Era uma jovem inquieta que se sentia mal na sua pele e tinha a impressão de ser uma pessoa falhada, mas acabou por desenvolver um método que sintetiza a sabedoria ocidental e oriental e fundou a Insight Meditation Community of Washington D.C.. Hoje, lidera um programa de formação de instrutores de meditação online, com alunos de 50 países, dedica-se à escrita (quatro livros publicados), faz palestras gratuitas e o seu podcast tem mais de 1,5 milhões de downloads mensais.
Doutorada em Psicologia Clínica e mestre budista, a norte-americana Tara Brach nasceu em Nova Jérsia, cresceu e estudou em Massachusetts e vive no estado da Virgínia. Aos 67 anos, traz na bagagem a vivência numa comunidade terapêutica (onde testemunhou o lado menos glamoroso dos gurus) e décadas de trabalho clínico na área das adições e do trauma. Disso nos fala no bestseller Aceitação Radical (Lua de Papel, 375 págs. €16,90), que inclui meditações guiadas para lidar com a angústia e o sofrimento. Ao longo de 50 minutos de conversa via plataforma Zoom, houve tempo para falar sobre o estado do mundo, o ativismo social e a condição humana. Prestes a ser avó pela segunda vez, Tara desafia-nos, numa postura calma, quase desconcertante, a aceitar o que vemos e sentimos sem resistirmos, entrarmos em negação ou resignar-nos. Uma opção difícil, hercúlea por vezes, mas libertadora, já que permite aceder ao que nos liga verdadeiramente e reencontrar o nosso caminho de casa. É que as revoluções serenas, assegura, fazem-se a partir da raiz.
Como surgiu a ideia de integrar a psicologia e os ensinamentos budistas?
Cresci numa família com tradição humanista e de ativismo social. O meu pai era advogado dedicado aos direitos civis e a minha mãe, diretora-executiva na área das adições. Quando entrei para a faculdade, em Massachusetts, com a intenção de me formar em Psicologia e Ciência Política, iniciei-me na prática de ioga. Nessa altura, apercebi-me de que os sentimentos de zanga e ódio nutridos por muita gente eram entraves sérios ao trabalho político de criar um mundo melhor. Inscrevi-me então num ashram e acabei por viver lá durante dez anos.
O que aprendeu nessa comunidade, em Massachusetts?
O mais interessante, para mim, foi descobrir como silenciar a mente, desenvolver as capacidades de concentração e foco e guiar a minha ação a partir do coração. Sentir que pertencia ali e contava com o apoio da comunidade não me impediu de ver, também, a faceta patriarcal dessa estrutura, com normas rígidas e autoritarismo. Pouco antes de sair de lá, descobri que havia casos de abuso sexual. Falei com o líder da comunidade e senti-me emocionalmente violentada por ele. A experiência que me ensinou tanto foi a mesma que me levou a sair.
Foi-lhe difícil adaptar-se à vida lá fora?
No ashram, os casamentos eram arranjados pelo líder espiritual. Da minha união nasceu uma criança, que tinha 5 anos quando saí da comunidade. Eu e o meu marido – ainda hoje somos bons amigos – decidimos divorciar-nos. Tive a sorte de contar com o apoio dele na educação do nosso filho. Quinze anos mais tarde, encontrei a pessoa com quem escolhi casar. Entretanto, concluí os meus estudos universitários, continuei a explorar o budismo e a frequentar retiros. Envolvi-me nesse universo e comecei a dar aulas.
Como define a aceitação radical? Aceitar também pode ser aguentar.
Não é uma atitude passiva ou resignada, pelo contrário: é reconhecer a verdade do que se passa no aqui e no agora e abrir o coração. Por exemplo, se eu estiver a sentir-me ansiosa nesta entrevista, assumi-lo francamente tem um poder enorme. Resistir ou combater um estado emocional indesejável e fazer de conta que não existe, ou fingir, consome muita energia e vitalidade. Na prática da aceitação radical, que é uma forma de meditação, percebemos que somos mais do que as nossas emoções, sem ficarmos possuídos por elas.
Propõe que aceitemos incondicionalmente emoções perturbadoras: culpa, medo, dor, zanga ou insegurança. Como é que isso se faz?
Costumo usar a metáfora do oceano. Nós somos o oceano, que inclui o que pensamos e sentimos. Ao identificarmo-nos com isso, perdemos a visão do todo e sofremos. Dar espaço ao vaivém das ondas liberta, impede-nos de sentir medo delas. Se nos esquecermos disso, acabamos enjoados!
Qual o lugar do desejo: pulsão de vida ou algo de que devemos desapegar-nos?
O desejo é uma parte natural de estar vivo, faz-nos viver plenamente. Ser privado de viajar ou de estar com outros, por exemplo, pode levar à procura de substitutos, seja comer de mais ou induzir estados mentais com substâncias. Devemos aceitar e acolher o desejo sem deixar que nos controle, sob pena de ficarmos escravos dele.
E no caso das adições, em que a insatisfação é constante?
Trata-se de necessidades que não foram preenchidas. A pessoa que não se sentiu amada pelos pais em criança sofre e agarra-se à comida, às drogas ou ao sexo. Na perspetiva budista, a proposta é não rejeitar nem agarrar-se às experiências. Desfruta-se mais quando não há sofreguidão.
Isso tem que ver com sentir-se aquém, a que chama “transe do desmerecimento”?
O sentimento crónico de não ser suficientemente bom ou merecedor é uma das formas mais penetrantes de sofrimento social. “Ah, até podem gostar de mim agora, mas se me conhecerem melhor vão rejeitar-me.” Se passarmos o tempo a pensar que há alguma coisa errada em nós, ficamos num estado de guerra interna e incapazes de amar.
As sociedades que valorizam muito a competição potenciam este “transe”?
A competição e o individualismo social impõem uma série de padrões a cumprir para se estar bem. Somos imperfeitos. Focarmo-nos apenas nessas exigências limita-nos. Até nesta entrevista: “Estarei a ser suficientemente clara, autêntica?” Isso tende a ser mais crítico para quem cresceu num ambiente familiar disruptivo. Há culturas melhores a promover o sentimento de fazer parte de uma comunidade. Cito Madre Teresa: “Se não temos paz é porque nos esquecemos de que pertencemos uns aos outros.” O sistema de hierarquias também contribui para este transe: quem não está na posição dominante, em termos financeiros, raciais, etc, tende a julgar-se demasiado. Deixe-me perguntar: faz isso?
Eu? Às vezes, sim.
Eu também. Nem sempre estamos conscientes do quanto esta sensação de estar a falhar ou de ter alguma coisa de errado interfere na espontaneidade, na capacidade de estarmos recetivos, expressar afetos e desfrutar do momento.
Os seus livros são de autoajuda, por vezes criticada no meio da psicoterapia…
Na prática da meditação, e da aceitação radical em particular, a meta é ir além da perceção de sermos seres separados. Integrada numa psicoterapia, tem um efeito sinergético. Acompanhei pessoas que sofriam de ansiedade e depressão, e parte do meu trabalho consistiu em ensiná-las a não se identificarem apenas com o seu Eu ansioso ou deprimido e a terem em mente a totalidade do Ser.
Tomemos como exemplo a pandemia e o medo em torno do novo coronavírus. O que está ao nosso alcance para superar estados ansiosos e afins?
Muitos de nós temem ser infetados ou transmitir a infeção a outros sem saber. Outros estão mais preocupados com a questão financeira. O primeiro passo, numa sessão, seria perguntar “o que se passa no seu corpo agora?” e usar a prática da atenção plena (mindfulness). O segundo seria questionar “consegue estar com o que sente de uma maneira bondosa?”, sugerindo que faça uma pausa, coloque a mão no peito de forma carinhosa e diga a si próprio “estou aqui”, “não me vou embora” ou outra mensagem deste tipo. Há uma mudança de registo, a pessoa deixa de estar presa nas ondas.
Esta prática está ligada à religião?
De todo. Curiosamente, a experiência é suficiente para criar um relacionamento diferente consigo mesmo e expandir a consciência de si. As religiões atribuem nomes a isto – consciência divina, natureza de Buda –, mas eu chamo-lhe exercitar a atenção.
Nas vítimas de abuso, bullying e outras que requerem uma intervenção clínica mais específica, a meditação revela-se útil?
A abordagem de traumas pode implicar a prescrição de fármacos e ter o suporte da atenção plena, orientada para acalmar ou regular o sistema nervoso simpático. Adotei esse procedimento muitas vezes com a finalidade de fortalecer o sistema nervoso parassimpático (responsável pela resposta de relaxamento) e estabilizar pacientes. Há outras medidas úteis. Monitorizar a respiração, inspirando devagar durante quatro a seis segundos e expirar devagar por um período equivalente. Praticar o enraizamento (grounding), concentrando-se na gravidade e na segurança da ligação à terra. Pensar em alguém que transmita segurança e em quem possa confiar. Imaginar essa pessoa a pôr a mão no ombro ou a ser abraçado por ela. São estratégias de meditação que promovem calma e devolvem um estado mais resiliente às vítimas de trauma.
Este treino aprende-se na relação terapêutica ou dispensa-a?
Somos criaturas sociais, precisamos da relação com os outros. Mais de dez mil estudos científicos confirmam o papel regulador da presença de alguém confiável na recuperação de situações de abuso, dependências e na ansiedade do desempenho. Tomar contacto pleno com sensações perturbadoras oferece segurança, mas pode não ser benéfico, pelo menos no início, para quem experimentou momentos de pânico e desorientação, pois nos casos de trauma existe o risco de se ficar possuído por esses estados intensos. Só quando o sistema nervoso fica estabilizado se consegue aceitar o que se passa no corpo e permanecer na experiência com mensagens tranquilizadoras.
Nas palestras e meditações guiadas (disponíveis no YouTube, no Spotify e em podcasts), notou diferenças desde o início do confinamento?
Aumentaram muito os relatos de ansiedade e solidão e perguntas sobre o que fazer quanto a isso. Estes encontros têm sido o refúgio que muitos anseiam em tempos de medo, de incerteza e de fragmentação. São três milhões de visitantes por mês, dos EUA, Europa, Austrália e Ásia. Procuram conectar-se com sentimentos de coragem, de presença e de união.
Como se restabelece a união, em especial na América, tão dividida na situação atual, racismo incluído?
A comunidade afro-americana tem sido a mais afetada pela pandemia. Já sofreu muito antes, mas ver o linchamento de George Floyd, em grande plano, um segundo, dois, três minutos, cinco, sete… Essa lenta agonia despertou toda a gente para o horror do racismo. As minorias, sejam negras, indígenas ou outras, sentem uma desconfiança legítima. A maioria branca ganha consciência do seu enviesamento, do sistema repressivo que dura há quatro séculos e no qual não pode continuar a participar. Sou contra as armas. O meu ativismo tem sido orientado no sentido de termos um novo líder, com mais compaixão. Fazer uma pausa, aceitar a realidade violentíssima que temos. Deixar-se tocar por esta realidade e admitir “ok, isto é o que é” não se resume a um exercício de passividade. Sem a coragem de aceitar quem somos agora, com ternura, não seremos livres nem capazes de nos transformarmos, individual e coletivamente.