Foi um feliz acaso. No espaço de dois dias, por mera coincidência, dei por mim a rever o filme Ex Machina que estava a passar na televisão e a começar a jogar Detroit: Become Human na PlayStation. E, caramba, que duas grandes obras! Os meus filmes preferidos sempre foram aqueles que, depois de os vermos, deixam algo plantado no nosso imaginário, que nos fazem ficar a pensar neles durante muito tempo, mesmo que, por vezes, isso seja feito de forma subconsciente. Aconteceu-me, por exemplo, com 8 mm ou Número 23. Ex Machina tem tudo o que um fã de tecnologia pode desejar, é quase um debate filosófico sobre Inteligência Artificial em forma de (grande) filme. Todas as grandes questões estão lá, mas a mais premente é: será um androide capaz de fingir emoções para ludibriar um humano para conseguir escapar e andar livremente pelo mundo? E será um humano capaz de ser manipulado por uma máquina, ao ponto de acreditar que um androide com o belíssimo aspeto da Alicia Vikander se apaixonou por ele e que devem fugir para viver o amor juntos? Poderá o sentimento ser real?
O filme é de 2014, mas as perguntas que levanta parecem mais atuais que nunca. Passado seis anos, continuo sem respostas. Aliás, basta-me ver uma qualquer entrevista do professor Arlindo Oliveira para ficar maravilhado com o pouco que sei sobre Inteligência Artificial. Mas gosto de sentir que, com o passar da idade, tenho cada vez mais dúvidas e menos certezas. Aguça a curiosidade, mantém-me a mente inquieta. Esta tendência reflete-se também na minha mudança a nível de preferência de jogos. Tenho cada vez menos paciência para títulos que não apostem no desenvolvimento psicológico das personagens ao longo da narrativa. Irei aplaudir durante anos a coragem da Naughty Dog por seguir o caminho menos fácil em The Last of Us II e ao arriscar num argumento que nos liga umbilicalmente a Ellie e Abby. E comecei a sentir a isso em Detroit: Become Human também. Com a diferença que aqui não são duas mulheres e sim três androides. E isso também me fez pensar.
Não só o enredo do jogo – sucintamente, sem spoilers, os androides são quase tratados como escravos pelos humanos, mas começam a revoltar-se, a tornarem-se divergentes e a ameaçar uma revolução –, mas o facto de me ligar emocionalmente a três personagens que são máquinas, que prefiro proteger em detrimento dos humanos. Todas estas dúvidas são acentuadas pelo facto de este ser um jogo de tomada de decisão, em que temos uns breves segundos para decidir o que fazer, sabendo que isso terá um impacto decisivo no desenrolar da ação.
Foi, portanto, uma semana de teletrabalho, de confinamento social, de dever cívico de recolhimento a pensar no futuro. A pensar em como a tecnologia nos ajuda. Em como nos pode ajudar. Em como dificilmente nos pode salvar de nós próprios. Em como já atingimos a singularidade e nem nos apercebemos. E quando tivermos a Inteligência Artificial a tomar decisões realmente importantes a nível mundial, sob o argumento de que é o expoente máximo do racionalismo, como será? Tomemos como exemplo uma situação extrema: há um problema de fome mundial; há excesso de população a nível global; a máquina assume que esses dois assuntos podem ser resolvidos com a eliminação de uns milhões de pessoas. Por uns breves instantes, pensei que a pandemia nos podia ajudar a ver o mundo de outra forma, a emendar a mão, a melhorar o planeta. Uma vã quimera. Mais depressa vamos acabar todos mortos pela Inteligência Artificial que criámos e que não soubemos cuidar. E será que nós, enquanto espécie, não o merecemos? Xeque-mate, Humanidade.