Para onde quer que olhe, Yusra Mardini só vê água. Tem 21 anos e foi sempre assim. Numa das suas memórias mais antigas, recua ao dia em que o pai decidiu lançá-la repetidamente para uma piscina, vendo-a ir ao fundo e logo a seguir batalhar até à superfície, agitando os pés e os braços tão freneticamente quanto os seus 4 anos o permitiam. Ezzat era treinador de natação. Não queria menos do que ter as suas duas filhas mais velhas feitas nadadoras profissionais – e as melhores da Terra, “para todo o sempre”, lê-se no livro Mariposa (Desassossego, €16,60), em que Yusra conta, com a ajuda da jornalista Josie Le Blond, a história da sua fuga da Síria, em 2015.
Até rebentar a guerra, ela e a sua irmã Sara haveriam, por isso, de treinar várias horas por dia, até à exaustão. Era uma vida “normal”, adjetiva agora Yusra, aquela que teve de deixar para trás no verão dos seus 17 anos. Normal, tanto quanto pode ser normal a vida entre bombas que teimam em rebentar demasiado perto, sem que a adolescente compreendesse – ou sobretudo aceitasse – porquê.
Um dia, uma granada lançada por foguete atravessou o telhado da piscina onde Yusra estava a treinar, caindo na água sem explodir. Um milagre que a miúda entendeu como um bilhete de partida rumo à Europa, para onde nos últimos tempos haviam fugido tantos amigos e conhecidos. Já dera por si a suster a respiração durante cinco segundos sempre que ouvia armas a disparar, retomando logo a seguir o que estava a fazer; naquele dia, não havia volta atrás.
Sara, mais velha três anos, assina por baixo do plano ainda vago de fuga, mas os pais de ambas, Ezzat e Mirwat, estão reticentes. Se ficar naquele cenário de guerra é um risco, partir clandestinamente não será menos arriscado – quase todos os dias, chegam notícias de refugiados mortos durante a travessia entre as costas turca e grega. Mas quando a família sabe que um primo, jovem mas assisado, está a preparar a fuga, é reunido o dinheiro suficiente para as duas se lhe juntarem.
A viagem há de levá-las primeiro por ar, de Damasco a Beirute, e da capital libanesa a Istambul. Ainda no avião, uma hospedeira de bordo avisa que qualquer passageiro que tente levar coletes salva-vidas será acusado de roubo. “Os seguranças vão verificar os vossos pertences à medida que forem saindo da aeronave”, reforça, para grande humilhação de Yusra.
Na Turquia, a espera num acampamento improvisado numa floresta, junto à costa, torna-se insuportavelmente longa. Há uma primeira tentativa de travessia, gorada pela Guarda Costeira turca; à segunda, o grupo de uma vintena de refugiados arrisca a viagem num bote de borracha, demasiado pequeno e com um motor que deixará de funcionar.
Foi então que Yusra e Sara nadaram para salvar vidas. Duas pessoas a menos no barco representaria menos peso a bordo e dois pares de pernas a pontapearem a água, impulsionando-o rumo a terra. “Ninguém vai morrer no nosso turno. Somos Mardinis. E nós nadamos”, pensou na altura Yusra.
Quase quatro anos depois, é com a mesma energia que treina numa piscina em Berlim. A mariposa exige movimentos precisos, uma respiração muito rápida e uma grande coordenação técnica, tudo coisas que já provou ter nos Jogos Olímpicos do Rio, na Equipa Olímpica de Refugiados, e agora prepara-se para voltar a provar em Tóquio.
Tanto tempo depois, ainda lhe acontece rebobinar a travessia do mar Egeu, mas não é do seu feitio ficar sentada, a chorar. Afinal, é uma miúda “normal” que dá graças por estar viva.
Apanhamo-la em casa, a convalescer de uma gripe. Se fosse uma tarde de quinta-feira normal, onde estaria neste momento? Passa os seus dias na piscina, a nadar?
Passo muitas horas, sim, mas agora deveria estar no ginásio. Atualmente, as quintas-feiras são os dias mais calmos da semana: nado de manhã, dedico as tardes à preparação física, e, pelo meio, vou dando entrevistas. O meu livro foi traduzido em vários países, dizem-me que as vendas têm sido boas, e sei que é importante aproveitar para passar a mensagem.
No seu livro há pedaços arrepiantes, aliás, quase capítulos inteiros que preferíamos não ter lido. Para si, serviu-lhe para fazer a catarse?
Podemos dizer que me ajudou a ultrapassar o trauma, sim, mas não se limita a isso. Quando me convidaram para contar a minha história, percebi que devia aproveitar para sensibilizar as pessoas para a realidade dos refugiados, aumentar a sua consciencialização. O mundo tem de saber o que ainda hoje está a acontecer. A minha história representa apenas 1% daquilo por que passou tanta gente – por isso me é tão doloroso visitar campos de refugiados e não poder trazer comigo, para a Alemanha, outros jovens como eu.
Faz essas visitas como embaixadora da Boa Vontade da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) – foi, aliás, a mais nova de sempre a ser nomeada. Como é que tem sido a experiência?
Gosto de poder falar com aquelas raparigas, de ter a hipótese de lhes dizer que sei aquilo que estão a sentir porque também sou uma refugiada. Mas custa-me imenso ver a angústia de muitas delas. Tenho ouvido histórias de vida incríveis, como a de uma menina que conheci em Itália, uma menina com 12 anos, que viajou sozinha até à Europa, sabendo apenas que tinha um irmão a morar na Alemanha. Também conversei com jovens que foram vendidas e usadas como profissionais do sexo, e encontrei tanta gente que não consegue arranjar trabalho por causa da cor da sua pele… Portanto, é uma experiência recompensadora, mas…
Frustrante?
Hum… Não diria tanto. Embora seja horrível ver jovens em stand-by, sem nada para fazerem, sem sequer terem uma ideia de futuro próximo, sei que vou ser ouvida no regresso destas visitas, porque há pessoas que estão numa posição melhor do que eu para fazer mais por eles. Ou seja, sei que sirvo de intermediária, de porta-voz, o que já não é mau. Aos jovens digo que não devem perder a esperança de virem a poder estudar, e, depois, às “pessoas normais” peço que deem uma hipótese aos refugiados, que os conheçam antes de os julgarem.
O desporto pode ser uma saída para esses jovens, como tem sido para si?
Acredito que sim, que o desporto pode ajudá-los a terem novamente uma vida normal, a alcançarem alguma coisa por si próprios. E também a deitarem cá para fora a sua revolta, a expressarem as suas emoções.
Definitivamente, o mundo ainda não é um lugar melhor. O que a preocupada mais por estes dias?
Vivo apreensiva pelo facto de a guerra não acabar no meu país, claro, mas preocupo-me sobretudo com a política em todo o mundo, porque não me parece que estejamos a ir na direção certa. Há cada vez mais pessoas necessitadas, nunca tivemos uma crise migratória tão grande como nos últimos dois anos, por isso me pergunto: estaremos a fazer o que devemos, a ajudar o suficiente?
A Yusra continua a ser identificada à cabeça como refugiada. Esse rótulo incomoda-a?
No início, tinha vergonha e não queria que me chamassem refugiada, mas agora orgulho-me porque sei que represento muita gente no mundo. Até representei os refugiados numa equipa nos últimos Jogos Olímpicos! Hoje, sinto que essa é um bocado a minha tarefa, e também mostrar-lhes que podem voltar a ter esperança e sonhar novamente, contra tudo e contra todos. Ainda há quem não acolha bem os refugiados nos seus países, quando tantos deles nasceram com a sua ajuda – a América, por exemplo…
A Alemanha e Berlim, em particular, acolheram-na bem?
Berlim é uma cidade muito cosmopolita, tenho muitos amigos de todo o mundo, aliás, a minha melhor amiga, por acaso, é suíça. E já começo a sentir-me em casa aqui.
A sua irmã Sara tem desenvolvido um trabalho importante como ativista, apoiando refugiados. Como é que viu a sua detenção, no verão passado, na Grécia, acusada de contrabando e participação em organização criminosa?
Para mim, o que é importante é saber que conseguiu ajudar muitas pessoas. Mas ela decidiu parar para estudar e está em Berlim, num curso relacionado com Direitos Humanos.
Faz sentido.
Pois faz! A Sara é muito focada – aliás, somos ambas. E nunca nos esquecemos do nosso estatuto de refugiadas. É essa a razão que me faz levar muito a sério o meu trabalho junto do ACNUR, embora neste momento o meu foco sejam os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020.
Recomeçou a nadar dois meses depois de chegar a Berlim. Alguma vez pensou que iria voltar tão cedo à água?
Na verdade, não pensei muito nisso… Nadar na piscina não é o mesmo que nadar no mar, e é preciso não esquecer que passei a minha vida numa piscina.
Não é por acaso que começa o primeiro capítulo do livro com a frase: “Nado antes de conseguir andar.” Ainda nem era grande o suficiente para usar braçadeiras e já o seu pai a punha na água.
Pois foi! Mesmo assim, quando decidi voltar a nadar, tive medo antes de saltar novamente para a piscina, mas correu bem.
Esse regresso não só lhe correu bem como, pouco tempo depois, a Yusra estava a competir. Ir aos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016, apenas um ano depois da travessia do mar Egeu que quase lhe custou a vida, deve ter sido uma sensação única.
Sim, foi incrível e uma surpresa, porque os nossos primeiros contactos tinham sido só no sentido de me arranjarem uma bolsa. No final, ser selecionada para a equipa dos refugiados foi uma grande loucura. E tudo aconteceu muito depressa.
Já passaram três anos e meio desde que fugiu da guerra na Síria. Ao longo deste tempo, deve ter passado por vários estados emocionais. Diria que, depois da tempestade, vem a calmaria?
Tem sido uma montanha-russa de emoções. A viagem de barco, os Jogos Olímpicos no verão seguinte, as atenções dos média, os encontros com Obama e o Papa… Foi uma loucura, ainda nem acredito que passei por tudo isto. Mas estou muito contente e claro que me considero uma sortuda. Agora, estou a tentar viver normalmente e a aproveitar cada dia.
Sem traumas, esperamos. Ou ainda acorda com pesadelos?
Tive pesadelos no início, mas agora já não tenho. Sinto-me triste, por vezes, se penso na minha fuga e em tudo o que deixei para trás, mas não posso dizer que fiquei traumatizada.
Numa entrevista recente, confessou que ainda lhe acontece enfiar-se num banho de imersão e ficar ali a chorar durante quatro ou cinco horas. É-lhe difícil ter de contar uma e outra vez a fuga da Síria, sobretudo a travessia de barco?
Não é fácil estar sempre a repetir a minha história, mas agora acredito que tenho a obrigação de o fazer. As pessoas têm de saber como foi difícil a fuga, e como ela ainda é tão difícil para tanta gente.
E viver num país em guerra. O que era pior quando ainda vivia em Damasco, com a sua família?
A coisa mais difícil, na verdade, foi eu ser tão nova e não saber exatamente o que estava a acontecer. E queria divertir-me, encontrar-me com os meus amigos, ter uma vida normal de adolescente, mas isso não era possível porque tinha de trabalhar ou tomar conta da minha irmã mais nova.
Não tinha medo?
Constantemente! E sentia que era muito injusto estar a passar por tudo aquilo. Revoltava-me.
E, agora, aos 21 anos acabados de fazer, não continua a sentir falta de uma vida de jovem normal?
Às vezes… Sobretudo entristece-me não ter aproveitado a minha vida de adolescente ao máximo, embora ache que ainda vou a tempo de me divertir. Não sou assim tão velha [risos]. Mas, para ser honesta, estou apenas contente por estar viva depois daquela viagem. E de a minha família estar toda bem.