É desde o início do ano presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), ocupando o lugar deixado por Jorge Simões, marido da atual ministra da Saúde, Marta Temido, que renunciou ao cargo “por motivos pessoais”. Henrique Barros, 61 anos, médico gastrenterologista e investigador, que adora cinema, é presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), desde a sua fundação, em 2006, e da IEA – International Epidemiological Association. Pelo meio, entre outros cargos, foi coordenador nacional para a infeção VIH/sida (2005-2011).
Apaixonado pela investigação, tendo desenvolvido projetos que já resultaram em mais de 300 publicações científicas internacionais, Henrique Barros pensa a saúde numa dimensão biológica e social, na “sociedade como um todo”, defendendo que “as doenças do adulto são doenças de desenvolvimento” e que a sua origem começa no embrião. No seu primeiro ano à frente do órgão consultivo, criado há menos de três anos, a temática será a saúde mental, pretendendo olhá-la “de uma forma integradora e no contínuo do ciclo da vida”.
Entre os estudos desenvolvidos pelo ISPUP está o da Geração 21, um dos maiores da Europa, que acompanha mais de 8 mil crianças do Grande Porto, desde o seu nascimento, em 2005, até aos 21 anos. Nele, já descobriram vários hábitos, como o de 90% consumirem sal a mais aos 4 anos, ou serem as mães que mais castigam os filhos…
Interessa-nos saber se quem tende a ter um comportamento mais agressivo com os filhos são os pais ou as mães, porque permite-nos imaginar formas de mudar. Por outro lado, porque não devemos exercer a violência como forma de relação. Há estudos importantes que vamos publicar e que demonstram o seguinte: uma criança que vive num ambiente mais abusivo tem marcadores de sofrimento biológico, mais doença, pressão arterial mais alta, tendência a engordar, ter mais inflamação…E uma criança que tem isto aos 10 anos irá ser um adulto que vai morrer mais cedo e viver pior. O problema das relações sociais não é meramente uma questão de representação social, mas é um problema de saúde. Quando agredimos os outros, estamos lentamente a fazê-los adoecer.
Com a recolha de sangue destes participantes, têm desenvolvido estudos de biologia molecular. A que conclusões já chegaram?
Ainda não temos dados, mas fizemos a avaliação epigenética das crianças no período antes e depois da crise económica e vamos tentar perceber se o facto de algumas terem passado por situações de extrema tensão – insegurança alimentar, mudança de casa ou de país – ficou impresso no seu epigenoma [mapeamento da atividade epigenética que regula a expressão dos genes codificados no genoma]. Ou seja: se isto as vai determinar, em relação a alguns aspetos, no futuro.
Na Geração 21, e em relação à obesidade infantil, concluíram que Valongo era o concelho mais gordo e o Porto mais magro. Qual será o motivo?
O facto de saber de onde é que as pessoas são, permite-me identificar o problema geograficamente. No início, havia uma pergunta mágica: porque estamos a engordar? Depois verificava-se que, nos países ricos, os obesos são sobretudo os pobres, nos países pobres os obesos são sobretudo os ricos. Isto é a melhor das evidências de que há uma interação entre a riqueza social e a resposta individual. No caso deste estudo, o Porto é a cidade onde habitam as pessoas com mais recursos pessoais. Se eu pegar numa pessoa com um estrato social que viva no Porto, e noutra, com estrato social parecido, que viva numa zona geograficamente mais pobre, nesta aumenta-lhe o risco de ser obeso.
Essa realidade é complexa. Pode ser resolvida?
É preciso ter muito senso e prudência. O fundamental é que as pessoas comam aquilo que seja mais próximo das formas naturais e do conhecimento atual da alimentação. O ambiente mudou muito. Somos expostos a produtos químicos, a contaminantes ambientais que não controlamos. É possível que uma parte dos problemas com a epidemia da obesidade esteja relacionada com a exposição a substâncias que modificam as nossas respostas endocrinológicas. Isto significa que a minha decisão pessoal sobre o que deixo de comer, ou o tempo que passo a fazer exercício, é ultrapassada a meu desfavor pelo facto de estar exposto a um conjunto de produtos que vêm nem sei bem de onde.
Estamos a fazer alguma coisa para controlar a obesidade infantil?
A resposta à obesidade tem de ser brutalmente integrada e participada. Mesmo num espaço pequeno como Portugal, não é igual numa criança que vive em Trás-os-Montes, no Porto, em Évora ou em Viana do Castelo. Não há um fato de medida única. Vai ser preciso experimentar muita coisa, ter uma grande capacidade de paciência e, sobretudo, se for verdade aquilo que estamos a ver, perceber que por causa da obesidade estamos a aproximar-nos da primeira geração que vai viver menos do que a dos pais. Mas as soluções não são simples.
E a pobreza também é um fator de risco?
A pobreza é um fator de risco de uma dimensão só ultrapassada fundamentalmente pelo tabaco. As Nações Unidas têm um programa que gostávamos fosse inspirador, o 25×25, com o objetivo de diminuir em 25% até 2025 a morte por um conjunto de causas, como a obesidade, o tabagismo, a hipertensão arterial, a diabetes… Quando comparamos estes fatores, consensuais como determinantes de morte, praticamente só o tabaco é mais importante do que o facto de ser pobre. Uma [pessoa] pobre morre mais cedo do que uma rica. O sítio onde ela se encontra na hierarquia social, independente de outros fatores, determina a saúde. A forma como vivemos socialmente mexe no nosso prognóstico. Ser pobre, por si, de alguma forma, condiciona o nosso destino.
Um outro estudo indica que as portuguesas fumam mais do que as mulheres de outros países com desenvolvimento económico idêntico, e aponta o pico do cancro do pulmão para daqui a 10, 15 anos. É possível reverter esta situação?
Não. Sabe porquê? Se deixar de fumar, ao fim de um, dois anos, a probabilidade de morrer com um enfarte de miocárdio é igual a como se nunca tivesse fumado. Mas no pulmão, a partir do momento em que se inicia a lesão que vai originar o cancro, e a sua apresentação, demora 10, 15 anos. Mesmo que pare de fumar, o gatilho já foi acionado. A esperança é só uma, e aparentemente estamos longe dela: a possibilidade de identificar, entre os fumadores, as pessoas com lesões numa fase hiperprecoce. Se isso não acontecer, o que nos espera daqui a 10 ou 15 anos é um pico de cancro de pulmão nas mulheres.
Recentemente assumiu a liderança do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Quais são os objetivos para o seu mandato de quatro anos?
O mais interessante é olhar para tudo isto como uma espécie de orquestra. Tal como na música, que as coisas saiam afinadas. Vejo o meu papel como uma ajuda para fazer navegar, manter vivo e ativo este corpo de pessoas. Por outro lado, está escrito que se espera do Conselho, a cada ano, uma reflexão, um pensamento, a organização de um conjunto de ideias e de conhecimento sobre o que foi o ano da Saúde.
Mas o Governo tem dado ouvidos ao CNS, desde que foi criado em 2016 [embora estivesse previsto desde a Lei de Bases da Saúde de 1990]?
Ouvidos seguramente que deu, a pergunta põe-se de outra maneira: o Governo pediu muitas vezes opiniões ao Conselho? Não. A atual ministra [da Saúde] disse que tinha intenção de o transformar numa estrutura à qual recorreria mais vezes, para consultar todas as partes que o Conselho representa.
Como viu, então, o facto de o Parlamento ter aprovado um novo plano de vacinação, sem aparentemente ter escutado a Direção-Geral de Saúde?
O Parlamento tem direito de fazer isso. Em Portugal, somos muito formais, no sentido de dizer que se tem de ouvir A ou B. O que me importa são duas decisões diferentes: se os senhores deputados se informaram com as diferentes estruturas que existem em Portugal, e em que medida tinham acautelado conflitos de interesses das diversas partes. Enquanto cidadão, espero que os deputados do meu país façam as leis que são essenciais, atendendo ao que está em jogo. Se me pergunta se é natural que os deputados ouçam a Comissão Técnica de Vacinação, é esperado que o façam. Agora, eles têm o direito de se pronunciarem. Mesmo as decisões mais tecnocráticas têm consequências e determinantes que estão muito além do gesto técnico em si.
Um dos relatórios divulgados pelo CNS, no ano passado, indicava que a taxa de vacinação contra o sarampo, na faixa etária dos 0 aos 18 anos, não garantia imunidade em Lisboa e no Algarve. Preocupam-no esses dados?
Claro. Se olharmos para trás, para a Organização Mundial de Saúde, só conseguimos ver uma doença: a varíola. Pela mesma altura em que se iniciou o plano de erradicação da varíola, que foi brutalmente eficaz, também se pensou acabar com o sarampo. Na altura, não se sabia tanto como se sabe hoje. O sarampo tem uma característica que não conhecíamos: temos de ter quase 100% das pessoas imunizadas para o vírus não encontrar nenhuma porta. Se o nosso objetivo é fazer com que o vírus desapareça, essas condições têm de existir. Infelizmente, não há estudos sólidos em Portugal que digam qual é a proporção das diferentes razões para a não vacinação. Mas, do meu conhecimento, o peso das pessoas que negam a vacinação é muito pequeno. A maior parte não está vacinada porque está de tal maneira desinserida que esse é o menor dos seus problemas. E, por isso, é que o sistema de saúde tem de ser proativo e de ir ter com elas. Temos de pensar mais e melhor a nossa resposta. Não podemos imaginar, 50 anos depois, que o mundo biológico é o mesmo.
Nesse relatório, alertava-se para as desigualdades no acesso aos médicos…
Ao contrário do que muitas vezes se diz, o que nos fez viver mais tempo não foi o tratamento das doenças. Foi criar condições nas quais fomos capazes de nascer e de crescer melhor. Porque, quando adoecemos, as nossas tecnologias extraordinárias prolongam-nos muito pouco a vida. Estamos é a ser capazes de não morrer de coisas evitáveis. Nunca se comeu tão bem, sobretudo nunca tão pouca gente passou fome. Há uma fase em que a resposta é mais individual: ter um centro de saúde, hospital, médico à porta de casa. Depois percebe-se que o mais importante é ter forma de chegar ao melhor médico, ao melhor centro de saúde e ao melhor hospital. E ter isso organizado socialmente, de maneira a conseguirmos sustentar com os nossos recursos.
E isso está organizado no nosso país?
Há movimentos, pessoas, grupos, que nos encaminham nesse sentido. Também há quem pense que o modelo é individual, cada um deve encontrar a chave para solucionar os seus problemas e, portanto, favorece o modelo dos privados. Se quiser, é a diferença entre uma saúde vista como uma commodity, uma mercadoria, algo transacionável, e uma saúde, como eu a vejo, vista como um direito humano. Não se pode defender o Sistema Nacional de Saúde como central nas nossas respostas e, depois, imaginar um modelo essencialmente virado para o lucro.