A janela ainda está entreaberta, mas não há tempo a perder. Esta é a mensagem que o sueco Johan Rockström não se cansa de repetir. E a pandemia veio provar que o mundo é capaz de se erguer a uma só voz, lembra o antigo diretor-executivo do Centro de Resiliência da Universidade de Estocolmo, exímio, aos 55 anos, a ver o copo meio cheio.
A união faz a força, acredita o cientista, professor e diretor do Instituto para a Investigação do Impacto Climático de Potsdam, na Alemanha, uma das entidades mais prestigiadas do mundo na área das alterações climáticas e que fez parte do júri que esta semana atribuiu o Prémio Gulbenkian para a Humanidade ao Pacto Global de Autarcas para o Clima e Energia (GcoM), que liga mais de onze mil cidades do mundo.
Há um ano, Greta Thunberg distribuiu o prémio de um milhão de euros por vários projetos ambientais e humanitários. Desta vez, o júri já sabia que o dinheiro será usado para melhorar o abastecimento de água potável e a eficiência energética em cidades no Senegal e nos Camarões.
Estamos todos de olhos na cimeira de Glasgow, quando devíamos estar a olhar para as cidades?
Sabemos, por exemplo, das negociações de Paris que, ainda antes da parte da conferência dos chefes de Estado, houve um encontro de presidentes de câmara em que eles disseram aos líderes do mundo: “Nós estamos prontos a descarbonizar e, para os nossos cidadãos e para o futuro da Humanidade, queremos um acordo climático baseado na Ciência.” E a verdade é que, quando se olha para o que se passa desde Paris, encontramos muitos exemplos de cidades que estão bastante mais à frente do que os próprios países.
Em que cidades está a pensar?
Um exemplo muito típico é Camberra, a primeira capital do mundo completamente livre de combustíveis fósseis, num país que está a ficar para trás nas negociações globais. São Francisco, Londres e Copenhaga são outros bons exemplos. É natural. Sabemos que as cidades são os sítios onde os jovens estudam e onde nascem muitas das soluções para padrões de consumo e estilos de vida mais sustentáveis.
O mundo move-se em ritmos diferentes. Nós aqui, na Europa, não corremos o risco de olharmos para África de forma paternalista?
Está a pôr o dedo num assunto importante. É verdade que existe o risco de um estilo antigo de apoio ao sul, digamos do tipo panfleto pós-colonial, mas julgo que estamos para lá dessa fase. Nas negociações climáticas, já virámos a esquina, felizmente, reconhecendo que todos os países do mundo precisam de ter o mesmo nível de ação. E a boa notícia é que a maioria hoje reconhece que o caminho para um futuro sustentável, descabornizado, passa por um desenvolvimento de alta tecnologia, avançado e competitivo.
O que nos cabe fazer, então?
Temos a responsabilidade de apoiar com conhecimento e investimentos financeiros, mas devemos reconhecer que estamos numa fase em que estão todos a desenvolver-se. Em África, aliás, podemos obter saltos evolutivos muito grandes. Se o Pacto de Autarcas trabalhar em parceria com as cidades e elas ficarem as melhores do mundo para se viver, vale a pena, mas temos de respeitar a posição destes países em desenvolvimento. E também temos de parar de falar sobre a crise ambiental como se fosse um problema grande e caro de resolver. Não é. É o caminho para termos êxito no futuro. O que fica realmente caro é se não fizermos nada, porque, então, só teremos um ambiente cada vez pior para apoiar.
Precisamos de manter um ritmo Covid-19 de redução de emissões todos os anos até 2030 para termos a hipótese de uma aterragem segura, e de uma maneira que não destrua empregos e a economia
Há um ano, numa Ted Talk, alertou para o facto de estarmos num ponto de não retorno, mas acrescentou que ainda íamos a tempo de fazer alguma coisa. Continua otimista?
Estamos num ponto de não retorno no sentido de existirem evidências científicas de que entrámos numa década decisiva para conseguirmos manter o 1,5º C de limite estabelecido no Acordo de Paris. E esse limite é real. Se formos além dele, teremos impactos sociais e económicos muito grandes provocados por eventos extremos em todo o mundo, e corremos o risco de cruzar limiares que podem levar a mudanças irreversíveis e amplificar o aquecimento. Não é que estejamos a cair de um precipício, mas nesta década temos de cortar as emissões pela metade, e essa é uma tarefa enorme. De agora em diante, temos de reduzir as emissões em 6% ou 7% ao ano, ou seja, ainda mais do que conseguimos durante a pandemia por razões completamente erradas (porque fechámos a economia global). Precisamos de manter um ritmo Covid-19 de redução de emissões todos os anos até 2030 para termos a hipótese de uma aterragem segura, e de uma maneira que não destrua empregos e a economia.
Não vejo espaço para otimismo.
De uma perspetiva das ciências naturais, a minha conclusão é que a janela ainda está aberta. A Terra aqueceu 1,1º C, o “orçamento de carbono” global é muito limitado, mas, se reduzirmos as emissões, ainda é possível. Pode haver uma ultrapassagem, de 0,1º C até 0,2º C, mas ainda há hipótese de manter sistemas como a Gronelândia e a Amazónia num estado razoável. É, no entanto, uma janela muito pequena. E se juntarmos a isso a geopolítica do mundo, então o panorama não parece tão brilhante. Que seja possível é uma coisa, mas se vamos fazê-lo, é outra. E é aí que entram o GCoM, o Prémio Gulbenkian, a Ciência, os negócios. Precisamos de manter a dinâmica para que todos os líderes políticos do mundo compreendam que chegámos a um ponto de não retorno no sentido positivo, ou seja, que nos encaminhamos para um futuro descarbonizado.
Todos, mesmo?
Sim, precisamos que todos os países deem um passo à frente. E precisamos que as instituições financeiras parem de investir em combustíveis fósseis. Todo o dinheiro deve ir para apoiar esta transição. A União Europeia está a avançar de uma forma que podemos dizer que é hoje a melhor liderança do mundo, mas nem todos os países estão a avançar.
Está a falar de…
Estou a falar da Indonésia, da Turquia, da Índia, da Rússia, do Brasil, da China.
Quais são as suas expectativas em relação à COP26?
Devemos ter grandes expectativas em relação a Glasgow, porque este é o momento em que as NDC [Contribuições Determinadas Nacionalmente – planos de redução de emissões] têm de ser atualizadas para se alinharem com a Ciência. Estamos a seguir um caminho que pode levar-nos a uns desastrosos 2,7º C até o final do século, por isso precisamos desses planos.
Se tivermos as NDC atualizadas, já devemos ficar satisfeitos?
Também precisamos que se comece a falar seriamente, em público, sobre uma data para o fim do carvão e uma data para o fim do motor de combustão interna. Temos de apoiar de novo os países que estão a avançar, dizendo-lhes: “Agora, estamos realmente a eliminar a era dos combustíveis fósseis.” E, talvez o mais importante, é preciso reconhecer que nunca teremos uma aterragem segura, a 1,5º C ou bem abaixo de 2º C, a menos que também asseguremos o sequestro de carbono na Natureza. As negociações climáticas têm de discutir políticas e investimentos sobre como proteger todos os sistemas florestais, as zonas húmidas, os solos, a agricultura, a silvicultura, os sistemas marinhos… Se perdermos esses sumidouros de carbono, falharemos Paris, mesmo que eliminemos os combustíveis fósseis.
Fala-se quase sempre só de combustíveis fósseis, mas está tudo relacionado. A nossa dieta, por exemplo. A mensagem não passa?
Tem toda a razão – tendemos a concentrar as nossas atenções na eliminação progressiva dos combustíveis fósseis, mas precisamos de pensar em dietas sustentáveis e saudáveis, em florestas e em sistemas agrícolas sustentáveis e saudáveis, nos grandes cargueiros, na poluição e no aquecimento global. Está tudo interligado, mas será que percebemos isso? A resposta é: até certo ponto, sim. E estamos a agir como se o percebêssemos? Não. Ainda organizamos as nossas políticas, as nossas sociedades e as nossas economias de acordo com canais setoriais. Nisso estamos a falhar. Qualquer político dirá: “Acho que as mudanças climáticas são importantes, realmente quero ter uma política boa sobre isso.” Mas o desafio é visto como apenas um entre muitos, e isso não pode acontecer. Garantir um planeta sustentável tem de ser a prioridade em todas as áreas políticas.
Que lições devemos retirar da pandemia?
A mais importante é que ela mostrou, de uma forma bastante espetacular, como somos uma comunidade global. Apesar de todas as diferenças, levantámo-nos juntos face a uma crise global, e isso prova que podemos resolver a crise climática como um só mundo. A segunda lição é o papel da Ciência, que desenvolveu vacinas em ritmo recorde graças a décadas de trabalho anterior. Mas o mais importante, para mim, foi que também provou que, quando algo corre mal num canto do planeta, pode atingir o mundo inteiro. É exatamente a mesma coisa no que diz respeito às alterações climáticas e à degradação da Natureza – se algo corre mal com o gelo da Antártida Ocidental ou o aquecimento do Atlântico ou a corrente do Golfo ou o Ártico, pode atingir-nos a todos, em todo o mundo. Claro que não é à mesma velocidade, mas pode ser irreversível.
A água deve ser a nossa maior preocupação atual?
Não é preciso ser um cientista para concluir o seguinte: estamos a aquecer o planeta; então o que acontece quando 70% é água? Quando aquecemos água, ela evapora-se e, por isso, ficamos com mais água na atmosfera. Isto é física básica do Ensino Secundário. Para cada aquecimento de 1º C, adicionamos mais 70% de água na atmosfera. E, ao adicionarmos mais quantidade de vapor de água na atmosfera, não estamos apenas a aquecer o planeta, mas também a fornecer mais energia. Por isso temos mais secas, mais tempestades e furacões mais intensos, ou seja mais eventos extremos. E quando pensamos em eventos extremos, o que são eles? Bem, são sempre sobre água. É muita ou pouca água ou água na hora errada. As ondas de calor são causadas por secas. Os furacões intensos são o resultado de tempestades de vapor de água em todo o oceano… E também sabemos que apenas a água determinará a capacidade da Natureza de absorver o carbono, porque as árvores não crescem sem água. Se perdemos água, as árvores ardem; temos água, elas podem sequestrar o carbono. Portanto, a água não é apenas a vítima número um, mas também o determinante número um da nossa capacidade de manter a saúde e a sustentabilidade da biosfera.
Vê-se como um arauto da desgraça ou um mensageiro da boa-nova de que ainda podemos fazer alguma coisa?
Não me colocaria em nenhum dos dois papéis. Os cientistas têm a responsabilidade de pôr os factos em cima da mesa. Estamos a enfrentar riscos muito grandes e, portanto, o diagnóstico é terrível. Mas não vejo isso como uma condenação, vejo mais como uma responsabilidade. Se for ao médico e tiver uma doença séria, não quer que ele lhe diga que só está com tosse e que pode ir para casa e tomar uma aspirina. O diagnóstico tem de ser correto. Ao mesmo tempo, acho significativo que os factos por detrás das oportunidades também sejam hoje muito fortes. Há cinco ou seis anos, a história teria sido: “Temos soluções hipotéticas, mas não podemos dizer que funcionam.” Hoje, temos soluções e elas são competitivas e dão melhores resultados. Se formos sustentáveis, as pessoas ganham melhores empregos, melhor saúde e até menos conflitos. Há grandes riscos, mas também há grandes oportunidades, e temos de agir rapidamente.