba também, por exemplo, os hábitos alimentares. A obesidade está a crescer exponencialmente em todo o lado e sabemos que isso leva à proliferação de doenças crónicas que, apesar de não terem uma mortalidade elevada, implicam muitos exames, tratamentos e consultas, representando um enorme custo para os sistemas públicos de saúde. A saúde pública é de uma importância extrema e nós, enquanto sociedade, não lhe temos dado a devida atenção. Em Espanha, e acredito que em Portugal seja semelhante, apenas 1% da percentagem do Orçamento do Estado reservada à Saúde foi destinada à saúde pública. É claro que certas doenças, como o cancro, necessitam de muito dinheiro e é importante termos fundos para elas, mas a pandemia veio mostrar-nos que temos de aumentar a percentagem de fundos destinada à saúde pública.

Existe alguma área da saúde na qual o mundo esteja a desperdiçar fundos?

Não, não acho que haja qualquer tipo de desperdício. O que se passa é que, na maioria dos países, o orçamento da saúde mantém-se o mesmo há anos, apesar de agora vivermos todos mais tempo e, por isso, existirem mais pessoas com mais doenças para tratar.

Uma parceria mais sólida com o setor privado poderia ajudar a resolver o problema?

Claro que o orçamento público é limitado. Em Portugal e em Espanha, há um sistema misto e, à partida, parece-me uma boa solução, na medida em que, mesmo quem pode pagar pelo privado não deixa de contribuir para o Sistema Nacional de Saúde. Mas é preciso ter cuidado, porque, se muitas das pessoas com capacidade financeira para ter um seguro de saúde e resolver tudo através do privado começarem a votar em partidos que defendem o desmantelamento do Sistema Nacional de Saúde, pode ser desastroso. A pandemia veio mostrar isso em países onde não há um Sistema Nacional de Saúde, como os Estados Unidos da América. Os vírus não distinguem entre quem tem seguro de saúde e quem não tem.

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