À porta do pequeno gabinete de André Costa Jorge termina uma longa fila de cadeiras alinhadas junto às paredes do átrio do Centro de Apoio Jesuíta aos Refugiados, numa das zonas menos turísticas de Lisboa. Não há um único lugar vago. Os traços, os modos, as vestes, tudo denuncia a origem longínqua destas pessoas que aguardam pacientemente a vez de poderem ser ouvidas, de poderem ser ajudadas. Une-as a mesma origem de pobreza e esse calvário da espera – que começou há vários anos, e não apenas nesta manhã –, e também a dor refletida nos olhares perdidos que nos fitam, vislumbrando talvez a miragem de outras vidas.
Lá fora, a vida corre noutro ritmo. Com outras prioridades. Mas não para o diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados, que se cruza diariamente, desde há 10 anos, com “os mais pobres dos pobres”, aqueles a quem falta tudo: não apenas a roupa, a comida ou a casa, mas também
a família, a pátria, a paz, um sonho de futuro.
Dar-lhes acolhimento condigno tornou-se na missão da sua vida, depois de vários anos a hesitar entre outros percursos profissionais. As suas origens, concede, pesaram na escolha. Filho de mãe moçambicana de origem goesa e de pai brasileiro com ascendência portuguesa, cresceu em Angola e Moçambique e chegou a Portugal depois de 1975, como retornado. Tinha 6 anos mas recorda bem a sensação de insegurança e de rejeição, as noites mal dormidas de hotel em hotel, os nomes feios que saltavam da boca dos colegas de escola primária. Ninguém está livre de poder ver-se numa situação de desamparo, num ou noutro momento da vida – e essa é uma verdade que André Costa Jorge, ao contrário de muitos de nós, nunca esquece.
Deste seu gabinete na Alta de Lisboa, como olha para a cidade, que parece de costas voltadas para a integração das pessoas que fazem fila à sua porta?
O meu ponto de vista é sempre um pouco enviesado pela realidade que vejo todos os dias… Admito que se vivesse noutro ponto da cidade, imerso noutros problemas do quotidiano, estas dificuldades também me passassem ao lado. O que lamento é que esta realidade também escape a muitos dos que têm a responsabilidade de decidir e de influenciar. Por isso, o meu trabalho também é, em parte, conseguir fazer chegar aos outros o que vejo todos os dias e assim contribuir para a mudança. Mas não é fácil.
Não é fácil fazer as mudanças ou fazer-se ouvir?
Algumas mudanças seriam muito simples de concretizar. Mas não tenho obtido as respostas necessárias de quem decide, é uma verdade.
Refere-se a respostas a nível ministerial?
Sim. Alguns ministros têm mostrado mais sensibilidade para o assunto mas falta concretizar. Em dezembro escrevemos também ao primeiro-ministro, em conjunto com a Cáritas e a Amnistia Internacional, alertando para a gravíssima situação que se agudiza nas ilhas gregas, transformadas em centros de detenção, com pessoas a viverem em condições sub-humanas.
E de António Costa, teve resposta?
Sim, fomos informados de que o senhor primeiro-ministro teve oportunidade de transmitir no Conselho Europeu [de dezembro] as preocupações partilhadas nessa carta. O nosso objetivo era exatamente o de alertar e de pressionar as autoridades europeias a agirem. Portanto, foi um objetivo alcançado.
Como está atualmente a situação nas ilhas gregas?
Mantém-se muito difícil. Tem havido alguma iniciativa para melhorar as condições destas pessoas, e para lhes dar oportunidade de seguirem com a sua vida, mas ainda muito aquém das necessidades. Recentemente, Alexis Tsipras anunciou a retirada de cinco mil pessoas das ilhas, o que é positivo, mas não chega para fazer face à real dimensão do problema.
Havendo tanta gente desesperada para refazer a vida, como se explica que não tenhamos recebido sequer metade da quota a que nos comprometemos há dois anos?
É um problema transversal a quase todos os países europeus, infelizmente. Os processos são demasiado burocráticos.
O que é urgente mudar?
Para começar, deveríamos ter um plano de acolhimento integrado de refugiados, um modelo concreto, que é algo que não existe.
Não existe?
Não, o que temos estado a fazer é… gerir as circunstâncias.
Mas nestes últimos dois anos, em que recebemos cerca de 1 500 refugiados no âmbito dos acordos internacionais, não foi criada nenhuma estratégia de acolhimento?
Não há um modelo. A Câmara de Lisboa trabalha de uma forma, uma organização no Interior do País faz de outra. Foi realizado um grande trabalho pela Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), que une vários atores da sociedade civil com as estruturas do Estado, mas não foi feito nenhum balanço exaustivo do que correu bem, do que correu mal… e todos (aqueles que estamos no terreno) sabemos que seria importante analisar, corrigir… e fazer mais. Há um capital de experiência acumulado nestes dois anos que tem de ser aproveitado. Pela nossa parte, como secretariado técnico da PAR, vamos manter e aprofundar as nossas ligações a esta rede, que, tal como decidido em janeiro, irá manter-se sob a coordenação de Rui Marques.
Esse balanço nunca foi feito nas reuniões com as entidades governamentais?
Não houve reunião das organizações com os grupos interministeriais durante mais de seis meses, no ano passado. E alguns representantes, como os do Ministério do Emprego, nunca compareceram, em dois anos.
Porquê?
Não sei, sinceramente. Sei que há uma grande dificuldade de comunicação entre os parceiros sociais e os representantes do Governo, a máquina do Estado é muito pesada, as respostas tardam muito, os processos são muito burocráticos.
Fala do processo de legalização?
Sim, também. No Serviço de Estrangeiros e Fronteiras perde-se demasiado tempo. A primeira fase de proteção e acolhimento é crítica para que as pessoas possam estabilizar as suas vidas. Muitos chegam em choque, não conhecem o nosso País, não sabem a língua, passaram por processos de grande sofrimento psicológico… não deveríamos acrescentar mais stresse às suas vidas, desnecessariamente.
Mas se chegam com o estatuto de refugiados, no âmbito dos acordos da União Europeia, o processo não deveria ser mais célere?
Deveria. Há uma pré-aceitação das autoridades portuguesas, mas a verdade é que o processo inicia-se aqui, do zero. E está a levar 6 a 8 meses a ficar concluído.
E durante esse tempo o refugiado não pode procurar trabalho, por exemplo?
Legalmente, sim… mas, na prática, isso é muito difícil de acontecer. Enquanto esperam pela decisão final que lhes concede o estatuto de refugiados, estas pessoas ficam numa situação muito instável. O documento de autorização de residência provisória caduca várias vezes e os apoios sociais cessam, por exemplo. Há uma preocupante falta de articulação entre os serviços. E é muito difícil explicar isto a estas pessoas. Pior: se houver intenção de fazer reagrupamento familiar, só depois é que podem solicitá-lo. Estes processos deveriam levar um mês, no máximo. E não há razão para que tal não aconteça.
Falta criar alguma exceção na lei para estes casos?
Não, falta apenas implementar a lei que já existe. Se isso acontecesse, já seria um grande avanço.
A burocracia portuguesa será uma das razões que pesam negativamente na altura de escolherem ficar ou partir? Pergunto porque quase 800 refugiados dos 1 500 acolhidos nestes dois anos já foram embora.
Não ajudará… mas aí penso que há outros fatores a considerar. As pessoas não estão presas e, legitimamente, têm vontade de ir para perto de outros familiares ou tentar uma vida melhor nos países do Norte da Europa – que era para onde se dirigiam, inicialmente. Muitos dos que foram embora nem tiveram tempo para perceber muito bem o que é viver em Portugal. Não creio que exista alguma coisa contra nós e nem sequer será pelo tipo de condições que oferecemos, porque também se verifica este fenómeno no Luxemburgo.
O ministro da Administração Interna anunciou, há dois meses, que Portugal está disponível para receber mais mil refugiados dos centros da Turquia. Há capacidade para acolhê-los?
Não sei em que dados é que o senhor ministro da Administração Interna fundamentou a sua decisão, não foi um assunto discutido com os parceiros sociais. Creio que pode haver, certamente, e defendo que Portugal deve promover a hospitalidade como valor primordial da nossa sociedade, mas seria bom organizar as respostas das instituições de outra forma. Falta mais comunicação entre todos e um decisor que lidere os processos, de forma firme.
Faltará também mais comunicação com a população, para que exista um bom acolhimento?
Sim, sem dúvida. É natural haver desconfiança em relação ao que é estrangeiro, ao que nos é estranho, e os medos cresceram nos últimos anos também devido aos extremismos islâmicos. Acredito que é responsabilidade dos Estados fomentar níveis básicos de encontros interculturais e inter-religiosos, mas é preciso mais para haver integração. Quando vamos ao supermercado e encontramos o outro, quando vemos os nossos filhos a brincarem juntos na escola, quando nos conhecemos – aí sim, caem por terra todos os medos. Não devemos olhar para os refugiados como se fossem seres extraterrestres. Os refugiados são pessoas como nós. E um dia poderemos ser mesmo nós. Não acontece só aos outros.
De alguma forma também aconteceu consigo, sendo um retornado de Angola, em 1975. Esse facto marca a forma como lida com esta realidade no seu trabalho?
Sinto-me feliz por ter uma história de vida que também incluiu alguma dose de sofrimento. Foi muito duro sentir aquele desamparo, perceber que tudo muda de repente, que nada é seguro… isto marca muito, e sobretudo na infância, como foi o meu caso. Houve uma rutura total com a vida tal como a conhecíamos, perdemos todos os nossos bens e a família teve de se separar. Fiquei a viver uns meses sem os meus pais, entregue aos meus avós. Mas depois vivi a felicidade do reencontro com eles e também aprendi que é possível superar as dificuldades e reconstruir a vida.
Quando vê uma criança refugiada, inevitavelmente revê-se nela?
Sim. E sinto uma responsabilidade acrescida. Também quero que essa criança possa ter esperança.
Falou desse seu passado aos seus filhos [seis, com idades entre os 5 e os 23]?
Sim, eles conhecem a minha história, se bem que acham que foi tudo uma grande aventura… Sobretudo os mais pequenos não têm bem a noção do sofrimento e das dificuldades que passam os refugiados. Mas sabem que existem crianças mais desfavorecidas do que eles e são educados no espírito da solidariedade e da hospitalidade.
Saber acolher é algo que se deve ensinar desde a infância?
É fundamental. Todos, nem que tenha sido à nascença, precisámos de alguém que nos acolhesse, e nalgum momento da nossa vida iremos precisar novamente de alguém que nos acolha. Às vezes esquecemo-nos de que vamos ser velhos. Ou que pode haver alguma catástrofe natural, ou outro imprevisto que nos tire o chão, de repente. Além disso, quando acolhemos alargamos o conceito de “nós”, que não deve ser estreito, incluindo apenas aqueles que são iguais, mas também os que são diferentes – e isso enriquece-nos sempre.