Foi no Porto, no espaço Indulgent, que a Fundação José Neves improvisou um estúdio para transmitir, em streaming, o seu primeiro evento global. Convidados de várias partes do mundo alertaram para a urgência de criar condições para que todos tenham acesso à melhor educação possível. Foi também ali que José Neves se desdobrou em entrevistas para dizer ao que vinha.
Agora que se tornou bilionário, o que mudou na sua vida?
A primeira palavra que me vem à cabeça é gratidão. Porque realmente tive muita sorte. Comecei a programar com 8 anos, tive a minha primeira empresa de criação de software aos 19. Tive a sorte de fazer aquilo de que gosto, numa empresa tecnológica como a Farfetch. Sempre quis estar envolvido numa empresa global. Tive a sorte de ter construído valor, não só para mim mas também para os cinco mil colaboradores, que têm todos ações da empresa; chamamos-lhe o “Farfetch for all” (Farfetch para todos). Com esta criação de valor, alguns deles conseguiram comprar casa, pagar o carro ou fazer poupanças suficientes para pôr todos os filhos a estudar na universidade… Foi uma criação de valor para todos. Sinto orgulho e uma enorme gratidão. A ideia da fundação vem dessa gratidão, desse sentimento de partilha. Quando algo de bom nos acontece, queremos partilhar com outros.
Tornar-se milionário transformou-o num filantropo?
Muitos fazem filantropia independentemente dos meios financeiros que têm. A filantropia é partilha. E a maior partilha é a do nosso talento, energia, tempo, atenção, criatividade, conexões e as nossas influências, para criar impacto positivo na sociedade, nas nossas comunidades. A nossa mente intelectual acha que, quando damos, ficamos sem aquilo que damos. Mas o nosso coração sabe que, quando partilhamos e damos, ganhamos. Este lado humano é o mais importante. E qualquer pessoa pode fazê-lo, seja qual for o seu nível económico. É importante partilhar o nosso talento.
Faz alguma distinção entre filantropia e caridade?
O importante é tentarmos criar impacto positivo. Na contribuição financeira, comprometi-me com dois terços de tudo o que tenho durante a minha vida e no momento da minha morte. Sou um componente antigo do Founders Pledge [uma organização sem fins lucrativos fundada em 2015, em Londres, que incentiva os empreendedores a doarem, pelo menos, 2% dos seus rendimentos pessoais para caridade], fui um dos primeiros signatários, há sete anos, mesmo antes de ter esta liquidez. Sou também o primeiro signatário português do Giving Pledge, uma iniciativa de Bill Gates, que reúne alguns dos maiores filantropos, em que se trocam experiências e conhecimento sobre o que funciona ou não. Muito dinheiro que vai para caridade e filantropia é desperdiçado, porque simplesmente não há preocupação em estudar e medir o impacto de cada uma das medidas. Esse impacto tem de ser pragmático, claro, e tem de poder ser medido. Isso é que é filantropia e também o que poderia ser caridade. E, aí, elas juntam-se.
Quer dar o peixe ou dar a cana para ensinar a pescar?
Em Portugal e em todos os países do Sul da Europa, temos pouca tradição disto. Já nos países anglo-saxónicos, Estados Unidos ou Reino Unido, existe uma tradição muito grande, tanto de caridade como de altruísmo e filantropia. Podemos aprender muito com essas sociedades, em que a filantropia é esperada e faz parte de um percurso de realização pessoal. Isto ainda faz falta na nossa cultura. Pensamos muito em determinados tipos de caridade, mas todos devemos estar envolvidos em atividades filantrópicas.
A fundação tem, nesta fase, cinco milhões para aplicar através da educação. Onde foi buscar este modelo?
A missão é ajudar a transformar Portugal numa sociedade do conhecimento, para elevar o nível de desenvolvimento humano. Este tem muitas vertentes: educação, saúde, liberdade de expressão, igualdade, segurança… Enfim, muitas variáveis. Há uma tabela da OCDE com o ranking dos países mais desenvolvidos ao nível do desenvolvimento humano – que é diferente do desenvolvimento económico. Por exemplo, os Estados Unidos têm um desenvolvimento económico enorme, mas um desenvolvimento humano muito baixo. O maior catalisador para o caso português é a educação. Daí a iniciativa dos ISA e do Brighter Future.
Que resultado pretende, exatamente?
Há aqui também uma vertente pessoal. Desenvolvi a minha atividade profissional na economia digital. A revolução digital que vivemos é muito mais impactante do que a Revolução Industrial. Essa revolução digital está a criar riqueza; basta ver que no S&P500, o índice das 500 maiores empresas americanas, 25% – um quarto de toda a capitalização bolsista – são tecnológicas. Mas há o risco de haver pessoas que ficam para trás por não terem as competências necessárias para participar nesta nova economia. Não estamos a falar só de programadores. Dou o exemplo da Farfetch: dos cinco mil colaboradores, apenas 30% são programadores, analistas de sistemas ou informáticos, vindos das tecnologias da informação. Ou seja, 3 500 têm outras competências para a economia digital: fazem criação de conteúdos (não jornalísticos, mas editoriais de moda), design gráfico, profissionais de marketing, de comunicação. Se não fizermos isto para um número muito alargado de portugueses, vamos ter um grave problema de empregabilidade. O mais urgente está realmente na educação. E esta crise da Covid-19 está a acelerar a necessidade de os portugueses adquirirem novas competências para conseguirem adaptar-se. Há empresas que estão a contratar pessoas e a aumentar postos de trabalho. Nem todas estão em layoff ou a reduzir empregos. Como vamos dotar os portugueses das competências necessárias para não termos um problema grave dentro da comunidade? Essa é a urgência.
Cada um é livre de escolher o curso?
Exato. Há 100 cursos à disposição em 22 instituições de ensino, entre universidades, politécnicos, bootcamps. São pós-graduações, no máximo até dois anos, e qualquer português pode concorrer, independentemente de ter ou não trabalho, ou da sua condição económica. É uma espécie de bolsa reembolsável. O candidato apresenta-se, diz que quer tirar o MBA, a pós-graduação ou o bootcamp x, que custa, vamos supor, 30 mil euros. Sendo aprovado, fazemos o pagamento total das propinas e o candidato só tem de reembolsar se vier a conseguir emprego acima de um determinado patamar salarial, que é pré-acordado.
Isso não é dar agora e tirar depois?
Não. Se tivermos um sistema com circularidade, podemos ajudar muito mais pessoas. Se não fosse reembolsável, ajudaríamos muito menos. Faz todo o sentido alguém que tire um MBA e, com isso, consiga uma promoção ou subir o nível salarial, e que uma percentagem desse salário volte a entrar no sistema para ajudar outros que querem fazer esse percurso. Criamos aqui um efeito multiplicador, para que daqui a alguns anos a fundação esteja a ajudar, não 1 500, mas dezenas de milhares de portugueses. Começámos pelas pós-graduações de dois anos em Portugal, mas a ideia é expandir, no futuro, para pós-graduações no exterior, para licenciaturas e outros tipos de formação.
O candidato tem de mostrar a declaração de IRS e provar que é pobre?
Não, isto não é um empréstimo. Não tem nada que ver com a capacidade financeira, mas sim com a motivação. Tem de ser alguém motivado, e vamos fazer testes de motivação. Estamos a trabalhar com investigadores na área da psicologia e dos testes psicotécnicos para garantir que têm a motivação certa. Para bem delas, não só para proteger a fundação. E vamos usar a nossa base de dados – daí o Brighter Future estar conectado, também, com este programa – para que possam tomar decisões baseadas em factos. Se eu tirar um MBA que custe uns 30 mil euros, será que vou conseguir uma promoção? Será que vou conseguir um novo emprego? E que salário vou ter? O Brighter Future vai dizer isso, com dados em tempo real, ou quase real. Este é o nosso segundo projeto. Com base nesses dados, os candidatos, a fundação ou as universidades podem tomar decisões, para que as pessoas não percam tempo e a fundação não perca dinheiro. É garantido que a pessoa nunca perde dinheiro. Se não conseguir um emprego ou uma promoção, não tem de pagar nada à fundação.
Quer moldar uma nova geração no País?
Se o programa tiver sucesso, investiremos mais do que os cinco milhões. Gostaria muito que, daqui a dez ou 15 anos, uma grande maioria dos portugueses pudesse dizer: “Os meus pais não tinham dinheiro, mas tirei a minha licenciatura ou a minha pós-graduação, porque tive uma bolsa reembolsável da Fundação José Neves, e isso foi extremamente útil para o meu futuro.” E gostaria também que dissessem: “Sinto-me orgulhoso, porque consegui retribuir ao programa, e essa retribuição está agora a ajudar miúdos que precisavam desses fundos.” Estaremos a criar circularidade no sistema. E o número de pessoas que podemos ajudar é maior.
Faz isso por considerar que Portugal tem falhado nesse propósito?
Portugal não tem nada com esse propósito! Temos um sistema de ensino público em que as licenciaturas são subsidiadas, felizmente. Por isso é que as licenciaturas não nos pareceram uma prioridade; e é ótimo que exista um sistema de bolsas e de ação social. Mas para quem quer tirar uma pós-graduação, evoluir, requalificar ou avançar é algo que existe muito pouco. E muito pouco com estas características, que estão totalmente ligadas ao sucesso, e se não houver sucesso, simplesmente não há obrigação nenhuma de devolução.
O que quer que isto acrescente? O que está a sonhar para o País?
Vamos lá ver: se medirmos o número de pessoas com grau de mestrado, MBA ou pós-graduação hoje, e se medirmos daqui a dez anos, gostaria de poder dizer que essa percentagem de portugueses é muito maior e que o nosso ISA contribuiu marcadamente para isso. E não terei dúvidas nenhumas de que gerou valor, porque vamos conseguir medir, na nossa base de dados, pelo salário médio. No Brighter Future, podemos ver qual o nível salarial de uma pessoa com e sem MBA. Qual o nível salarial de um engenheiro com e sem mestrado. Se daqui a dez anos medirmos tudo isso e conseguirmos dizer que x milhares de portugueses conseguiram elevar em x milhares de euros o seu salário e os rendimentos das suas famílias, isso é uma criação de valor.
E é riqueza para o País?
O sonho seria ver Portugal no topo desse ranking da OCDE, em que estão sempre os países escandinavos. Imagine ver Portugal perto de uma Suécia ou de uma Coreia do Sul. Há lá países pequenos e sem recursos naturais. A Suécia tem, mais ou menos, o mesmo número de habitantes que Portugal, não tem recursos naturais e tem um nível de desenvolvimento económico e humano incrível. Gostaria de ver Portugal nesse patamar. Temos a humildade de saber que vamos dar um pequeno contributo. Temos de ser nós, com as outras empresas, as outras fundações e toda a sociedade, em Portugal. Seria um sonho para todos. E é possível. Porque não
Já que tem uma estratégia para o País, o que pensa do plano estratégico de Costa Silva e onde é que este coincide com as suas ideias?
Vou ser sincero: não conheço esse plano estratégico. Na fundação, o que estamos a fazer é uma missão muito concreta de tornar Portugal numa sociedade do conhecimento, com duas iniciativas também muito concretas: uma são os ISA, o acesso a bolsa; e a outra é o Brighter Future. E temos consciência de que este é um pequeno passo para contribuir para a sociedade em geral e para o esforço que o Governo também está a fazer. Mas sem tentar de forma alguma influenciar ou fazer qualquer lóbi
Não teme estar a formar pessoas que vão emigrar e ser aproveitadas por outras empresas europeias? Como se pode reter este talento?
Se isso acontecesse, nem era mau de todo. Imagine que começávamos a ter prémios Nobel a torto e a direito… Temos três mil pessoas formadas em Ciências Biomédicas, um grande número de portugueses com papers científicos nalgumas das maiores universidades do mundo, com avanços e descobertas incríveis, porque foram lá para fora. Eu também fui lá para fora. Não vejo problema nisso. Agora, a retenção de talento cá é algo que compete ao setor privado, às empresas. É um desafio também para a Farfetch. As empresas têm de criar motivação, ambiente de trabalho e condições salariais que retenham as pessoas. Mas se formarmos pessoas com competências à escala global e se elas forem atraídas por grandes empresas, instituições de ensino e universidades estrangeiras, e aí derem cartas, é fantástico para o País.
As empresas têm capacidade para isso?
Sim. Há tantas startups em Portugal. Estou a lembrar-me da OutSystems, um dos nossos parceiros, da Talkdesk, da Feedzai… tantas tecnológicas, em que qualquer um daqueles profissionais poderia estar a trabalhar em Silicon Valley. E não estão. Estão em Portugal. É um desafio que já está a ser vencido. Criar talento é o mais importante. Se algum desse talento for lá para fora, não me preocupa. É melhor do que não o ter.
Põe muita ênfase nas tecnológicas, mas temos visto que existe aí uma grande bolha ou que estão hipervalorizadas. Ou não?
Não sou investidor. Como tal, não comento [risos]. Tenho apenas pequenos investimentos como “angel” [“business angel” é alguém que ajuda a alavancar negócios].
Vivemos um tempo em que dificilmente conseguimos prever o futuro. Tem assim tanta certeza do que o futuro vai precisar?
Não tenho certeza nenhuma. Por isso, existe a Brighter Future. Entra na plataforma, clica numa profissão, vamos supor, na de advogado. Ela vai dizer-lhe o salário médio dos advogados em Portugal, quantos estão empregados, quantos estão desempregados, a evolução do salário por região, por faixa etária, diferença salarial entre homens e mulheres – que é uma coisa que vai dar que falar, espero, porque ainda existe muita desigualdade, infelizmente. Isto permite obter dados em tempo real sobre o mercado de trabalho, a empregabilidade, as competências. Mas vai permitir também a empresas, famílias, pais, filhos ou instituições de ensino tomarem decisões com base em factos e, assim, construir o futuro. Realmente, ninguém sabe como vai ser. A única coisa que podemos fazer é olhar para os dados do presente e tentar extrapolar as tendências do futuro.
Há um pilar intrigante: o da espiritualidade, do “conhece-te a ti mesmo”. O que significa isto?
Há dois tipos de conhecimento. O do exterior, do mundo à nossa volta, da física, química, engenharia mecânica, digital… tudo o que é o ser humano manipulando a realidade e o nosso meio ambiente; e existe o conhecimento interno, quando viramos a nossa consciência para nós e começamos a descobrir coisas sobre nós. Quando começamos a valorizar a psicologia, a psicoterapia, a neurociência, também a espiritualidade – seja qual for a tradição ou a religião, porque não há aqui nenhum conceito religioso –, isso é muito importante para termos uma sociedade equilibrada, mais humana e com mais valores. Não podemos ter uma sociedade equilibrada quando as pessoas vivem só do intelecto. O que vamos fazer é surpresa, estamos ainda a trabalhar nisso.