António Granjo, que se demitira poucas horas antes do cargo de presidente do Ministério (o equivalente ao atual primeiro-ministro) é levado para o Arsenal da Marinha. Amedrontado, rodeado de extremistas, espera o pior. E o pior acontece. “Está aí o malandro do Granjo”, ouve-se do lado de fora da sala. Marinheiros e guardas entram, de armas em punho. A descrição da bárbara cena seguinte é do Diário de Lisboa. “Soou uma descarga; debaixo corresponderam. António Granjo caiu ao comprido, vertendo sangue por inúmeros ferimentos. Estava ainda nas últimas convulsões quando um dos assassinos, que, no dizer de uma testemunha ocular, é um clarim da GNR, de desmedida estatura, sacou da espada e a cravou no estômago, com tal violência que ficou presa no sobrado. Depois, friamente, o facínora, pondo o pé sobre o peito de António Granjo, sacou a arma e gritou triunfalmente, mostrando-a aos companheiros: ‘Venham ver de que cor é o sangue do porco!’” O ex-presidente do Ministério não seria o único a sofrer tão triste destino.
A Primeira República, entre a revolução de 1910 e o 28 de maio de 1926, foi um dos mais conturbados períodos da História portuguesa. Em menos de 16 anos, tomaram posse 39 governos e oito presidentes da República. Mas a agitação não se cingiu à gelatina política. Do ponto de vista social, o País manteve-se à beira da implosão, com golpes e contragolpes a sucederem-se, com crimes pelo meio. Os rumores mantinham a população aterrorizada e ditavam, muitas vezes, o rumo dos acontecimentos. Atento às guerras internas entre republicanos, o movimento monárquico espreitava uma oportunidade para regressar ao regime antigo.
Uma das tentativas de restauração mais arrojadas deu-se a 19 de janeiro de 1919, por iniciativa do grupo Integralismo Lusitano, apoiado por militares conservadores. O golpe iniciou-se no Porto (passando a ser conhecido por Monarquia do Norte) e, três dias depois, alargou-se à capital – setenta homens sob a batuta do eminente monárquico Aires de Ornelas tomaram de assalto o Forte de Monsanto e hastearam a bandeira azul e branca na antena telegráfica. Rapidamente o grupo sublevado se viu cercado pelas forças republicanas e, ao fim de umas horas a trocar fogo, rendeu-se.
A desconfiança pairava em Lisboa. Com o objetivo de fortalecer o regime, foi decidido triplicar os contingentes da GNR, que se convertera numa espécie de guarda pretoriana das correntes republicanas mais radicais. Os marinheiros, ferozmente antimonárquicos, funcionavam como outro escudo. A certa altura, até os republicanos moderados passaram a ser vistos como potenciais inimigos da causa. Tudo se encaminhava para a explosão.
A primeira vítima: o primeiro-ministro
António Granjo, mação, insuspeito republicano, líder do Partido Liberal, feroz inimigo dos monárquicos, começou a traçar o seu destino no dia 30 de agosto de 1921, ao aceitar a nomeação para Presidente do Ministério. Na madrugada de 19 de outubro, despontou o boato de que o seu Governo pretendia ceder aos conservadores e desarmar a GNR. Foi quanto bastou para uma junta militar da GNR e da Marinha, liderada pelo coronel Manuel Maria Coelho, orquestrar uma revolta para apear Granjo. Controlados os navios de guerra fundeados no Tejo, o Quartel de Alcântara e, claro, o Arsenal da Marinha, além dos pontos estratégicos da Rotunda (ainda sem a estátua do Marquês de Pombal) e do Terreiro do Paço, poucas opções deixaram ao Governo.
Logo nessa manhã, António Granjo pediu a demissão ao Presidente da República, António José de Almeida, e seguiu para casa, na Avenida João Crisóstomo. Mas o abandono do poder executivo não acalmou as hostes. A meio da tarde, temendo pela própria vida, Granjo fugiu pelas traseiras e refugiou-se em casa do seu inimigo político, Francisco Cunha Leal, perseguido por extremistas.
Cunha Leal tentou proteger o adversário, mas uma horda de guardas e marinheiros ameaçou derrubar-lhe a porta se o ex-líder do Governo não se entregasse. Sem saída, António Granjo acedeu a deixar-se transportar para o couraçado Vasco da Gama, ancorado no rio, onde, supostamente, ficaria a salvo. Francisco Cunha Leal, corajosamente, exigiu acompanhar Granjo, para assegurar que nada lhe aconteceria. Ambos entraram para uma carrinha de caixa aberta – que, depois, dessa noite, adquiriria o medonho nome de camioneta-fantasma.
Os dois homens nunca chegariam ao navio. A carrinha parou à porta do Arsenal da Marinha, no lado poente do Terreiro do Paço, e os militares obrigaram Granjo a entrar, sob a ameaça de armas de fogo. Cunha Leal, ao perceber o que estava para suceder, tentou impedi-lo e foi recompensado com uma bala no pescoço. O tiro não o matou, mas António Granjo teria menos sorte.
Os assassinos não se contentaram com a morte do ex-presidente do Ministério. O odor a sangue atiçou-os ainda mais, e o bagaço que lhes aquecia o estômago deu-lhes coragem. Um grupo de homens, encabeçados pelo marinheiro Abel Olímpio, de alcunha Dente de Ouro, regressou à camioneta, para procurar a vítima seguinte: Carlos da Maia.
Morrem dois heróis da Revolução
No dia 5 de outubro de 1910, Carlos da Maia inscrevera o seu nome na lista de obreiros da revolução republicana. Nessa altura tenente da Marinha, liderara o assalto ao cruzador D. Carlos I. O fogo da poderosa embarcação sobre o Palácio das Necessidades, abrigo de D. Manuel II, e na direção do Rossio, onde o exército real instalara baterias, contribuíra (quem sabe se decisivamente) para a queda da monarquia. Após a vitória, um esfuziante Carlos da Maia correra para junto da mãe a anunciar: “Mãe, pode beijar-me, que não matei ninguém.” Nos anos seguintes, o tenente seria promovido a capitão-de-fragata, antes de enveredar pela política, tornando-se governador de Macau e ministro. Em 1919, saturado da corrupção do regime que ajudara a criar, abandonara a política.
A humanidade e o papel em prol do ideal republicano não chegariam para lhe salvar a vida. Onze anos e 14 dias depois da revolução, um bando de assassinos armados entrou-lhe pela porta de casa. Que viesse ao Arsenal da Marinha, ordenou-lhe o Dente de Ouro. Carlos da Maia sabia o que o esperava. A sua mulher, Berta da Maia, com o filho de três meses ao colo, chorou e implorou que não lhe levassem o marido. As lágrimas de Berta tocaram nos corações de alguns dos homens, mas o líder logo deu um murro na mesa. “Mais chorou a minha mãe, que morreu de desgosto quando o Carlos da Maia me deportou para África!” Era mentira. O capitão-de-fragata foi levado pelo braço para a carrinha, transportado ao Arsenal da Marinha e assassinado à coronhada e ao tiro logo à entrada do edifício – precisamente o local para onde haviam sido levados, 13 anos antes, os corpos de D. Carlos e do príncipe Luís Filipe.
O próximo seria o almirante António Machado Santos – o herói da Rotunda e talvez o maior protagonista do 5 de Outubro. O comandante do batalhão que, entrincheirado no local onde hoje se ergue a estátua do Marquês de Pombal, enfrentara e derrotara as forças monárquicas (voltando a fazê-lo em 1919, ao chefiar o ataque aos contrarrevolucionários em Monsanto), afastara-se da política ativa. Mas não a tempo de evitar a camioneta-fantasma.
Por volta das duas da madrugada, o oficial foi acordado no seu apartamento da Rua José Estêvão, na Estefânia, pelos passos rudes do grupo de marinheiros e valentes coronhadas na porta. “Queremos o senhor Machado Santos. Tem de ir falar com o capitão Procópio de Freitas. Ou abrem ou bombardeamos o prédio!” Um tiro de espingarda deu o aviso. O almirante abriu a porta. “Que é isto? Sou vosso superior! Sou almirante!” O Dente de Ouro não estava com paciência para conversas. Apontou-lhe a arma e ordenou-lhe que marchasse à sua frente. Machado Santos teve apenas tempo de dar um último beijo à mulher, antes de ser metido à força na famigerada carrinha.
A caminho do Arsenal, quando descia a Avenida Almirante Reis e atravessava o Intendente, a camioneta-fantasma avaria. Os marinheiros saem e discutem entre eles. “E se o matássemos aqui? Depois temos de o trazer na mesma, que a morgue é aqui ao lado.” O Dente de Ouro, então, dirigiu-se a Machado Santos. “Desça, almirante, que vai ser fuzilado.” Encostado a uma parede, o oficial mostrou de que fibra era feito até ao último segundo. “Vejam lá que nem me conseguiram aumentar as pulsações.” Dada a ordem, Machado Santos, o herói, o símbolo da Revolução, foi ingloriamente crivado de balas.
Posta de novo a trabalhar, a carrinha seguiu a sanguinolenta marcha. Pais Gomes, ministro da Marinha, era o alvo seguinte, mas, por coincidência, não se encontrava em casa. Má sorte para o seu chefe de gabinete, o comandante Freitas da Silva, agarrado por Abel Olímpio e comparsas, arrastado para o Arsenal e fuzilado. O coronel Botelho de Vasconcelos, antigo ministro de Sidónio Pais, e o seu motorista, Jorge Gentil, foram as duas últimas vítimas da camioneta-fantasma. Ao nascer do dia, o bando de homicidas exultava, julgando-se salvador da república radical. Nem uma vez lhes passou pela cabeça que viriam a pagar pelos crimes.
O País acorda para o horror
Mesmo à luz dos extremismos da Primeira República, a noite de 19 para 20 de outubro revelou-se demasiado hedionda. A cidade acordou incrédula para o horror cometido por meia dúzia de homens. O coronel Manuel Maria Coelho que, com a sua rebelião, instigara (consciente ou inconscientemente) os assassinos, seria na mesma empossado presidente do Ministério, mas o seu Governo, manchado de sangue, não duraria dois meses. Cunha Leal, o homem que tentara proteger António Granjo, tomou-lhe o lugar. Antes disso, ficara célebre o seu discurso e mea culpa no funeral do seu antigo adversário político. “O sangue correu pela inconsciência da turba – a fera que todos nós, e eu, açulámos, que anda solta, matando porque é preciso matar. Todos nós somos culpados. É esta maldita política que nos envergonha e me salpica de lama.”
Dois anos mais tarde, doze homens acabariam condenados pelos crimes. Mas os mandantes – se é que os havia realmente – nunca seriam identificados. Desesperada por respostas, Berta, viúva de Carlos da Maia, deslocou-se várias vezes à prisão onde cumpria pena o Dente de Ouro (sentenciado a dez anos de prisão e 20 de degredo) para lhe tentar arrancar a verdade. Nas entrevistas, porém, Abel Olímpio dizia-se e desdizia-se. Nunca daria uma resposta credível a Berta da Maia. No final, havia quem atribuísse a responsabilidade moral da camioneta-fantasma ao movimento Formiga Branca, uma força militarizada e maçónica do Partido Democrático; outros viam a mão dos monárquicos portugueses; falava-se da Igreja, que teria persuadido o Dente de Ouro através de um padre seu primo; e havia quem apontasse o dedo à realeza espanhola, a quem preocupava a possibilidade de a turbulência de Lisboa alastrar a Madrid.
Como consequência direta da Noite Sangrenta, triste epíteto com que se inscreveriam nas crónicas aquelas horas, a GNR seria sumariamente desconjuntada, desarmada e despromovida, transformando-se numa mera polícia rural. Mais importante, o episódio cravara o último prego no caixão da democracia. A sucessão de conspirações militares provocadas pelos crimes da camioneta-fantasma, julgamento dos conspiradores e intermináveis suspeitas confluíram no golpe de 28 de maio de 1926. Portugal só recuperaria a liberdade 48 anos mais tarde.