Na Primavera de 1975, ano II da Revolução Portuguesa, recebi no meu gabinete do Quartel-General a visita de Annie Silva Pais, filha exilada do último director-geral da PIDE. Casara com um diplomata suíço, fora para Havana com o marido, apaixonara-se pela revolução cubana (e, dizia-se, por «Che» Guevara…), divorciara-se e passara a residir lá.
Depois das apresentações, da conversa sobre o seu país de adopção, a Revolução e seus líderes, Annie chegou aos finalmentes: «O sr. general gostava de visitar Cuba e de conhecer pessoalmente Fidel Castro?» Claro que sim! Desde que fora conhecida a notícia do assalto ao Quartel Moncada, em 26 de Julho de 1953, que eu seguira, tanto quanto era então possível, a extraordinária aventura de Fidel , Raul e seus companheiros na luta de libertação da garra norte-americana. Ia lá perder a oportunidade única de um tu-cá-tu-lá com o grande líder barbudo! Pouco mais de um mês depois recebi o convite pessoal de Fidel para uma visita a Cuba, só, com a família ou com a delegação que eu escolhesse. E com a indicação clara de intervenção autorizada e desejada por El Comandante para botar palavra no 26 de Julho, data comemorativa do assalto ao Quartel Moncada.
Levei comigo mulher e filhos, ajudante de campo e sua jovem esposa (capitão Marques Júnior e Luísa) e uma delegação do MFA com dois capitães (Exército e Força Aérea) e um 1º Tenente da Armada. E na bagagem, além dos presentes normais de produtos portugueses tipo Porto Vintage, o discurso que iria proferir daí a cinco dias em Santa Clara, elaborado pelo major Loureiro dos Santos, secretário do Conselho da Revolução, e traduzido para castelhano por Annie Silva Pais.
Fidel e Raul proporcionaram-me uma recepção de Chefe de Estado e foram para comigo e meus acompanhantes de um carinho, uma atenção e um desvelo inexcedíveis.
Com eles, rompemos com protocolos.
E criou-se entre nós um espírito de amizade e de fraternidade muito espontâneo. Gostámos todos muito de estar em Cuba. Ainda hoje me regozijo por ter vencido a resistência teimosa de Costa Gomes e dos meus camaradas conselheiros da Revolução, que se tinham obstinado em impedir a nossa viagem com o argumento (estava-se no «Verão Quente» de 75…) da imprescindibilidade da minha presença no País.
Troquei com os irmãos Castro mútuas e amplas impressões e relatos das experiências, alegrias, vitórias, decepções e derrotas por nós sofridas. E no final da visita de nove dias já eu tinha subido a escada de acesso ao avião da Aeroflot e lançava à multidão acenos de despedida, eis que Fidel atravessa a pista em passo de corrida e sobe a escada para um último abraço e um «Otelo, cuida-te» muito emocionado e sincero.
Fidel, cubano, filho de gente boa galega de Oleiros, formação secundária em colégio jesuíta, licenciado em Direito, preso aos 26 anos, julgado e condenado mas absolvido pela História, teimoso guerrilheiro que joga a vida no cumprimento da missão que a si próprio impôs de libertação do povo cubano do jugo imperialista da grande potência americana, que alcança a vitória como líder carismático, herói sobrevivente de 600 tentativas de assassínio, comandante indiscutível da revolução, primeiro-ministro, Presidente.
«Hombre! Que currículo!’» Tive a oportunidade de lhe expressar a minha admiração e o meu espanto pela sua tenacidade, perseverança e crença na vitória final que lhe tinham possibilitado mobilizar dezenas de anti-Batistas e um médico andarilho argentino chamado Ernesto Guevara de la Serna, vulgo «Che» Guevara, e conduzi-los até às florestas da Sierra Maestra através de perigos e ameaças sem nome, para passados dois anos e pouco de lutas guerrilheiras contra o lacaio Fulgencio e suas tropas, vencê-lo com um exército de campesinos. E, por outro lado, o desconforto que sentia por vê-lo, e a Cuba, tão subordinados à URSS.
Permitiu-se explicar-me o porquê. Após a grande vitória da revolução, em 1959, Fidel empreendera uma importantíssima reforma agrária, nacionalizara as empresas americanas que exploravam a «colónia» e procurara levar a efeito um plano de industrialização do país, o que tivera como consequência imediata a imposição de um boicote económico total a Cuba por parte de Washington. Recorrera então, em emergência, aos governantes da Europa Ocidental, com a finalidade da obtenção de apoios financeiros e de mercados para escoamento do tabaco e do açúcar produzidos na ilha. Em vão. Todas as portas se fecharam, em apoio e solidariedade (ou submissão?) para com os EUA.
Fidel, Raul e alguns dos seus companheiros mais próximos eram independentes de esquerda. Outros, militavam no PC Cubano. Antes, os ex-guerrilheiros, agora dirigentes, haviam recusado sempre os convites para integrarem as fileiras do PC. Na conjuntura grave para que o boicote ocidental arrastava o país, valeu a Fidel o apoio oferecido pela outra, então, grande potência. Para evitar o regresso humilhante à anterior situação de genuflexão perante o gigante vizinho, Fidel aceitou. Com as consequências conhecidas, causando espanto a sobrevivência de Cuba como Estado independente após o descalabro da URSS.
A experiência de construção de um Estado de Poder Popular, que no ano da nossa visita estava a ser levada a efeito em Cuba, foi de curta duração. Fidel acabou com ela mais rapidamente do que podia esperar-se. E impôs um regime de carácter ditatorial que vigora até hoje e que foi aceite pelo povo, rendido à figura carismática de El Comandante. Mas, perto do nosso regresso a Portugal, eu e os meus camaradas tivemos oportunidade de cantar, em coro desafinado, a Grândola, vila morena em que «o Povo é quem mais ordena», segundo a perspectiva falhada do Zeca Afonso.
E eu trouxe ideias excelentes que tive oportunidade de levar à prática na campanha para a eleição presidencial de 1976, com a criação dos GDUP (Grupo Dinamizador de Unidade Popular), que com tanto brilho e emoção tornaram possível o retorno da última esperança revolucionária.
Mas pelo carácter decisivo que teve no curso da História, o que de mais importante se verificou na nossa visita foi a reunião que tive com Fidel e Raul no reservado de um restaurante, de cuja «ordem de trabalhos» constou um ponto único: Angola. Mas essa é outra página que já foi por mim lida várias vezes e de cuja redacção continuo, talvez solitariamente, orgulhoso.
Naquele «Verão Quente», Portugal correu um sério risco.
Nada a ver com o espantalho da guerra civil iminente tão ameaçadoramente agitado pelos que queriam a todo o custo travar a revolução, pretexto para desencadear as acções que culminariam no 25 de Novembro. O perigo vinha da mente confusa, paranóica, doentia, do incrível Henry Kissinger, secretário de Estado dos EUA, que, desde a nomeação de Álvaro Cunhal para ministro sem pasta no 1º Governo Provisório, considerara Portugal perdido para o mundo ocidental e um satélite da URSS, propondo-se desde então convencer os líderes da Europa atlântica da necessidade de uma intervenção militar ou, no mínimo, de um bloqueio económico ao nosso país, ressuscitando o figurino aplicado em Cuba, de forma a aplicar uma «vacina» que impedisse o alastramento do comunismo aos países mediterrânicos! E posso agora imaginar a angústia dolorosa do jovem Fidel quando viu o seu país recuperado ser alvo imediato do cego bloqueio estadunidense apoiado pela Europa Ocidental! Reintegrado no espaço europeu, sem as fontes de riqueza que as colónias constituíam, o nosso pequeno país ficaria literalmente estrangulado se lhe fosse aplicada a «vacina» de Kissinger. Valeu-nos na circunstância (e espanta-me ser capaz de o confessar) a presença em Portugal do embaixador Frank Carlucci, homem da CIA com grande experiência anterior de golpes de Estado que, com visão diferente, soube aproveitar da melhor maneira a capacidade de liderança, a ambição e a manha política de Mário Soares e conquistar para chefia do braço armado necessário à causa, Melo Antunes e o Grupo dos Nove, para fazer regressar o PREC à «pureza inicial do 25 de Abril» com a promessa e a garantia de todo o apoio económico e político dos EUA e da Europa ocidental se tal acontecesse. Fidel, esse, não teve um Carlucci que então lhe valesse.