A função de gestão de tesouraria tem evoluído nos últimos anos e assume um papel cada vez mais relevante numa organização. Esta vive hoje num ambiente de crescente complexidade no que respeita às normas de compliance por parte dos bancos e reguladores, à qual se acrescenta a enorme variedade de legislação fiscal e contabilística aplicável a cada país, bem como significativas restrições à movimentação de fluxos financeiros em muitas geografias (com predominância dos países emergentes, mas não só). A estes fatores junta-se a crescente desregulamentação e liberalização dos mercados financeiros e a maior volatilidade das divisas internacionais.
Se a este contexto adicionarmos os esforços de internacionalização das empresas portuguesas, as crises financeiras ocorridas em vários países e blocos económicos dos últimos anos e, para culminar, a atual crise global gerada pela pandemia da COVID-19, percebe-se porque as organizações têm de passar a olhar para esta área como uma nova área estratégica.
Um parceiro estratégico
A gestão de tesouraria evoluiu da mera execução de tarefas para um papel assente em funções estratégicas, efetuadas por um parceiro de negócios (interno). Vejam-se as conclusões do relatório “The Business of Treasury 2020 da Association of Corporate Treasurers” que indica que, em 85% das empresas analisadas, a gestão de tesouraria é reconhecida como uma área estratégica.
Para além do conhecimento das tradicionais funções de processamento de pagamentos a fornecedores, cobranças e posição dos bancos, hoje é exigido a quem lidera esta função que seja um profissional com um conhecimento profundo das finanças internacionais, fator crítico em qualquer movimento de internacionalização.
Deve também possuir competências de gestão, que permitam iniciar processos de transformação e de mudança estruturada que criem valor para as organizações e ser capaz de liderar a inovação e, assim, construir vantagens competitivas para a sua organização. E, simultaneamente, ser capaz de assumir um papel multidimensional e de gerar outputs financeiros estratégicos que melhorem a qualidade da tomada de decisões necessárias para impulsionar mudanças sustentáveis nas organizações.
É nesta complexidade de riscos e conhecimentos, que o responsável de tesouraria tem de conseguir mover-se, ao mesmo tempo que deve cumprir os objetivos principais da gestão financeira, a maximização do valor, das empresas e dos seus stakeholders (visão europeia), e dos seus acionistas (visão anglo-saxónica).
Funções críticas
As funções críticas que devem estar integradas sob a supervisão desta área são desde logo, a Gestão de Ativos e Passivos (ALM). O equilíbrio financeiro de uma empresa depende largamente da sua capacidade para gerir adequadamente os seus ativos e passivos, do tempo que leva a transformação de ativos em meios financeiros líquidos e da gestão que faz do prazo de exigibilidade dos passivos, ou seja, o período de tempo disponível para que as dívidas sejam liquidadas. As duas alavancas disto são o tamanho do balanço da empresa e a liquidez, na perspetiva da maior ou menor rigidez dos ativos e passivos do balanço.
Esta gestão permite que os fundamentos básicos das organizações sejam garantidos, que os negócios sejam conduzidos sem sobressaltos e que exista sempre dinheiro disponível para as necessidades, das operações do dia-a-dia a um investimento. Apenas gerindo ativamente a liquidez, consegue-se garantir que as empresas permanecem dinâmicas, criam poupanças, realizam investimentos e podem responder rapidamente às mudanças estratégicas preconizadas pela gestão de topo.
Como habitualmente é mais barato contrair empréstimos de curto prazo e investir em ativos de longo prazo, há uma tendência natural para as empresas esticarem esse desfasamento até o limite, o que é muito perigoso em momentos de crise – como a atual situação que vivemos e a que observámos em 2011/2012 aquando da crise de liquidez do sistema financeiro – quando o crédito se esgota e se torna mais difícil fazer o rollover dos passivos. Uma gestão eficiente de ALM monitoriza horizontes de liquidez, prescrevendo buffers e criando alertas que ajudem a antecipar determinados eventos. Otimizar ativos e passivos de maneira proativa aumenta a rentabilidade e as oportunidades de investimento.
Também as responsabilidades de cobertura do risco cambial e de taxa de juro deverão estar no âmbito da tesouraria, que poderá usar diferentes estratégias e técnicas. Desde logo, dois caminhos possíveis podem ser seguidos i) técnicas internas de cobertura de risco realizadas em conjunto com as áreas operacionais do negócio; e ii) recurso a técnicas externas de cobertura, como a utilização de instrumentos financeiros derivados, que dependendo do nível de sofisticação do negócio, podem ir de negociações à vista, até à contratação de swaps de longo prazo.
Outro processo relevante é relativo ao cálculo dos preços de transferência de fundos, ou seja, o processo de calcular o custo do balanço e a consequente definição dos valores a afetar aos responsáveis de cada unidade de negócio, nas proporções que lhes sejam devidas pelos ativos e passivos criados no desenvolvimento das suas atividades. Isto é necessário, pois apenas desta forma se mantém uma consciencialização e responsabilidade pelas ações tomadas e que afetam todo o balanço da organização.
Um bom exemplo para ilustrar o perigo de não o fazer, é o da unidade de negócios que teima em manter um alto prazo de transformação de ativos, vulgo prazo médio de recebimentos, e que dessa forma penaliza toda a organização salvaguardando a rentabilidade da sua unidade de negócios.
As áreas de tesouraria são pequenos bancos dentro de uma organização pelo que devem cotar o preço dos passivos utilizados para financiar as atividades geradoras de ativos. Estes preços devem refletir o custo desses passivos que deverão ser transferidos internamente às unidades de negócio originadoras de ativos. Este valor representa assim, o custo médio ponderado de todos os passivos necessário à gestão de uma organização, mais os custos internos partilhados do negócio menos os eventuais lucros gerados pela tesouraria.
A gestão de ativos financeiros (excedentes de tesouraria) de uma organização deve também estar sediada na tesouraria, que assegurará a procura de alternativas de investimento adequadas ao perfil de risco da empresa, das operações e da sua gestão. Estes investimentos devem ser feitos com o objetivo de gerar uma rentabilidade (e, portanto, ajudar a reduzir os preços de transferências de fundos) e nunca ser uma atividade de risco ou de jogo.
No entanto, esta atividade pode muitas vezes ser um exercício de criatividade, que envolve a busca por rentabilidade, liquidez e eficiência de capital.
Importante é também a capacidade de melhorar as previsões de tesouraria. Previsões mais precisas garantem que as organizações conseguem gerir os seus ativos de maneira mais eficaz e prosseguir os seus objetivos de negócios a curto e longo prazo com maior segurança.
Dada a complexidade da maioria dos negócios, com inúmeras variáveis e constantes alterações de pressupostos, previsões com grande nível de fiabilidade apenas são possíveis com bons inputs por parte das áreas operacionais. Só com um modelo holístico e integrado é possível alcançar resultados satisfatórios. Para tal, é necessário contar com a participação responsável e informada de várias áreas da organização. Tal conduz a que haja cuidado com previsões superficiais e de pouca precisão (“o fazer por fazer”) que não traz muito valor e são ainda contraproducentes ao servirem de suporte a processos de tomada de decisão.
Por fim, a tesouraria deve ser capaz de supervisionar todas as partes do negócio e ser equidistante em relação a qualquer linha de negócios específica. Esta posição coloca a tesouraria como uma ferramenta útil para a gestão de topo, para integrar aquisições na empresa ou para liderar iniciativas de transformação de TI.
Conclui-se que, fruto da informação disponível, seja dos mercados financeiros ou da gestão do balanço da organização, a função de tesouraria deve conseguir interpretar eventos, para conseguir gerir riscos e gerar oportunidades de investimento. Deve também ter a capacidade de criar valor, sendo capaz de gerar informação pertinente que realce os impactos que cada decisão pode ter na empresa, e desta forma auxiliar a gestão de topo a tomar melhores decisões. E deve ainda estar envolvida com as diferentes unidades de negócio, de forma a ser capaz de fornecer soluções, o que acabará por ajudar a organização como um todo e aumentar a visibilidade e o apoio à função em si.