Não é por se repetir até à exaustão que ‘as crises são momentos de oportunidade’ que o impacto devastador da pandemia se tornará menos doloroso. Também não há como acreditar que passado este período absolutamente inesperado e avassalador o ser humano irá emergir como uma espécie aperfeiçoada, atenta ao outro e ao ambiente à sua volta. Mas há certamente alguns aspetos, positivos, que ficarão para sempre. Pelo menos é o que espera a otimista que há em mim.
– Mais cientistas na vida pública
Nunca vimos tantos virologistas, epidemiologistas, médicos em horário nobre na televisão, rádio e capas de jornais. Nem o discurso político esteve alguma vez tão marcado pelas conclusões de artigos científicos ou pelas recomendações da comunidade. Se no Reino Unido praticamente todos os departamentos do Governo são assessorados por um cientista, que tem o cargo pomposo que o inglês favorece de ‘chief scientific adviser’, em Portugal raramente se sente o peso da Ciência nas decisões políticas. Não é que as decisões devam ser tomadas por cientistas. Para isso elegemos os políticos. Agora, que mais evidência, também na política, só pode tornar a nossa vida melhor, disso não tenho dúvidas.
– Mais tele-coisas
Nunca serei pessoa de negar os benefícios de uma conversa cara-a-cara, de assistir a uma conferência em presença, de entrevistar alguém de olhos nos olhos, sem ecrãs pelo meio. Mas um modelo de trabalho misto, que inclua atividades presenciais e outras em modo remoto será a combinação ideal. Aliás, é isso que pretende a maioria dos trabalhadores portugueses inquiridos sobre teletrabalho e saúde ocupacional no Barómetro Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública. Quase 60% confirmou que gostaria de continuar em teletrabalho e desses 59% admitiu preferir este regime de trabalho em forma parcial. Tornou-se evidente que a produtividade não diminui e esperemos que a ideia que muitos poderiam ter de que trabalhar em casa é ver TV o dia todo seja ultrapassada. E com isso ganhamos todos: menos trânsito, menos horas perdidas em deslocações, menos poluição, maior possibilidade de ajustar os horários de trabalho e para boa parte dos setores de atividade a possibilidade de trabalhar em quase todo o lado, desde que haja wi-fi.
– Mais vida de bairro
Desde que passei a trabalhar mais tempo em casa, descobri uma série de restaurantes, lojas, cafés nas redondezas de minha casa. Seja pelo passeio higiénico que tento fazer nos períodos de confinamento e que me fez observar com o olhar vagaroso de quem caminha, seja pelo ímpeto de salvar os afetados pela crise, seja pela necessidade de evitar multidões. Espero não esquecer esta boa sensação de proximidade e não voltar ao modo ‘hipermercado ao final de semana para as compras do mês’ e ‘almoço no centro comercial na hora de almoço’.
– Mais gente nas ruas, nos parques e ciclovias
É a velha máxima: só damos valor àquilo que não podemos ter. De repente, os espaços ao ar livre passaram a valer ouro. Adolescentes marcaram encontros no parque perto de casa e conversas em bancos de jardim, famílias começaram a fazer em conjunto o recomendado ‘passeio higiénico’, o almoço de domingo ganhou a forma de piquenique. Espero que a memória não seja curta e que estes hábitos saudáveis, a todos os níveis, não fiquem retidos neste ano absolutamente anormal.
– Mais esplanadas
Uma das primeiras surpresas quando se visita uma cidade nos países nórdicos é a quantidade de esplanadas e de gente na rua que se observa. Independentemente da estação do ano ou dos graus no termómetro. E nós aqui, em Portugal, com uma média de 300 dias de sol por ano, condicionados em espaços com ar condicionado. Com boa parte das autarquias a abdicarem das taxas de esplanada e as recomendações das autoridades de saúde a favor do ar livre, nasceram esplanadas em tudo quanto é canto. Venham as mantas e os aquecedores a gás que não há como o ar da rua.
– Mais compras online
O Governo criou a pasta da transição digital, para dar impulso ao setor, mas nada fará tanto pela adesão ao online como a pandemia. No início de novembro, o Observatório de Tendências anunciou que 57% dos portugueses comprou mais online nos últimos seis meses e o e-commerce cresceu entre 150 e 170% desde março, face ao período homólogo. Comprar online pode abrir caminho a compras mais económicas, refletidas e em projetos alternativos, fora das grandes marcas e cadeias internacionais.
– Mais pés descalços
O hábito de andar com os pés no chão é bom para tudo: faz bem a saúde da coluna, diminui a transpiração e os maus cheiros, evita a formação de calos e ajuda a manter a casa limpa. Em muitos países, como a América, o Canadá, a Holanda, o gesto de tirar os sapatos assim que se entra em casa está totalmente enraizado – imagino que pelo facto de serem países onde neva muito no inverno. Mas em Portugal, mostrar os pés nunca foi muito bem aceite socialmente. Eu, que sempre procurei desculpas para me descalçar, não podia estar mais feliz com isto. Só vejo um contra – não dá para andar de meias rotas.