Joe Paton é investigador e responsável pelo programa de Neurociências da Fundação Champalimaud e um dos principais ideólogos do plano de criação de um centro de terapia digital – que combina dados e inteligência artificial para fazer avançar a Medicina – no espaço de sete mil metros quadrados da Doca de Lisboa, entregue à Fundação. Em entrevista à Exame Informática apresenta o novo Ocean Campus, que deverá começar a receber grupos de investigadores ainda este ano.
Que planos têm para o Ocean Campus?
Há duas áreas em que podemos fazer a diferença: machine learning, ciência de dados, porque estudamos sobretudo inteligência natural, portanto no processo de investigação adotamos diversas ferramentas de machine learning. Também pensamos em algoritmos de machine learning como modelos para o que o cérebro está a fazer. Portanto, há uma ligação aplicada e também de investigação fundamental da IA, com a criação de uma interface entre áreas como a imagiologia médica e a análise de uma série de dados dos pacientes, numa forma de estabelecer ligação entre a ciência que fazemos e a clínica. Outro caminho possível será aumentar o alcance, de forma a incluir estudos do comportamento humano.
Isto é um grande desvio relativamente à vossa atividade atual.
A questão é que 90% dos custos em saúde, a nível mundial, são por causa de doenças crónicas. Ora, nós sabemos que os fatores mais importantes para o risco de desenvolver este tipo de doenças e influenciar o seu prognóstico são as variáveis comportamentais: o que comemos, o sono, exercício físico. É o que mais pode reduzir o risco de sofrer destas patologias, o que pode condicionar a evolução da doença de uma forma mais ou menos favorável. Então porque é que apostamos quase tudo nesta espécie de bala de prata, a ideia de compreender o mecanismo molecular que irá curar a doença quando as mudanças de comportamento poderemos resolver grande parte dos problemas?
E nas fases agudas também pode haver um contributo da terapia digital?
A ideia é desenvolver intervenções comportamentais com recurso a ferramentas digitais. Um rato que tem um AVC nos EUA recupera muito melhor do que um humano, porque no rato o problema é induzido. Treinamos o rato para uma determinada tarefa, provocamos um AVC e começamos imediatamente a trabalhar na sua recuperação e o rato rapidamente retorna ao estado prévio ao AVC. Agora, quando se trata de uma pessoa, normalmente fica deitada numa cama vários dias e só uns tempos depois começa a fazer exercícios de recuperação. Se fizermos o mesmo a um rato, ele só recupera 15 pode cento. Ou seja, também há muita margem de recuperação nas fases agudas. E a tecnologia pode ajudar-nos a fazer isso.
Esta abordagem comportamental pode não interessar muito às farmacêuticas.
Certo. Só que não queremos apresentar-nos como competidor, mas como complemento. Há um arsenal enorme de ferramentas disponíveis e que pode tornar os medicamentos mais eficazes. O objetivo não é levar as empresas a parar a investigação, é tentar usar as neurociências, o conhecimento sobre a forma como as pessoas tomam decisões para influenciar comportamentos. A realidade é que gastamos triliões de euros numa única abordagem, a farmacêutica, e gastamos muito menos em abordagens baseada em evidência para as alterações de comportamento que trazem melhorarias para a saúde das pessoas. É uma área sub-explorada em termos de melhoria da saúde e estamos a tentar perceber se podemos desenvolver aplicações eficazes nesta área. Sabemos que é um problema de solução difícil – levar as pessoas a mudar o seu comportamento – mas é aí que a neurociência pode ajudar.
Que dados irão usar?
Estamos a tentar encontrar formas de alargar a base dados. Uma delas é tirando partido do facto de termos todos passado a usar dispositivos que acompanham a nossa atividade diária. O sono, a dieta…. Claro que isto levanta questões éticas, que teremos de resolver, mas é uma possível forma de melhorar os dados. Tendo em mente que só nos interessa prever uma doença se formos capazes de fazer alguma coisa com esta informação. Se não pudermos agir sobre o problema não interessa muito.
Este tipo de estudos é de grande exigência a nível computacional. Como pretendem resolver a questão?
As empresas tecnológicas fazem enormes investimentos em computação e não vamos concorrer com elas. Mas tendo em conta a ligação entre o cérebro e a IA, que exploramos no nosso trabalho de investigação, acabamos por criar uma boa oportunidade, é um nicho: pensar na forma como os algoritmos podem ser construídos a partir da forma como pensamos no cérebro. As tecnológicas resolvem o problema com capacidade técnica. Mas o cérebro é muito mais eficiente. Há uma forma diferente de aprender, que talvez esteja embebida no genoma, a noção de estrutura. Estamos a aprender como isto tudo acontece e se pudermos incluir no algoritmo esta informação vamos conseguir poupar energia, ser mais eficientes e robustos.
O cérebro como inspiração para a computação.
A ideia é construir algoritmos de IA inspirados em modelos biológicos e também IA desenvolvida no contexto de sistemas biológicos. E até já começamos a recrutar pessoas com este perfil. Temos dois novos grupos mais orientados para machine learning.
Em que áreas poderá haver mais impacto?
Queremos criar um ecossistema em que temos a parte da investigação e a da aplicação. Espaço para aplicar a terapia digital e espaços para a desenvolver. Há toda uma indústria de wellness que não é baseada em ciência. Se não tivermos cuidado vamos assistir à utilização de uma ferramenta poderosa [a indução de comportamentos saudáveis] que não está baseada em evidência.
Esta também será de certa forma uma medicina direcionada.
Temos vindo a aprender muito sobre variabilidade individual na área da medicina de precisão. E no comportamento precisamos de abordagens personalizadas. Qualquer pessoa que trabalhe com animais sabe que a primeira coisa que temos de avaliar é ‘qual é a recompensa’ porque esta não é a mesma para toda a gente. O que é que é motivador, o que é recompensador. E esta variabilidade tanto pode ter implicações na recuperação de um AVC como nas questões comportamentais. A abordagem personalizada está a fazer o seu caminho em várias áreas.
Como é que o seu trabalho, em torno da perceção do tempo pelo cérebro, se relaciona com a mudança de comportamento?
O meu laboratório está focado no tempo e em como valorizamos o longo prazo e o curto prazo, quando tomamos decisões. Podemos estudar isto com tarefas de laboratório: prefere cem euros daqui a um ano ou cinco agora? Com várias questões deste género conseguimos quantificar, para cada pessoa, quanto é que ela valoriza o futuro, o longo prazo versus a curto prazo. Pessoas muito impulsivas, como as crianças, pessoas com tendência para a adição, valorizam muito o imediato e não têm em conta as consequências a longo prazo. Isto depois vai afetar o seu padrão alimentar, a gestão das finanças. É interessante que os miúdos são mais assim e as experiências mostram que a infância e o ambiente em que crescemos é determinante relativamente à forma como o fazemos na vida adulta.
De que forma?
Acaba por ser intuitivo. Se vivemos num ambiente em que não conseguimos prever o futuro, o cérebro então adapta-se ao facto de a sua experiência de vida só ser previsível até certo ponto. Se não sabemos o que vai acontecer, o melhor é adaptarmos a capacidade de previsão à escala temporal em que é possível prever. E isto é complicado de mudar porque envolve muitas variáveis. Estamos a ver como será possível mudar o sistema de recompensa cerebral para o futuro. Grandes avanços começaram com perguntas muito básicas.