“Queremos mesmo contar com magia para nos salvarmos? Ou queremos responsabilizarmo-nos?”

Photo credit Thibault Scheeberger

“Queremos mesmo contar com magia para nos salvarmos? Ou queremos responsabilizarmo-nos?”

Queremos travar as alterações climáticas e a perda de biodiversidade? Só há uma saída: o decrescimento económico. Esta é a ideia-base defendida pela professora americana Julia Steinberger, da Universidade de Lausana, Suíça. Filha de Jack Steinberger, vencedor do Nobel da Física em 1988 (fugido da Alemanha nazi com o advento do antissemitismo), a especialista em Economia Ecológica vai explicar os seus argumentos na 4ª edição de Human Entities – A cultura na era da inteligência artificial, organizada pelo grupo artístico CADA em parceria com a Trienal de Arquitetura de Lisboa, no espaço ao ar livre da Trienal, no próximo dia 26 de novembro.

Em entrevista à VISÃO, a investigadora garante que há recursos para todos vivermos confortavelmente – mas só se reduzirmos de forma drástica o consumo supérfluo e revolucionarmos o sistema capitalista.

Muito se tem falado sobre a insustentabilidade do crescimento infinito num planeta com recursos finitos. É impossível crescer continuamente?
Não é possível. Sempre que a economia cresce, a procura de recursos também cresce. Há países que julgam que as suas economias estão a conseguir dissociar o crescimento do gasto de recursos, mas isso é porque não levam em conta os recursos usados noutros países [consumo de produtos feitos noutras regiões do mundo]. Se contarmos com esse contexto internacional, o crescimento é sempre acompanhado por um aumento do material usado e de consumo de energia. Para evitarmos alterações climáticas e perdas de biodiversidade catastróficas, temos mesmo de mudar o nosso impacto no ambiente, ou seja, o uso de recursos. A escala de mudança que precisamos de operar não é compatível com o crescimento económico contínuo.

Há uma correlação entre crescimento do PIB e as emissões per capita. É uma prova de que é impossível ser-se rico e ter baixas emissões?
Sim, absolutamente. Em média, quanto mais rico é o país, maiores são as emissões per capita. Temos um estudo que demonstra que, quanto mais dinheiro tem uma pessoa, maior é a sua pegada ecológica. É impossível ser-se rico e não ter um grande impacto no ambiente.

Portanto, a única solução é o decrescimento?
Acredito que sim. O que nos interessa são os resultados e, nesse sentido, precisamos de decrescimento no uso de energia, de materiais e de terra, devido aos impactos que têm. Portanto, o foco não é tanto como a economia se está a comportar, mas sim em reduzir estes impactos. Devido ao que sabemos sobre a correlação entre atividade económica e impactos ambientais, muito provavelmente isso significa que precisamos de decrescer, ponto final. Certamente, teremos de decrescer em certos setores da economia.

As pessoas vão aceitar piorar? Dizer-lhes que não podem ter perspetivas de melhorarem as suas vidas não destruiria o espírito humano?
O espírito humano está a ser posto em risco pelo crescimento. Há muita gente que gosta de pôr as coisas nesses termos, que crescimento e prosperidade estão ligados. Mas não é verdade. Os meus estudos têm demonstrado que crescimento não é igual a qualidade de vida. Além disso, o nosso crescimento atual está a pôr-nos numa trajetória que os cientistas do clima dizem que vai impedir a possibilidade da civilização humana num século. Não, a prosperidade não vem com o crescimento. Não é verdade hoje, não foi verdade no passado e, no futuro, se continuarmos a fazer o mesmo, será devastador. Temos de encontrar outro caminho.

É uma questão de mudarmos a bem ou a mal?
Se formos obrigados a mudar devido às alterações climáticas, já será demasiado tarde. O futuro é de tal forma desolador que temos de tomar medidas preventivas. E temos as ideias e as ferramentas económicas para seguir em frente de outra forma. O único obstáculo é quem está a beneficiar com o crescimento económico. E uma das coisas que sabemos pelo trabalho de Thomas Piketty e outros economistas é que o crescimento económico é um motor de desigualdade: quanto mais cresce uma economia capitalista, mais desigual se torna. O crescimento vai predominantemente para os mais ricos. Isso significa que temos mesmo de mudar os nossos sistemas.

Já a acusaram de ser comunista por dizer isso… É possível ter um sistema que não é nem capitalista nem comunista?
As pessoas foram levadas a pensar que só temos duas possibilidades: o capitalismo ou o Gulag. Essa falta de imaginação é muito perigosa. O que está a faltar nesta equação “capitalismo ou União Soviética” é a democracia. Temos de tornar as economias democráticas e garantir que são o melhor para nós. Tanto no sistema capitalista como no soviético, o mercado não está a servir as pessoas nem as pessoas decidem como o mercado deve funcionar. No capitalismo, o objetivo é a acumulação de riqueza para os ricos; no socialismo soviético, era o que quer que o governo decidisse que melhor servia o seu poder. Mas nunca tivemos nada no meio. Não: as economias têm de servir as sociedades e as pessoas podem decidir não fazer as economias crescerem porque isso vai afetar a sua qualidade de vida. Podemos decidir focar-nos em educação, sistemas de saúde, alimentação saudável, qualidade de vida para toda a gente. Apostar na eficiência de forma a termos o suficiente para todos.

Em França, a tentativa de avançar com taxas de carbono sobre os combustíveis redundou no movimento dos Coletes Amarelos e em tumultos por todo o país. As pessoas estarão mesmo dispostas a pagar o preço da mudança?
Isso só confirma o que eu estava a dizer: estas decisões têm de ser tomadas de baixo para cima, democraticamente, e não impostas de cima para baixo. As assembleias de cidadãos pelo clima em França têm soluções muito abrangentes, mas que são igualitárias, que levam em conta as pessoas que são prejudicadas pelas medidas. Pelo contrário, impor uma taxa sobre o gasóleo afetaria sobretudo os mais desfavorecidos. Para termos justiça, é preciso que as decisões sejam democráticas.

Foi coautora de um estudo que mostra que a população mundial poderia sobreviver com 40% da energia que estamos a usar agora, tendo uma vida decente. O que significa uma vida decente?
Uma vida que permita que as pessoas vivam todos os dias sem medo, sem pobreza, sem privação, e de modo a conseguirem tirar partido do seu potencial. Não estamos a falar de luxo ou de ostentação. O consumo excessivo não melhora o bem-estar nem a felicidade. Estamos, portanto, a falar de um ambiente de vida decente, um casa boa e sólida, nem demasiado quente nem demasiado fria, acesso a comunicação, incluindo internet, acesso a equipamentos como máquinas de lavar, suficiente mobilidade, que dê para visitarmos os nossos amigos e família e ir para o trabalho e um voo a cada dois anos para quem precise de viajar. Se as pessoas tiverem tudo isto, não se vão sentir pobres.

Teríamos, então, as nossas necessidades básicas asseguradas. O que mudaria era o consumo excessivo. Em vez de comprarmos 50 peças de roupa por ano, compraríamos apenas dez. É isso?
Sim. É um nível de consumo suficiente.

Para que essa média global de 40% seja alcançada, nos países desenvolvidos as pessoas teriam de reduzir o uso de energia em 95 por cento. Podemos viver confortavelmente usando apenas 5% da energia?
No estudo, assumimos igualdade total: todos têm acesso aos mesmos serviços energéticos no mundo inteiro. Com tecnologia mais eficiente, podemos usar muito menos energia. Temos de evitar mais consumo do que aquele que as pessoas precisam, que é o lado da suficiência, mas há também o lado da eficiência – gastar menos energia. É o suficiente para viver confortavelmente? Há muita gente em países ocidentais, como Portugal, Suíça e certamente Inglaterra, que não tem qualidade de vida devido à grande desigualdade de rendimentos e de acesso a serviços. Muitos porque são pobres, passam o inverno com frio, e por causa disso têm problemas de saúde. Podemos fazer melhor, investindo em acesso eficiente a serviços energéticos. Investimento público.

No final do século XVIII, Malthus previu que a melhoria das condições de vida levaria ao aumento da população e, logo, à catástrofe, por não haver alimentos para todos. Essa previsão não se concretizou devido aos avanços tecnológicos, especialmente após a Revolução Agrícola nos anos 50 e 60. Os avanços na tecnologia não nos podem salvar, desta vez?
Temos muitos dados sobre avanços tecnológicos das últimas décadas. Para evitarmos alterações climáticas catastróficas, para evitarmos o colapso da civilização, mantendo o crescimento económico, só um milagre tecnológico. Não estamos a falar de um avanço tecnológico normal, mas sim de magia. Atendendo ao que nos espera, queremos mesmo contar com a magia para nos salvarmos? Ou queremos responsabilizarmo-nos e proteger a qualidade de vida, reduzindo o consumo de recursos? É isso que defendo, com maior equidade, maior eficiência energética e acabando com o consumo excessivo. E ainda estou para perceber porque é que defender isto faz de mim maluca.

Diz que salvar o mundo através da tecnologia é equivalente a magia. Mas a Revolução Agrícola, que permitiu aumentar exponencialmente a produção, também pareceria magia há 100 anos…
Não temos tempo para esperar e ver o que acontece. Temos só umas décadas para reverter a situação, e fazê-lo passa por decrescer. Sabemos exatamente que tipo de melhorias esperar. Há estudos sobre isso: devido às leis da termodinâmica, às leis da física, sabemos que avanços tecnológicos são possíveis e impossíveis. Esperar que a fada madrinha nos venha salvar é loucura. Não podemos contar com a tecnologia para impedir os cataclismos climáticos que nos esperam.

Estudos mostram que pessoas que já fazem pequenos esforços sustentáveis no seu dia a dia são mais resistentes do que quem não faz nada a, por exemplo, pagar impostos sobre o carbono, que é uma medida de alto impacto. Isto não a leva a perder a esperança na humanidade?
Não, porque não acredito que a solução esteja nas ações individuais, no virtuosismo de cada um de nós, nem na imposição de taxas de cima para baixo. A mudança só é possível através de processos democráticos coletivos. A minha esperança é nos movimentos de jovens, que acreditam conseguir dar este passo juntos. A nossa legitimidade enquanto pessoas não vem de termos ou não umas colunas de última geração ou um carro grande – vem da capacidade de falarmos uns com os outros, de tomarmos decisões em conjunto e criarmos um mundo melhor. Não podemos receber ordens de pessoas muito poderosas que lucram com o nosso consumo.

Esta nova geração é mais resistente a essa pressão consumista do que as gerações anteriores?
Acredito que sim. Esta geração já percebeu que tem de se endividar para tudo: educação, habitação… A economia já não protege os jovens nem lhes dá oportunidades, apenas lhes extrai dinheiro e tempo. Este capitalismo é uma forma predatória de economia que lhes está a roubar o futuro.

Trump é o seu principal objeto de ódio, ultimamente. Quão maus foram estes últimos quatro anos para o ambiente?
Foram um desastre completo para o ambiente e para os seres humanos. Um dos pontos mais baixos foi talvez ele tentar manter vivos combustíveis fósseis sem viabilidade económica, subsidiando-os. Outro foi a forma como tratou os refugiados climáticos vindos da América Latina, trancando-os em jaulas, separando os pais dos filhos… Tem sido horrível.

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