Perdoe-se de antemão o “tu cá, tu lá”. Na verdade, entrevistado e jornalista nunca se tinham visto mais gordos até conversarem no jardim da casa do primeiro, a curta distância da Foz do Douro. Mas o facto de serem produtos da mesma geração, e de partilharem parte da geografia sentimental portuense e do universo musical, baixou defesas. Acresce que Miguel Araújo, 42 anos, é da casa: cronista da VISÃO, músico, autor e voz de canções já agasalhadas na banda sonora das nossas vidas, lança agora o segundo livro (Seja o Que For, Companhia das Letras), em que colige o muito aqui escrito. Nas páginas à varanda dos dias, está o espectador atento de quotidianos e o druida cuja poção mágica ata fios improváveis: memórias de menino, a crença na música sem polícias, em “grandes nadas” e “pequenos tudos”. Miguel Araújo não é homem para este tempo de trincheiras. Ou se calhar até é, por tentar ver o Bem, vejam bem, onde tresanda a enxofre. Há nele algo de teimosia ecuménica, harmoniosa e antivedeta. Até irrita. Até contagia. Parece impossível.
Foste buscar o título do livro a um poema de Daniel Faria, que queria ser monge e num mosteiro morreu. Qual é a mensagem?
Seja o que for / Será bom / É tudo reflete a forma como vejo o mundo. Em miúdo, entre a casa dos meus pais, em Águas Santas (Maia), e o Colégio Luso-Francês, no Amial (Porto), passava por bairros de lata. Faziam parte da paisagem diária. O poema inspirou-me por isso: não sabemos o que virá, mas, olhando para trás, será melhor. Importante foi também o Factfulness [livro de Hans Rosling]. Ofereci uns 20 no Natal. O autor trabalhava para o Bill Gates e prova que a vida foi sempre melhorando, da vacinação à extinção das espécies. Mas, dos mais ignorantes aos mais instruídos, existe a ideia contrária.
Que ser religioso és?
Fui educado no cristianismo, participo em iniciativas cristãs, sobretudo as dos jesuítas, mas sou um não cristão praticante [risos]. Não creio na ressurreição da carne, num ser unigénito, filho só da sua mãe ou que Jesus voltou à Terra ao fim de três dias. Para mim, a ressurreição de Jesus é, por exemplo, o facto de a sua mensagem perdurar.
És grato às gerações que venceram crises e depressões e vês o Bem até nas redes sociais…
Nunca me apanham em petições do contra, nunca adiro. Sou a favor de coisas boas. Ser contra algum mal é dar força a esse mal, publicitá-lo. As redes sociais estão no início e a seu tempo vão estabilizar, com regras. Na Revolução Industrial, também se exagerou, mas as leis criaram alguma harmonia e progresso. Somos herdeiros desse património e todos os atos contam: por isso, sorrio sempre a quem me serve o café. Se eu rosnar, é mais uma rosnadela na vida dessa pessoa, que depois discute com a mulher, bate no filho, o filho anda à porrada na escola e alguém ainda vai morrer esfaqueado num beco
Como te manténs otimista?
Supõe-se que os noticiários promovem o pessimismo, mas é neurológico. Damos importância a perigos e a ameaças, é uma questão de sobrevivência da espécie, e estes noticiários também levam a corrigir o que está mal. Mas, para me proteger, não vejo muitos telejornais. É impossível todas aquelas desgraças serem o espelho da realidade. Por cada ministro que faz asneira, há não sei quantos que fazem coisas boas. E também há sempre o bombeiro que chegou a tempo.
Mas este é um tempo minado por mentalidades de trincheira…
Nas redes sociais, arranco as ervas daninhas da desgraça e das catástrofes, é só paz e amor [risos]. O Pessoa dizia que não se devia ter opiniões muito firmes, nem crer demasiado nelas. Desconfio de opiniões profundas, têm algo de empedernido. Uma mente sensível deve estar aberta à mudança. Quem dá sempre sentenças e opiniões nem devia tê-las.
Por que causas tomas partido?
Apoio a Bagos d’Ouro, associação que ajuda mães sem condições para terem os filhos, faço parte de outras instituições e dou concertos solidários…
Como estes tempos condicionaram o teu quotidiano?
Vitais são a família e o trabalho no meu estúdio, em casa. Tenho uma relação meio metafísica com o dinheiro, não o acarinho como quem rega flores. Mas o impacto financeiro é brutal: passei de 70 concertos por ano para dois. Muita gente vive desta engrenagem e todos procuramos outras soluções. O negócio da música é juntar muita gente. Quando isso não acontece, vale menos e reflete-se nos cachets. Penso nas músicas, gravo-as, dou as minhas corridinhas, o meu mergulhinho no mar, ando de bicicleta com os meus filhos… Não se pode viver na angústia, na tristeza e no desânimo. As previsões económicas mais fatalistas nunca contam com a adaptação do ser humano. De repente, um restaurante abre uma janela ou serve refeições à porta, há concertos online… Algo de bom virá daqui. No meu caso, até apareceram coisas que, com a azáfama da estrada, nunca poderia aceitar: uma banda sonora para um projeto do César Mourão, na SIC, e uma coisa para a TVI. Faço outra espécie de trabalhos com a minha equipa. Vai rolar menos dinheiro, mas descobri que a performance e os concertos não eram tão vitais. Achei que ia bater um bocado mal, até porque adoro tocar ao vivo e escrevo muito em viagem: é bom para a criatividade ver a paisagem a mudar. Mas, há dias, fui de bicicleta até à Universidade Católica assinar livros e fiz uma música pelo caminho [risos].
Dessacralizas a criação artística. A inspiração surge como?
Estou sempre a pensar em ritmos, melodias. Enquanto aqui estamos estou a dedilhar umas porcarias. É o meu oxigénio. Se a ideia surgir, solto-a musicalmente, mesmo durante a noite. Mas o talento é um cavalo à solta, precisa de freio. As ideias, por si só, não são nada. E não são tão épicas como parecem na nossa cabeça. Descerão à terra com a nossa voz, maneira de escrever e tocar, pior do que imaginámos. É preciso humildade para aceitar isso. Deus dá o dom e o chicote, disse-me o Marcelo Camelo [da banda Los Hermanos]. As ideias não se procuram nem se rejeitam. O Salvador Dalí deitava-se no sofá, com uma colher na mão e um prato por baixo. E só quando a colher caía é que sentia o espírito certo para pintar. Para o Tom Waits, a ideia é uma borboleta que pousa em nós, não se pode caçá-la. Surge quando mudamos uma lâmpada ou arranjamos a máquina de lavar, quando a parte racional está concentrada e a outra meia mole, recetiva. Só me surgem canções assim.
Dizes que devemos seguir a panca, as obsessões e as manias…
É seguir aquilo que, aos 13 anos, nos ocupava a mente, como diz o Bill Gates. No meu caso, foi a música, mas quando tirei 16% a Biologia, o meu pai ameaçou que me partia a guitarra. A música era um desvio, associado a um futuro incerto. Se fosse hoje, “ui, oito horas enfiado no quarto a tocar guitarra?! Psiquiatra!”.
O que viste no Bryan Adams?
Foi a minha primeira paixão musical. Lembro-me de ir ao Corte Inglés de Vigo com os meus pais e só querer a cassete do Reckless! Devia ter 6, 7 anos. As canções dele punham-me maluco, a fervilhar! Ele e o Jim Vallance, seu grande parceiro de escrita, estiveram um ano, das 9 da manhã às 9 da noite, sentados frente a frente, cada um com a sua guitarra, a fazer músicas. Aprendi muito sobre disciplina e trabalho a analisar esse álbum. O primeiro concerto do pessoal da minha geração foi o do Bryan Adams, na Exponor. Vi-o encostado às grades! Por isso, desconfio da crítica musical. É tudo tão relativo. Só pessoas da mesma geração podem conversar sobre música. Eu só acreditaria em críticos musicais se eles fossem crianças de 13, 14 anos. É nessa idade que o nosso universo musical começa a ser atado. Somos esponjas, absorvemos tudo e só depois percebemos se fomos aldrabados ou se a banda é genuína.
A Foz betinha, burguesa e rural cruzam-se nos teus textos…
A minha família é de Águas Santas e os meus antepassados eram comerciantes de sucesso, da burguesia do Porto. Mas o conceito de betinho da Foz é típico de uma espécie de ex-colónia inglesa, em que todos querem ser ingleses. Ter um nome estrangeiro é cartão de visita. Cheguei aqui com 10 anos e desconhecia isso, mas os meus melhores amigos têm nomes estrangeiros, são de famílias ligadas ao vinho do Porto. O provincianismo lisboeta é francês, o provincianismo fozeiro é inglês [risos]. Temos o Lawn Tennis Clube, o pessoal chama tio e tia aos pais dos amigos. Ao princípio, era estranhíssimo, mas depois absorvi, sem pretensões.
Escreves que a ascensão nacional da apresentadora Maria Cerqueira Gomes, dado o sotaque fozeiro e manteigueiro, foi quase revolucionária. Manteigueiro?!
Os azeiteiros punham azeite no cabelo. Na Foz, como havia mais dinheiro, punham manteiga. [Risos.]. Ninguém usa o termo, mas o meu grupo de WhatsApp com malta daqui chama-se Manteigueiros…
A pronúncia ainda é uma espécie de última fronteira?
Atores de telenovela e apresentadores dizem-me que os obrigam a tirar a pronúncia nos cursos. Num País pequeno, é triste essa normalização. Na série norte-americana How I Met Your Mother, as personagens vêm de sítios diferentes e tiram partido disso.
O que distingue os portuenses?
O Marcelo Camelo ficou em minha casa quando Los Hermanos vieram cá. Andou aí à solta, foi à Ribeira e veio impressionado com a grosseria das pessoas, mas os irmãos não se tratam com gentileza, não é? “Queres um café? Vai tu fazer, não vês que estou ocupado?!”. O Marcelo pensou que eram os piores animais que já tinha visto, mas depois percebeu que já era família. “Afinal, tratam-me como um filho!”, dizia [risos]. Essa grosseria é a maneira que os portuenses têm de acolher.
O livro está cheio de memórias. Mas não és dado a nostalgias.
Tenho gratidão pelas minhas memórias e cultivo-as, escrevendo, cantando. Mas Deus me livre de voltar ao dia de ontem ou aos tempos do liceu! Muitas pessoas ficaram paradas em fases das suas vidas, mas eu mato as saudades vivendo. Na canção Trilhos Urbanos, o Caetano Veloso fala da infância em Santo Amaro, “sítio onde o imperador fez xixi”, e isso é fermento quase obrigatório para a escrita e a criatividade.
Há algo de torguiano nisso. O universal é o local sem paredes?
Ah, sim! Isso é a lição número um. Quando mostrou os primeiros textos a um mestre, o Leonard Cohen ouviu: “Tudo bem, mas não digas árvore. Diz plátano.” Só se é universal sendo específico, mesmo que não se entendam os termos. Adoro ouvir Randy Newman e, no Land of Dreams, ele fala do sítio onde nasceu, da família, das ruas. Não tem de ser verdade, mas só assim as pessoas acreditam e se identificam.
Canções icónicas colaram-se a figuras, geografias, sotaques: Cuidado com as Imitações (Sérgio Godinho), Chico Fininho ou Baile da Paróquia (Rui Veloso), Postal dos Correios (Rio Grande), a tua Dona Laura, O Pica do Sete, por aí. Assumes a herança?
Completamente. Somos elos da mesma cadeia, dizia o Pete Seeger. Nenhuma canção popular existe sem um bocadinho da anterior e sem fornecer outro bocadinho à próxima. Sinto-me herdeiro do Rui Veloso, do Carlos Tê, do João Monge, do Jorge Palma, da Mafalda Veiga – que adoro! –, dessa gente toda. Pego nessa herança e transformo-a, como eles fizeram.
Já te podem chamar cantor pop?
É a designação que me conforta, a única sem conservadorismo. O pop é a lixeira, a sucata, o que se quiser. Não existem regras, fronteiras, vassalagens ou guardiões. A tradição da pop é cortar com o passado, mexer, transformar. A pop dá-me liberdade, não tem polícias.
De onde te vem o pânico às profissões com “p”?
Não sei, mas quem não tem medo de palhaços? E de padres? E de gajos que falam à poeta? [Risos.] Fui às Correntes d’ Escritas, na Póvoa de Varzim, comecei a ouvir os poetas com voz de Florbela Espanca, ia falar a seguir e fiquei em pânico! E polícias a falar à padre Godofredo, de Águas Santas? Ui…
Padeiros também?
Padeiros, não. Mas, pensando bem, acordam às três da manhã, trabalham de noite… huuumm, não sei… [Risos.]