Bernardo Pires de Lima, 41 anos, politólogo e especialista em Relações Internacionais, acaba de lançar um ensaio, em forma de livro (chancela Tinta-da-China), em que reflete sobre o populismo, o autoritarismo, a Europa, as relações com os EUA e com a China. Portugal na Era dos Homens Fortes – Democracia e Autoritarismo em Tempos de Covid será apresentado, dia 21, no Palácio Galveias, por Marcelo Rebelo de Sousa. Nesta entrevista, fala destes e doutros temas, num momento crucial de encruzilhada, entre a pandemia e as transformações internacionais, nas relações de poder: “Não temos um mundo bipolar, unipolar ou mesmo multipolar: estamos num G-Zero.”
Há quem diga que os partidos populistas são democráticos. Não só não rejeitam as eleições como as desejam. O argumento é satisfatório?
Como digo neste livro, os partidos populistas são filhos da democracia. Não são perigosos por serem populistas, mas porque são nacionalistas, agressivos e deterioram a saúde da democracia. De início, jogam segundo as regras do jogo, mas, numa fase posterior, numa posição dominante, estes partidos adotam uma posição autoritária que tende a deturpar a democracia e a piorar a sua saúde. Esse último estádio da alteração da ordem interna é corporizado em sucessivas alterações constitucionais até ao golpe final. O caso da Hungria é paradigmático.
Então, são sempre um perigo para a democracia?
Não necessariamente. O sobressalto levantado por esses partidos pode até servir de alerta e ajudar as democracias a corrigir, a tempo, alguns problemas… Mas nós não estamos aí. Nós estamos num campeonato em que esses partidos, com a sua agenda xenófoba, racista, protecionista e hostil às instituições (com a ideia de refundação das repúblicas…), se tornaram perigosamente agressivos. Ainda por cima, no campo internacional, funcionam em rede…
Mas isso não é uma alternativa para o formato de construção europeia, com a tal Europa das nações?
O problema, aqui, é que Moscovo tem sido fundamental para a articulação dessa rede. É uma teia habilmente montada pelo Kremlin. Nalguns casos, com melhores resultados do que noutros. Muitos desses partidos já passaram a fase da contestação sobre as crises migratória ou da zona euro. Têm uma agenda muito mais extensa e atuam já moldando políticas públicas, sobretudo quando integram coligações governativas. Um bocadinho como em Israel.
A inclusão desses partidos em coligações com forças mainstream ajudam a institucionalizá-los ou, pelo contrário, trazem uma contaminação populista?
Depende de que Europa estamos a falar. Há vários modelos, alguns de base contestatária após a crise financeira, como o Podemos, mas eu estou a pensar, sobretudo, em partidos de extrema-direita. Isso teve expressão nas urnas, no nacionalismo inglês, através do Brexit, e na vitória de Trump, que representa uma forma de nacionalismo norte-americano, umbiguista, paroquial e que remonta a uma certa tradição nos EUA, mas, sobretudo, que consome por dentro o Partido Republicano e o retira do sistema, para o tornar um partido de culto a uma figura.
Entre os seis homens fortes do seu livro, exclui Boris Johnson. Porquê?
Boris Johnson não é igual a Trump e há muitas segundas linhas. O Partido Conservador não foi capturado como o Partido Republicano. E o caso brasileiro é muito semelhante ao norte-americano. Eu não incluo Boris Johnson nessa quadrilha, porque ele não chega ao poder da mesma forma que os outros. Joga todas as regras, tem uma batata quente na mão, usa-a no processo eleitoral, coloca-se numa situação de tudo ou nada e obtém uma maioria absoluta. Fez política. Podemos criticar a estratégia, mas não se trata de poder abusivo ou de controlo das instituições, perseguição a opositores ou incitamento ao ódio.
Defende que a democracia norte-americana pode não resistir a mais quatro anos de Trump…
Um sistema que está montado no bipartidarismo e na negociação permanente no Congresso pode sofrer muito com esta disfuncionalidade do executivo, com a forma caótica como atua no processo de decisão… É que o papel do Partido Republicano é muito importante e nós não temos ninguém para pegar nesse partido, qualquer tipo de discurso mais moderado, nada.
O estado de negação do trumpismo, face a uma eventual vitória de Joe Biden, não provocará tal tensão na sociedade norte-americana que torne a América irrelevante ou mergulhada apenas em problemas internos?
O trumpismo sobreviverá à eventual saída de Trump da Casa Branca, até porque é anterior à chegada de Donald Trump. Chamemos-lhe Tea Party ou “nativismo político”. Não vão aceitar os resultados porque a base cegou completamente. Há fações militarizadas, armadas, em congressos estaduais, etc. Mas mais quatro anos de Trump são piores, porque corroem o que resta do institucionalismo norte-americano. Joe Biden melhorará as políticas públicas, a gestão da pandemia e normalizará o debate institucional.
Mesmo assim, Joe Biden não é um candidato empolgante… não concorda?
É fundamental não termos o mesmo discurso das eleições anteriores. Isto não é a escolha de um mal menor. Não digo que o rato Mickey seria preferível a Trump, na Casa Branca, mas isto é a escolha para salvar uma democracia, normalizar as relações externas e estabilizar o mundo. Não se pode desvalorizar Joe Biden. Ele foi um enorme senador, foi fundamental como vice-presidente de Obama, para desbloquear vários shutdowns da administração, tem uma rede parlamentar enorme, tem pedigree no partido, é inteligente do ponto de vista argumentativo.
Com o esbatimento da influência dos EUA, quem os substitui?
Essa é uma das interrogações. Nós já não estamos numa ordem bipolar, unipolar nem sequer multipolar… Nós estamos num “G-Zero”. E esta pandemia provou que não há qualquer vencedor e que há vários derrotados. A verdade é que não podemos reduzir as relações com os EUA às relações intergovernamentais… No caso português, tem sido pouco trabalhado o resto: relações entre instituições, universidades, Ciência, empresas, agentes culturais. Porque o nosso presidente da Assembleia da República nunca se lembrou de convidar a senhora Nancy Pelosi [presidente da Câmara dos Representantes] para vir ao nosso Parlamento?
Defende “melhor investimento” na Defesa. A Europa precisa de músculo militar, para que a sua diplomacia seja mais eficaz e relevante?
Precisa de mais agilidade e coordenação. Não digo um Exército Europeu, mas precisa de melhorar essa vertente. Mais investigação e desenvolvimento, na parte digital e cybersecurity, nomeadamente. E, sim, isso torna mais eficaz a força diplomática. É muito importante que bons diplomatas tenham bons soldados na retaguarda.
E nessa maior afirmação da UE, qual o papel de Portugal?
A saída do Reino Unido abre a porta para que outros, em minicoligações de países dentro dos 26 – e eu falo muito, no livro, da utilidade desta geometria variável –, possam ter um papel importante nessa afirmação. Nesta tal geometria, Portugal pode ter um papel, porque está há muito tempo neste chip de coordenação interministerial de Defesa, nas missões, dentro de uma vertente geoestratégica ampla nada redutora: consegue ter um raciocínio para África, outro para o Médio Oriente, outro para o Sudeste Asiático.
Fala muito na importância do escrutínio dos media, para a saúde das democracias. Como conseguirão eles cumprir a missão sem dinheiro e com cada vez menos audiência?
É uma pergunta de um milhão de dólares, mas a qualidade vence sempre. Não sei se faz muito sentido ter tantos media em Portugal, mas a qualidade vai prevalecer. A questão estética é importante. Qualquer pessoa que consuma informação, se tiver um produto excelente internacional e um produto mediano nacional, se calhar assinará mais facilmente o internacional, mesmo sendo mais caro. Os empresários têm de perceber isto e concluir que a qualidade compensa. Há limites para a estupidificação das pessoas. Ninguém está 20 anos a ver o Big Brother.
Fala em “tribalismo” na política. Mário Soares e Freitas do Amaral, dois moderados mesmo na rivalidade que pontualmente mantiveram, conseguiam ver qualidades um no outro. Isso, hoje, não existe?
Não se nota. O outro não tem valor. Não sei se é pela voragem das redes sociais. O extremo está na política brasileira e norte-americana, mas a espanhola também tem níveis de agressividade muito elevados. E, em Portugal, estamos num crescendo, com uma retórica muito pessoal, a falar para a nossa tribo que se mobiliza à volta de chefes. E há o contexto das redes, o que transformou tudo. Todos os que querem fazer da política um local recomendável deviam sair das redes sociais. Isto é: ou os políticos moderados estão nas redes para serem coerentes com o seu perfil, ou entram naquele “boneco” e está tudo estragado. Rui Rio tem sido particularmente infeliz neste campo da gestão da linguagem.
Quando caracteriza o sucesso do populismo, fala dos “salvadores”, incluindo os que nos vêm salvar da liberalização dos costumes. Esta lógica influenciou a petição contra a disciplina de Educação para a Cidadania?
Não creio que aqueles 100 nomes da petição defendam forças ou ideias populistas. Pelo menos, uma grande parte, não. Mas existe um ambiente, de origem internacional, que vai beber desse choque cultural e ideológico sobre o papel do Estado. Isto tem origem nos extremos, nomeadamente na extrema-direita, muito identitária, que procura separar o que é Estado do que é estritamente privado, como dois campos inimigos. E uma sociedade saudável deve casar as duas dimensões. Esta contracultura antiprogressista veio para ficar.
A esquerda também pode ser perigosamente identitária, como o demonstrou a deputada Joacine Katar Moreira…
Mas terá a mesma expressão, a mesma representatividade? Na extrema-direita existe uma reação mais estruturada.
Que desafios se colocam à presidência portuguesa do Conselho Europeu, em 2021?
O nosso semestre segue-se ao alemão, o que é bom. Temos os desafios do aprofundamento das relações, fundamentais para o futuro, com a China, a Índia e a África, com algumas cimeiras pelo meio. Portugal dispõe de uma boa escola diplomática e deve investir na preparação destes dossiers.
Entretanto, temos uma eleição presidencial. Sabendo-se que pode haver um vencedor, mais do que provável, à partida, o que é importante que se discuta?
Será um momento que definirá os termos do debate. Há um determinado discurso que está a ter uma ascensão meteórica e que vai a votos
… Com o candidato André Ventura?
… Mas o outro lado não deve hipervalorizar esse nicho nem colocar a eleição como se fosse um despique entre duas linhas e não houvesse mais nada. Isso é o que esse lado quer… Quer ser o challenger… Deixar que isso aconteça será um erro tremendo do Presidente em exercício… E depois desta eleição o Presidente sairá com uma legitimidade, eventualmente reforçada, o que, para qualquer tipo de acordos, mais à direita ou mais à esquerda, faz dele uma figura preponderante.
Um dos pontos, no livro, talvez mais difíceis de fundamentar é o da proposta de criação de uma entidade fiscalizadora para escrutinar as promessas, em contexto eleitoral, de forma a “filtrar o eleitoralismo e a intrujice” populista. Os partidos sistémicos não fazem eleitoralismo nem cometem intrujices em campanha?
[Sorrisos.] Sim, certamente que todos os partidos fazem isso. Mas a proposta é baseada no exemplo holandês, que tem essa entidade há algumas décadas. É uma entidade pública e suficientemente representativa. Uma espécie de Conselho de Finanças Públicas para os programas eleitorais, que faz um check-up completo aos programas de todos os partidos concorrentes, com um documento final, que é público, onde se procura perceber como cada medida é – ou não é – quantificada. Isso obriga os programas a serem melhores, logo a montante.