A notícia passou, inacreditavelmente, entre os pingos da chuva. Sintetizada numa breve frase, uma investigação do Washington Post e da ZDF revelou que a CIA conseguiu espiar países estrangeiros durante décadas por lhes ter vendido equipamento de encriptação sabotado! A possibilidade de isto ter realmente acontecido parece tão estrambólica – argumentistas de Hollywood, roam-se de inveja – que importa dar mais detalhes. Assim, de acordo com os documentos obtidos pelos dois órgãos de comunicação social, tanto a CIA como a NSA conseguiram espiar tanto inimigos como aliados através do controlo de uma empresa que fabricava equipamento de criptografia.
A companhia em causa é a Crypto AG, que tem sede na Suíça. Apesar de ter sido fundada como uma empresa independente na década de 1940, durante a II Guerra Mundial, a Crypto AG fechou um acordo com a CIA em 1951 e passou mesmo a ser detida pela organização americana na década de 1970, tendo sido dissolvida em 2018.
Documentos internos da própria CIA classificam-na como “o golpe de espionagem do século” e parece difícil discordar se tivermos em conta que houve governos estrangeiros a pagarem bom dinheiro aos Estados Unidos e à Alemanha Ocidental (RFA) para o ‘privilégio’ de terem as suas comunicações mais secretas lidas por outros países. É que um acordo entre Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Alemanha permitia a troca de informações obtidas por espionagem entre estas nações. Foi, aliás, o que aconteceu durante a Guerra das Malvinas, com os Estados Unidos a descodificarem mensagens argentinas e a partilharem-nas com os serviços britânicos.
Segundo um screenshot de um documento da CIA, publicado pelo Washington Post, o programa de espionagem associado à Crypto AG era responsável por cerca de 40% das informações intercetadas a governos estrangeiros pelos americanos na década de 1980. Na década seguinte, os Estados Unidos acabaram mesmo por adquirir a parte que os alemães detinham na Crypto AG para ficarem como únicos detentores da empresa. Ponto importante: a esmagadora maioria dos funcionários parecia desconhecer todas estas manobras de bastidores.
E como funcionava tudo isto, na prática? Basicamente, a Crypto AG produzia máquinas com tecnologia criptográfica que aparentava gerar carateres aleatórios para codificar mensagens, embora, na realidade, não houvesse nada de aleatório no processo. Ou seja, não existiam backdoors, a encriptação é que era suficientemente fraca para os serviços secretos conseguirem aceder às mensagens.
Há até o relato de um episódio absolutamente delicioso: em 1977, o engenheiro Peter Frutiger identificou um problema num equipamento que a Crypto AG tinha vendido à Síria e corrigiu a vulnerabilidade. Resultado? A CIA queixou-se que tinha deixado de conseguir descodificar as mensagens de Damasco e o engenheiro foi despedido. Parece algo saído de um filme com personagens do calibre de um Ricky Bobby ou de um Ron Burgundy.
Entre as dezenas de países que usaram a tecnologia está… Portugal! Se bem que não nos devemos sentir ‘orgulhosamente sós’, já que contamos com a companhia de Índia, Paquistão, Vaticano, Japão, Coreia do Sul, Arábia Saudita, Indonésia, Líbia, etc. China e União Soviética nunca adquiriram material da Crypto AG, o que me remeteu para um paralelismo com a realidade atual e com a ‘birra’ americana em proibir a utilização de equipamentos Huawei nas redes 5G. Algo que, aliás, já tinha feito à russa Kaspersky.
Não pretendo defender chineses ou russos, não acredito que sejam uns ‘anjinhos’, mas também dispenso os ares de paladinos da justiça que os americanos insistem em ostentar. A Huawei e a Kaspersky têm ligações aos governos dos seus países e podem usar os seus equipamentos para fins de espionagem? É possível, não sou taxativo a afirmar ou negar. Mas também não estou convicto que, por exemplo, os smartphones da Apple ou computadores da Dell sejam totalmente impolutos. No fundo, todos espiam, pelo que podem é poupar-nos os jogos de alegada superioridade moral. Até porque as revelações provenientes do caso Crypto AG levantam (ainda mais) questões pertinentes sobre o que saberiam de antemão os Estados Unidos sobre as violações dos direitos humanos no Médio Oriente ou na América do Sul durante décadas sem nada fazerem. Pois, pimenta no cu dos outros é refresco.