Economista e historiador, Nicolas Baverez analisa regularmente a atualidade em destacados jornais europeus, como o francês Le Figaro, o espanhol El País, ou o italiano La Repubblica. Nascido, em 1961, na cidade francesa de Lyon, trabalhou, entre 1993 e 1995, como consultor para os assuntos económicos e sociais de Philippe Séguin, então presidente da Assembleia Nacional e dirigente do Rassemblement pour la République (RPR). Biógrafo do filósofo francês Raymond Aron, publicou uma vasta bibliografia de que se destaca Réveillez-vous! (Fayard). Veio recentemente a Lisboa, a convite da Sociedade Francisco Manuel dos Santos
Em 2012, publicou Réveillez-vous! (Acordem!). Voltaria, agora, a dizer o mesmo aos europeus?
O conselho aplica-se, hoje, não só aos franceses e aos europeus em geral mas também a todo o mundo ocidental. Estamos confrontados com o fim de quatro grandes ciclos da História – o do domínio do mundo pelo Ocidente desde os Descobrimentos, o da liderança norte-americana, o da ordem internacional saída de 1945 e o da mundialização liberal, que terminou com o grande abalo do capitalismo em 2008. Hoje, a democracia atravessa a sua crise mais séria desde os anos de 1930 e, ao contrário do que se disse após a queda da URSS, a liberdade política não é um dado adquirido. É preciso que os cidadãos mantenham a fé nela e na vontade de a defender.
Em maio, teremos eleições para o Parlamento Europeu. O que prevê?
Certo é que estas serão as eleições europeias mais importantes de sempre. Enfrentamos um grande choque populista, a saída dos britânicos da União Europeia (UE), a crise dos imigrantes, talvez o regresso de alguma turbulência no euro, a partir de Itália, e ainda as ameaças externas do jihadismo e das “democraturas” russa e turca. Face a tudo isto, a Europa divide-se, não só nas políticas mas também até nos seus valores. Veja-se o caso da Hungria. A democracia não liberal de Viktor Orbán propõe outra visão da Europa, fundada sobretudo nos povos, e não os princípios sobre os quais se fundou a UE, o Estado de Direito. Independentemente da forma como gere os refugiados, que é outra coisa, quer controlar a Justiça, a economia e os média, o que é muito perturbador. Este é um momento decisivo, pois as forças populistas de direita e de esquerda podem conseguir uma minoria de bloqueio, senão mesmo, no pior cenário, a maioria. Infelizmente, vão decorrer numa má altura para a Europa.
Má altura como?
Há o risco de se tornarem num referendo à imigração. É absolutamente de evitar que o destino da Europa se confunda com a questão da imigração e, por isso, os partidos moderados de direita e de esquerda devem apresentar respostas para a imigração, mas avançando soluções em matéria de fronteiras, de identidade e de soberania da Europa, por exemplo, no aspeto fiscal e no comércio. Mas, sobretudo, porque é uma exigência muito forte dos cidadãos, há que encontrar respostas em termos de segurança.
Steve Bannon, o ex-ideólogo de Trump, anda a tentar federar a extrema-direita europeia. Com que êxito?
Inquieta-me menos Steve Bannon do que a evolução dos povos. Hoje, no conjunto do mundo democrático, há muitos cidadãos que tomam partido pela proteção e a segurança, contra a liberdade. É extremamente perigoso. Para contrariar isso, Macron [Presidente francês] faz uma distinção entre o que chama nacionalistas e progressistas. Acho uma forma muito perigosa de pôr a questão. As pessoas vão entender por nacionalismo a Europa das nações e a segurança. Depois, o progressismo não quer dizer grande coisa, e acho que deve responder-se ao populismo com o crescimento inclusivo, a educação, a integração dos jovens, a segurança.
Escreveu, há algum tempo, que “paradoxalmente o Brexit e a eleição de Trump reforçam o projeto europeu.” Ainda pensa o mesmo?
Potencialmente, reforçam. Assistimos a uma guerra comercial, tecnológica e a uma grande rivalidade entre os EUA e a China, eventualmente até a um início de confronto no mar da China. A Rússia e a Turquia exercem pressão sobre a Europa, a Rússia via Ucrânia e a Turquia através das comunidades turcas em vários países. A mundialização está a reestruturar-se em torno de vários polos, EUA, China, Índia, Brasil. A isto se soma a escalada das paixões nacionalistas e religiosas. Para discutirmos a fiscalidade, a tecnologia, a segurança com essas grandes potências, ficamos muito mais fracos se estivermos desunidos. Uma das razões da catástrofe dos anos de 1930 foi a divisão entre a Europa e os EUA, ao mesmo tempo que o Reino Unido se separava da Europa continental. Tudo isto milita a favor de uma Europa forte. Mas para isso há que refundá-la, o que é complicado.
Complicado em que termos?
A seguir à II Guerra Mundial, os pilares sobre os quais se construiu a Europa foram a resistência à URSS, a garantia da segurança norte-americana, a paz franco-alemã. Como não se conseguiu criar, em 1954, uma comunidade de defesa, contornou-se isso construindo a Europa sobre a economia, o mercado e o Direito. Só que, hoje, a URSS já não existe, a garantia da segurança norte-americana é muito aleatória, a paz franco-alemã está adquirida, mas é preciso eventualmente fazer mais. Precisamos de uma Europa mais autónoma e soberana.
Já falou nos riscos do Brexit. Que consequências receia mais?
É uma verdadeira tragédia política, já que todos saem perdedores. O Reino Unido vai perder na economia e na política, porque exercia uma influência considerável entre os europeus. E a Europa também perde, porque essa influência era positiva, em termos de cultura do parlamentarismo, de conceção da liberdade política e económica, e até de defesa, porque o Reino Unido representa um terço da capacidade de defesa da UE. Por isso, é de manter a cooperação com eles nesta matéria. E aí a França tem um papel a desempenhar, independentemente da forma como termine o Brexit. Quando David Cameron [ex-primeiro ministro conservador] se meteu no referendo sobre a Escócia, ainda teve Gordon Brown [ex-líder trabalhista] para o salvar, mas no Brexit já não havia um Gordon Brown que o salvasse, e perdeu. É pena, porque perturba o ciclo de renovação e crescimento do Reino Unido. E os anos de 1930 mostram que, quando o Reino Unido e a Europa continental divergem, em períodos de grande crise económica e geopolítica, acaba mal para ambas as partes.
Trump foi eleito há quase dois anos. Que balanço faz da sua presidência?
Há que reconhecer que ele disse que ia fazer uma série de coisas que fez mesmo. E conseguiu alguma recuperação económica de curto prazo, mas em condições perigosas. Porque um relançamento de tipo keynesiano, numa economia já em pleno emprego, acaba sempre em inflação e choque financeiro. E também a recuperação de Wall Street é artificial, pois tem sido conseguida à custa de as empresas recomprarem as suas próprias ações. Porém, a curto prazo, o crescimento foi elevado, criou empregos e, se isto se estender até às próximas presidenciais, creio que Trump pode ser reeleito. E externamente não cometeu só erros. Tem razão em que a China entrou na mundialização com regras viciadas, recusa todas as formas de proteção dos investidores e do Estado de Direito, pilha as empresas tanto no interior como no exterior, usa a dívida como uma forma de controlo dos ativos, quando não mesmo dos países, como o Camboja ou o Sri Lanka. Também tem razão quando diz que os europeus são irresponsáveis ao terem subinvestido na sua segurança. O problema é que está a destruir um século de soft-power dos EUA, a fraturar o Ocidente e a desmantelar a ordem que reinava desde 1945, e que era muito protetora da liberdade, das grandes alianças estratégicas e dos tratados de comércio.
Imaginemos que Trump seja reeleito. Quais seriam as diferenças, num segundo mandato?
Por enquanto não perdeu, pois continua a ter o apoio de mais de 40% dos norte-americanos, mas também ainda não ganhou. E isso dependerá muito do candidato ou candidata dos democratas, mas creio que, se houver um segundo mandato, será o da deceção. É de esperar uma inversão do crescimento, tensões sobre o emprego, inflação e, provavelmente, crise financeira. No protecionismo não se veem as perdas a longo prazo, só os ganhos rápidos. Não é por acaso que ele vem do setor imobiliário, que é um mundo do negócio a muito curto prazo. E já faliu duas vezes, o que mostra como esta aposta tem os seus desaires. A ainda primeira economia do mundo é pilotada com este horizonte do muito curto prazo. Se Trump vier a fazer um segundo mandato, ficará prisioneiro das suas promessas e da sua demagogia.
Escreveu que “a guerra comercial entre a China e os EUA é como qualquer guerra: sabe-se como começa mas não como acaba.” Receia o quê?
Temos o grande exemplo histórico dos anos de 1930. Houve nos EUA uma queda bolsista que causou uma depressão e que se alastrou à Europa. O protecionismo então adotado, já que os EUA taxaram dezenas de milhares de produtos, causou uma quebra de três quartos das trocas mundiais. O problema da guerra comercial é que, ao contrário do que Trump diz, há sempre represálias. Aliás, já começaram na China. O crescimento pode diminuir e, ainda que os EUA sejam uma economia menos aberta do que a europeia, também sofrerão. Outra coisa que começa a ver-se é que a guerra comercial e tecnológica não é a guerra propriamente dita, mas vai causando tensões. E o século XXI é o século dos riscos globais – financeiros, industriais, ambientais, estratégicos. Se chegar uma altura em que já não haja mais hipótese de cooperação entre as duas maiores potências, ficamos com muito menos capacidade de gestão, se pelo meio se tiverem enfraquecido as organizações onde se debatem os problemas, seja no seio da ONU ou da Organização Mundial do Comércio.
Há quem preveja que a próxima crise não seja causada pela queda de um banco mas por um hacker. Concorda?
Um novo grande abalo é possível, porque há um stock de 250 biliões de dólares de dívidas públicas e privadas no mundo, a inflação começa a ressurgir, designadamente nos EUA, com a política de Trump, e veremos o que sucede em Itália. No entanto, as crises nunca são bem as mesmas. Hoje, os bancos estão muito mais sólidos do que em 2008. Fizeram-se bastantes esforços em Itália, Espanha ou Portugal para os recapitalizar. A crise virá da finança da sombra, do shadow banking, que é muito importante, designadamente na Ásia, ou talvez do endividamento das empresas não financeiras. Os problemas poderão vir da parte
das finanças que ainda não é regulada e que continua significativa.
Portanto, não está muito apreensivo com uma crise vinda do ciberespaço?
A cibersegurança vai para além do mundo financeiro, diz respeito a todos, aos Estados, às empresas… Viu-se o que sucedeu ainda há pouco, quando foram pirateados os dados do Facebook. Até os atores digitais são atingidos. É uma luta desigual, em que os atacantes levam um passo de avanço. Um dos elementos inquietantes é que, se vier novo choque financeiro, não resta já muita margem de manobra nas políticas monetárias e orçamentais. Em 2008, o que valeu foi uma grande cooperação para amortecer o choque. A Administração Bush estava em fim de mandato e o G-20 permitiu uma maior colaboração. Hoje, destruiu-se esse espírito. Por isso, em caso de novo choque, será mais complicado de gerir.