Já de gravador desligado, em conversa solta, haveria de dizer: “Os atores são atletas.” Aos 47 anos, Maria Rueff dá corpo e voz a Hécuba, de Troianas, em cena nas Ruínas do Carmo, em Lisboa. A atriz cómica interpreta a rainha trágica de Eurípedes, provando que é, como diz, nas “tintas mais fortes da representação” que se excede. Merece um “dez perfeito”.
A propósito do facto de estar a fazer uma peça nas Ruínas do Carmo: como vê o que está a acontecer ao centro histórico de Lisboa?
Como miúda que cresceu em Lisboa, embora tenha raízes no Norte, confesso que me angustia um bocadinho ver desaparecer a Lisboa dos “bons malandros” das crónicas de Mário Zambujal, ver a cidade a ser roubada aos portugueses. Sempre que aqui estou, refugio-me nesta leitaria [Leitaria Académica, onde decorreu a entrevista], porque me faz lembrar a leitaria onde passei a minha infância, na Graça, na Travessa das Mónicas. É como se fosse uma espécie de último reduto da portugalidade. Assusta-me a presunção, a invasão – e isto nota-se muito nas Ruínas do Carmo. É quase como se alguns dos que nos visitam nos tratassem como Terceiro Mundo.
Não reconhece que, em termos económicos, o turismo é importante para o País?
Claro que reconheço, claro que entendo. Foi absolutamente necessário sairmos da crise, para todos nós. Não esqueçamos que os palhaços são sempre a primeira coisa a ser cortada… Mas também acho que temos de ter muito cuidado, para não perdermos a nossa essência, sob pena de não termos mais alguém a visitar-nos e de tudo se transformar numa Disneylândia, numa Las Vegas. Haveremos de arranjar um meio-termo, temos engenho. Sempre o tivemos.
É sobretudo pelo que revela da guerra que faz sentido continuar a representar Troianas?
Escolhi o humor como arma política. Aliás, o humor é das coisas que mais gosto de fazer, que mais me preenchem, é o meu manifesto maior como artista. Também gosto do entretenimento puro e duro, mas prefiro sempre dizer qualquer coisa, que as pessoas reconheçam na caricatura uma chamada de atenção. A História são ciclos, já o sabemos. O que é fundamental é perceber que esta Hécuba, que estas mulheres, que têm praticamente 2 500 anos, são iguaizinhas às da Síria. Na figura destas crianças e destas mulheres, que são levadas como escravas para a Grécia, também está o Mediterrâneo, a violência doméstica, a violação, o desejo pelo poder absurdo, a ganância, o falso orgulho. Parece-me que este grito de alerta faz cada vez mais sentido.
Os clássicos ajudam-nos a compreender melhor o mundo de hoje?
Além de tragediógrafo, Eurípedes também era comediógrafo. Ainda recentemente, mostrando à minha filha O Grande Ditador, de Chaplin, recordei o modo como uns e outros tocam os extremos da vida. Chaplin põe a lupa no sítio onde é preciso pô-la. Desta vez, em Troianas, não veio o palhaço, veio o trágico de serviço [risos]. Mas o manifesto é o mesmo: trata-se de um alerta para a Humanidade. É o que nós, artistas, podemos fazer: olhem para isto e repensem-se.
As guerras de agora são menos visíveis por terem menos sangue?
Têm um sangue invisível que talvez seja menos nobre. Não sei explicar bem, digo “menos nobre” no sentido de mais perverso. Hoje em dia, o poder é demoníaco, esvazia as pessoas, escraviza-as sem que elas percebam que estão a ser escravizadas. E, apesar de tudo, nesta bravura dos homens e das mulheres que se batiam corpo a corpo, havia qualquer coisa que o olho no olho dizia ao outro. Na parte final de Troianas, o grego que leva Hécuba tem uma espécie de respeito último pela soberania, pela dignidade daquela mulher. Esta perversão dos nossos dias, o facto de sermos absolutamente controlados pelos googles, pelos algoritmos…
Poderá conduzir a uma certa desumanidade?
Absolutamente, é isso que quero dizer. Aliás, Hécuba afirma: “Ao menos, quando morríamos na guerra, ainda havia alguma honra. Agora, isto é o terror irracional. É de homens sem coragem.” A meu ver, nos nossos dias, há qualquer coisa deste terror irracional perpetrado por homens e mulheres sem coragem.
Está em palco com jovens atores, com estudantes. O que aprende com eles?
Novos estímulos, enche-me a alma de alegria. Desde O Programa da Maria [de 2001, o primeiro programa a solo de Maria Rueff] que gosto de estar rodeada de novos talentos. Também eu tive a sorte de ser encontrada pelo Herman, um génio, um bravo, um corajoso. Tenho sempre de falar do Herman porque ele e o Armando Cortez foram os meus dois grandes mestres. Sinto que é assim que está certo: quando reconhecemos talento em alguém, chamamo-lo para o nosso lado. E, da mesma maneira que o Herman se deixou tocar por mim, também eu me deixo tocar pelos mais novos.
Continua a fazer televisão da mesma maneira?
Faço televisão da mesma maneira. E continuo a fazê-la com os meus pares, que continuam a fazê-la da mesma maneira. Estou muito grata por ter amizades artísticas – casamentos – com 30 anos.
O que mudou na televisão desde então?
A televisão mudou muito com o Big Brother que, aliás, é hoje o que é o Facebook, o Instagram, os stories; as pessoas a fotografarem a comida em vez de comerem, a fotografarem a cidade em vez de viverem, aquele olho assustador sobre nós… Tudo isto tem um preço nos produtos que, digamos, são mais artísticos.
O que é o riso?
Uma grande rasteira.
E é poder?
É poder. Infelizmente, o riso não é um poder que destitua governos, mas é muito eficaz a demonstrar os erros do poder político e dos vários poderes. Nasci com essa apetência. Em primeiro lugar, porque se usava muito em minha casa; o meu pai, a minha mãe, todos tinham um sentido de humor excecional. Depois, também tem que ver com a aprendizagem que fiz de que a vida é absolutamente, como se diz na peça, “a roda da fortuna”. Ou seja: um dia temos tudo e, amanhã, não temos rigorosamente nada. Com a descolonização, em família, aprendemos todos muito cedo que era assim. Nos povos mais castigados, há qualquer coisa que, depois, nasce em riso e que ajuda a aliviar a carga da dor. Talvez a sabedoria seja isto… Julgo que foi o que me aconteceu.
Gosta mais de fazer comédia ou tragédia?
Tenho tanto orgulho de, no ano passado, ter feito o Zé Manel Taxista [espetáculo que celebrou os 20 anos da personagem de Maria Rueff] como, este ano, tenho de estar a fazer Hécuba. Pode duvidar, mas entreguei-me a 100% às duas coisas. Os Zés Manéis também são arquétipos e criar comicamente um arquétipo, implica tanto trabalho de estudo e de entrega como com um arquétipo trágico. A comédia e a tragédia são as tintas mais fortes da representação. E julgo que é aí, nesses dois lados, que funciono bem. Coisas a meio-gás talvez não sejam bem a minha praia…
As mulheres troianas, as mulheres de um modo geral, olham de outra forma para o mundo?
As troianas são arquétipos de todas as nossas mulheres. Tenho muita honra em estar a representar esta matriarca. Sou filha de uma grande matriarca e tenho orgulho nesses valores que a minha mãe me passou, em poder transmiti-los em palco. É engraçado como, ao longo do tempo, vamos reconhecendo a nossa infância, os valores milenares que nos foram passados… Parece-me que há um fio condutor em todas as mulheres e, como mãe, tento que esse fio não se parta, transmito-o diariamente à minha filha.
De que maneira?
Acho que todos esses fios estão cortados, os avós estão enfiados em lares, os miúdos estão alienados nos telemóveis… E eram essas verdades, esses statements, como se diz agora, que nos ajudavam a sobreviver até ao fim. Esses valores eram transmitidos nem que fosse a fazer um bolo ou a brincar com tachos ao pé da mãe ou da avó.
E deixaram de ser transmitidos pelas mulheres, é isso?
Sim, há uma perversidade no ar, uma quase desistência por parte dos mais velhos em passar essas ferramentas e, nos mais novos, uma sobranceria que a ignorância dá (no sentido de conhecimento da vida). Temo muito pelas próximas gerações, pela sua sobrevivência, pela sua estoicidade, pela sua capacidade de aguentar a tareia que a vida nos dá – porque a vida não nos dá só dias de sol.
Onde vai buscar a força para construir personagens como Hécuba, que têm esta dor maior de perder filhos e netos?
A minha bisavó, lembrava-me a minha irmã no outro dia, perdeu todos os filhos. E, nove meses depois de a minha avó morrer, ela partiu. Havia nos antigos uma bravura dada pela formação. Tínhamos pedagogos, mestres que nos preparavam para os outonos e para os lados solares da vida. Onde é que eu vou buscar essa força? À observação da Humanidade. Para mim, um dia feliz é estar numa esplanada com a minha filha a observar.
Que história é esta, contada pelo lado dos troianos, ou seja, dos vencidos?
George Theodoridis [tradutor/dramaturgo a partir do qual Luísa Costa Gomes traduziu Troianas] defende que Eurípedes é um humanista, porque não atribuía a desgraça da Humanidade a Deus, a Zeus, aos deuses, mas aos homens. Culpa os gregos, porque foram bárbaros. E isto, ainda hoje, é assim. O que eu acho é que, depois, a vida nos ensina a aprender a viver com a injustiça. Enfim, podemos entregar ao budismo e esperar que o karma, na próxima reencarnação, nos compense do sofrimento [risos]. Ou então, se somos cristãos, podemos acreditar que virá um reino que nos dará o paraíso que não vivemos na Terra. É uma aprendizagem muito grande trabalharmos a nossa espiritualidade de forma a sermos estoicos. Porque a justiça pode não vir a ser feita, e esta é uma lição muito difícil de aprender.
Para si, foi difícil?
Desde miúda que acho que vou mudar o mundo [risos]. Sou uma Mafaldinha contestatária, uma justiceira e, com a idade (estou quase a chegar aos 50), recebo este presente dos deuses do teatro: há coisas na vida que são injustas, por vezes nunca vemos a justiça ser feita. É duro, não é? Ouvir um cómico dizer isto…
A idade trouxe-lhe mágoa?
Também foi o que vi acontecer aos meus pais, com a descolonização… Claro que se sobrevive; sobrevive-se a rir, a cantar; sobrevive-se com a amizade, que é a forma mais pura de amor. Os meus pais contaram com os amigos e eu faço o mesmo. É por isso que estou aqui, ando com o António Pires [encenador de Troianas] de um lado para o outro, do teatro comercial ao teatro alternativo, sem preconceitos. Também ele veio de Angola e, portanto, de alguma forma, ambos somos refugiados. Daí a tragédia da história contada pelo lado dos vencidos. Prefiro servir a nobreza da estoicidade do que vender a alma ao diabo ou ser ínvia na forma de vencer.
Curioso como esse pessimismo não lhe tira a boa disposição.
Antes pelo contrário. É um pouco como Fernando Pessoa dizia: “Merda, sou lúcido!” Quando se chega aqui, serenamos. Para Hécuba, “quando a tempestade é muito violenta, os marinheiros cedem ao destino e entregam-se às ondas”. É isto, quando se chega aqui, serenamos. Há uma espécie de paz que nos visita e que, com ela, nos traz o sorriso.
Quais são os seus papéis de sonho?
Não tenho.
Hécuba não é um deles?
Hécuba é uma prova de fogo, um papel que me foi entregue por um amigo que achou que eu estaria à altura de o fazer. Nunca fui ambiciosa, as coisas aconteceram-me. Fui parar ao teatro por mero acaso, não entrei em Direito por uma décima…
Mas deixou-se levar pelas ondas, esteve disponível.
Exatamente, é isso mesmo, estar disponível para o que nos aparece – quer seja em forma de táxi, quer seja em forma de Eurípedes.