O ambiente situa-se algures entre David Lynch, Fellini e Kusturica. Uma tenda de circo com fogueiras à volta, panelas ao lume, carrinha de farturas, atrelados e tendas. Os habitantes de tal cenário são “o homem mais forte do mundo”, a levantar pesos atrás de uma caixa, umas gémeas siamesas que falam ao mesmo tempo, um anão e até uma mulher barbuda. O mestre-de-cerimónias de tão exótica trupe é um mágico, que se encontra refastelado, a olhar para uma bola de cristal, numa caravana com o seu nome pintado: Rui Reininho.
De regresso à realidade, convém explicar que estamos no local de filmagens de uma espécie de vídeo-álbum do primeiro disco a solo do vocalista dos GNR, Companhia das Índias. No total, serão gravados oito temas (o disco tem 13), num formato de “quase média metragem”, conforme explica Reininho, que funciona quer como um todo quer em separado, tema a tema: “Desde o início que este projecto teve um lado meio nómada e queria que isso transparecesse nestes vídeos.” Uma linha de continuidade narrativa que existe também no disco.
“Como me dizia o grande Peter Murphy, com quem jantei, há dias, no Porto, hoje não existe o chamado disco conceptual. As pessoas passaram a consumir temas isolados e, com este álbum, tentei contrariar um pouco essa tendência. Reconheço que, hoje, é quase um anacronismo pensar num disco como um todo, mas esforçámo-nos todos muito para que houvesse uma lógica e divertimo-nos bastante com isso.”
O “todos” a que Reininho se refere são os seus cúmplices nesta aventura. Em primeiro lugar, Armando Teixeira, que teve a seu cargo a produção e direcção musical do disco. Os outros são Paulo Furtado (The Legendary Tigerman), Slimmy, JP Coimbra (Mesa), Margarida Pinto (Coldfinger), New Max (Expensive Soul), Rodrigo Leão e Alexandre Soares. “O critério? A minha agenda.” Mas salta à vista que, à excepção de Alexandre Soares e Rodrigo Leão, todos os restantes são de uma geração mais nova. “É verdade, acabo por ser uma espécie de Avô Cantigas para eles. Tinha uma curiosidade muito grande em saber como trabalhavam. Foi um privilégio estar com tipos de outras gerações, ver como funcionam, entrar nos segredos dos home-studios. E tudo feito com tempo e prazer, muito no estilo de visita lá de casa. Há anos que não ensaiava de manhã e voltei a fazê-lo. A maior parte deles toca à noite e de manhã já recuperaram a energia para trabalhar, são fantásticos.”
Gravações ao domicílio
A Companhia das Índias começou no início deste ano como um projecto de versões, mas depressa evoluiu para algo mais. Foi, aliás, assim que surgiu a ideia de tocar o tema Bem Bom, das Doce, primeiro single do álbum, que a Companhia, entretanto, já apropriou como hino. “Fizemos essa versão com muito respeito. No início, toda a gente se ria, mas, depois, levámos a coisa a sério e deu-nos imenso trabalho. Tem um som de cravo, que lembra o Marquês de Sade e as Ligações Perigosas. Alguém me sugeria, no outro dia, que tinha um ambiente de Nick Cave. Achei piada, porque, no fundo, sou fruto dessas influências todas.”
E os GNR? Onde ficam no meio disto tudo? “Neste momento, não era possível [fazer este disco com os GNR]. É um trabalho meu e seria difícil explicá-lo. Temos estado entretidos com outras coisas, enquanto banda, e fui fazendo isto um pouco à parte, quando tinha tempo. Andei de casa em casa, a gravar os temas, sempre conforme a disponibilidade de cada um. Tudo muito low-cost. E ao vivo será a mesma coisa, quando quiserem e quando puderem.”