Mentiras. Traições. Reviravoltas. Golpes palacianos. Comédia. Estes foram alguns dos elementos que alimentaram o filme político desta semana, que quase ia tirando Mário Centeno do Governo. A estes há que juntar um, que me parece fundamental: a completa falta de noção dos nossos agentes políticos.
No centro de tudo está uma gaffe política de todo o tamanho por parte de António Costa. Que, pressionado por Catarina Martins e pelo resto da oposição, mentiu, ao dizer que a transferência da costumeira tranche gigantesca para o Novo Banco só seguiria depois de concluída a auditoria em curso. Não terá mentido conscientemente (até porque seria facilmente desmentido), mas porque não estava bem informado do que o seu Governo, via Ministério das Finanças, já tinha feito: o dinheiro já tinha seguido. Resta a questão: foi incompetência de comunicação ou deslealdade interna? Estaremos perante um novo episódio do “erro de percepção mútuo”, como aconteceu entre Centeno e António Domingues aquando da ida deste para a Caixa?
O dossier Novo Banco é o atualmente o maior ativo tóxico da política portuguesa. Sempre foi e sempre será, até ao último cêntimo que o Estado lá colocar, e o culminar do escândalo ainda virá depois: quando a Lone Star vender o banco com um chorudo lucro, depois de os outros bancos e os contribuintes portugueses terem andado anos a limpá-lo.
E se, todos os anos, há uma comoção nacional com as injeções no Novo Banco, este ano só poderia ser superior. Porque vivemos uma crise duríssima e com possíveis sequelas traumáticas nos próximos anos, porque é questionada a capacidade financeira do Estado em apoiar as empresas e famílias afetadas pela paragem ligada à pandemia e porque – suprema ironia – desta vez há bónus envolvidos, para os administradores do banco.
Isto obrigaria, mais ainda do que habitualmente, a tratar este assunto com pinças. O que o Governo fez foi tratá-lo com a delicadeza de uma escavadora.
Perante o buraco que Costa cavou publicamente para si próprio, não havia muitas saídas, mesmo para este Houdini político. Em primeiro lugar, tinha de admitir que tinha mentido no Parlamento, por desconhecimento. Em segundo, tinha de arranjar um culpado para o sucedido, e tinha de ser um peixe grande; não podia ser a arraia-miúda de um assessor que não o preparou devidamente para o debate. Em terceiro, tinha de decidir até onde queria e podia ir, na fragilização a Mário Centeno. E tudo isto foi mal gerido.
Para juntar à festa, o Presidente não quis ficar de fora. Decidiu dar força a um Primeiro-Ministro embaraçado, sabendo perfeitamente que isso teria como efeito prático mais pressão sobre o Ministro das Finanças e presidente do Eurogrupo. Não resistiu a meter-se onde não era chamado, talvez considerando que podia finalmente dar o golpe num ministro que nunca engoliu realmente, desde esse episódio da CGD.
Já Centeno foi colocado na incómoda posição de dar explicações técnicas de que o chefe do seu Governo não devia precisar. Foi obrigado a andar na estreita corda entre explicar factos jurídicos incontornáveis (o dinheiro teria de entrar de qualquer forma, auditoria ou não) sem chamar ignorante a António Costa. Não lhe correu bem, porque não havia maneira de correr bem, diga-se.
Tudo terminou, para já, com uma daquelas afirmações de confiança política de Costa a Centeno, porque o momento não está para birras ou para intrigas de gabinetes. Centeno fica a prazo, contrariado, e Costa atura-o a prazo, ainda mais contrariado mas naturalmente necessitado dele para o Orçamento retificativo (o Governo chama-o de “suplementar”) que está aí à porta. É o desfecho possível de 48 horas loucas em que ninguém sai bem.
António Costa (que tentou distrair os jornalistas ao lançar Marcelo para um novo mandato) sai mal porque assegurou na Assembleia uma coisa que não podia assegurar e que a realidade já tinha desmentido, ainda que ele não o soubesse.
Marcelo Rebelo de Sousa porque quis forçar uma clarificação interna no Governo, provocando a saída de Centeno, algo que está longe de ser prioritário neste momento. Como em várias outras vezes, extravasou as suas funções e o que ditaria o bom-senso.
Centeno também sai mal, apesar de tecnicamente ter toda a razão. Sai mal porque, apesar dos argumentos técnicos, tem de entender que, enquanto ministro das Finanças, deve proteger politicamente o líder do Executivo, não o deixando passar por parvo. Centeno está cansado do jogo político e já não disfarça. Entende que, se os factos lhe dão razão, não tem de os colorir politicamente e despreza esse exercício. Ora este é um exercício no qual António Costa assenta boa parte da sua capacidade. Perante esta situação, a convivência de longo prazo é impossível.
E não nos esqueçamos da oposição que, a cavalo da demagogia, prestou um mau serviço ao País. Querendo ser veículo da compreensível indignação dos portugueses por mais uma injeção milionária no Novo Banco, mandou pela borda fora o que diz a lei. Pede suspensões de pagamentos, que são ilegais; pede que o dinheiro só siga após a conclusão da auditoria especial, algo que juridicamente é indefensável; pede que seja proibida a atribuição dos bónus, o que soa realmente bem mas não se vê como pode ser feito. E, na verdade, centrou-se exclusivamente em mandar abaixo um Ministro, um campeão de Costa, num momento em que o País claramente tem mais com que se preocupar.
Voltando ao Novo Banco.
Na origem de tudo está, como disse Centeno, um desastre na resolução do BES. A separação entre ativos maus e bons foi muito mal feita, e o resultado disso foi o Novo Banco, que era suposto ser o bom, ficar cheio de tralha tóxica (de tal forma que até António Ramalho, o Presidente do Novo Banco, começou a apresentar duas contas separadas: a do banco bom dentro do Novo Banco e a do banco mau, que também lá continua a viver). O resultado disto é que o comprador, a Lone Star, exigiu garantias de que não meteria lá mais um tostão: quaisquer perdas após 2017 que gerassem insuficiências de capital teriam de ser asseguradas pelo Fundo de Resolução, com um plafond de até quase 4 mil milhões de euros, dos quais três quartos já lá foram metidos. Este foi o pecado original e mais valia, se tivesse sido possível, que o dinheiro lá tivesse sido colocado de uma vez. O Governo perdia a face, engolia um sapo tamanho Jumbo, mas matava-se o assunto. Assim, de cada vez que sai mais uma tranche – que não é novidade nem realmente negociável pelo Governo – é isto: indignação popular, sem base legal mas compreensível.
Por último, a questão dos bónus. Estando em reestruturação, o Novo Banco não pode pagar bónus aos seus administradores. Mas pode meter dinheiro de lado para que eles os recebam quando o banco deixar de estar formalmente em reestruturação, o que na verdade vai dar ao mesmo. Com anos consecutivos de prejuízos e de pedidos de dinheiro ao Fundo de Resolução, ditaria o bom senso que não houvesse atribuição de prémios, a gestores que não são assim tão mal pagos e que, sendo tão merecedores de recompensas, não conseguiram meter a instituição a dar dinheiro. Mais ainda: num momento como o que o País atravessa, é até desnecessário salientar a contenção e o decoro que o banco devia ter.
E terminamos assim, com um disparate acompanhado por muitos outros.
O Governo, o Presidente e até a oposição têm lidado bem com esta crise gerada pela pandemia, com serenidade e equilíbrio, dentro das enormes limitações do nosso País.
Comportem-se e foquem-se no que é realmente importante. Voltará o tempo para os jogos florais e para o xadrez político. Mas esse momento não é, de todo, o atual. Para disparates, já chega.