“Existe aparentemente um enorme desvio entre o que os portugueses acham que devem ter como funções do Estado e os impostos que estão dispostos a pagar” – Vítor Gaspar, 24/10/2012
A frase foi usada pelo ex-ministro das Finanças para justificar o ajustamento orçamental que o Governo estava a implementar durante o programa da troika. Embora se discuta muito do que foi feito do lado da receita – especialmente após o “enorme aumento de impostos de 2013 -, a despesa foi a rubrica que maior contributo deu para a descida do défice, principalmente durante o regime de António Costa e Mário Centeno. Não com cortes, mas através de evoluções muito contidas, abaixo do ritmo de crescimento da economia.
Quando olhamos para as principais funções do Estado – saúde, educação, segurança – quanto é que gasta hoje o setor público com elas? Como evoluíram esses gastos nos últimos dez anos? E como é que Portugal compara com a Zona Euro?
Alguns destes dados estão apenas disponíveis até 2019, o que não é muito problemático, uma vez que as contas de 2020 estão dominadas pela reação à pandemia. Na segunda parte do artigo, olharemos para as grandes rubricas, a que normalmente damos mais atenção.
O primeiro gráfico por onde se deve começar é o saldo orçamental. Portugal chegou a 2010 com um défice acima dos dois dígitos, muito acima da Zona Euro. Em 2018, já estava abaixo da média da moeda única, alcançando em 2019 o primeiro excedente da democracia portuguesa. Durou pouco. Em 2020, o combate à pandemia trouxe de novo o défice que, ainda assim, manteve um comportamento “melhor” do que a média do euro. Algo que será explicado pelo relativo conservadorismo do Governo no estímulo à economia. Portugal é um dos países que menos gastou nos apoios a famílias e empresas.
Olhando para o gráfico seguinte, é fácil perceber de onde veio o ajustamento orçamental. Ele mostra a despesa (esquerda) e a receita (direita) em percentagem do PIB. A despesa pública, que era ligeiramente superior à média da Zona Euro, afundou de forma significativa nos anos seguintes, e chega a 2019 quase 5 pontos percentuais abaixo do euro. Essa diferença aumenta ainda mais em 2020. Quanto à receita – que vem essencialmente de impostos e contribuições sociais – ela esteve sempre abaixo da média do euro. Numa primeira fase, ela aumentou devido aos agravamentos de impostos durante o programa de ajustamento (especialmente 2013). Está relativamente estabilizada na casa dos 42% desde 2016.
Saltando para as principais funções do Estado, os Serviços Gerais estavam num nível ligeiramente superior à Zona Euro e começam a recuar a partir de 2013. Em 2019, Portugal gastava menos 0,8 pontos do PIB do que em 2010, mas ainda acima da média e até com uma diferença superior à registada há dez anos. Nesta categoria da despesa estão os gastos relacionados com os órgãos de soberania e gestão da dívida pública. Ambos diminuíram, mas o segundo explica a maior parte da redução desta despesa a partir de 2013/2014.
A Defesa é um caso curioso. Os seus gastos em 2010 foram especialmente elevados, mas ela já estava antes acima da média do euro. Nos anos seguintes, os governos portugueses reduziram a despesa nesta função do Estado, enquanto ela se manteve estável na Zona Euro. Hoje, Portugal está abaixo da média.
Na Segurança e ordem pública, houve também uma redução da despesa, colocando-a hoje ao nível da Zona Euro. Além da polícia, estão também aqui os tribunais e as prisões. De referir que, tanto na defesa como na segurança, grande parte dos gastos dizem respeito a salários.
Assuntos económicos são uma rubrica bastante volátil, uma vez que incluem injeções de capital em empresas (leia-se, bancos). Mas refletem também os gastos com transportes, que estão hoje num nível muito mais baixo do que em 2010.
No campo da Saúde, Portugal tinha no pré-troika gastos um pouco mais elevados do que a Zona Euro, mas a rubrica sofreu um ajustamento agressivo, passando de 7,5% do PIB para 6,1% em 2016. Houve alguma recuperação desde esse ano, mas ainda abaixo da média da moeda única e longe do nível de 2010.
A educação é um caso em que Portugal gastava mais do que os seus parceiros do euro. Desde 2010, houve uma forte descida, de 6,7% para 4,4% do PIB. Em 2019, já estava abaixo da média do euro. Ao contrário da saúde, não houve recuperação deste valor nos últimos anos.
No caso da educação, duas rubricas explicam a diminuição da despesa: salários e investimento. Em 2019, Portugal estava praticamente alinhado com a média do euro nos salários dos funcionários público da área da educação, quando em 2010 estava bastante acima. Ao mesmo tempo, praticamente deixou de existir investimento na escola pública, depois do nível elevado de 2010.
A próxima categoria inclui o desporto e a cultura. De alinhado com o euro, Portugal passou a estar abaixo da média.
Por último, Portugal gastava menos do que a média do euro em apoios sociais e sempre aí esteve nos últimos dez anos. O único momento em que se aproximou foi em 2013, quando os níveis elevados de desemprego puxaram pelos gastos com prestações sociais, como o subsídio de desemprego.
No entanto, numa rubrica tão grande existem diferentes movimentos nas categorias de despesa que a compõem. Por exemplo, em 2019 os gastos com subsídio de desemprego representavam metade do nível de 2010 e praticamente 1/3 de 2012/13. Por outro lado, a despesa com pensões de velhice é hoje mais elevada do que há dez anos.
Se sairmos desta lógica de “funções do Estado” há outras conclusões a tirar sobre como evoluíram os gastos do Estado. Os gráficos em baixo usam os dados da Comissão Europeia, mas atualizam os números dos últimos anos de Portugal com a informação publicada recentemente pelo INE.
Uma das rubricas mais relevantes são os salários dos funcionários públicos. Em 2010, Portugal gastava mais do que a média da Zona Euro e isso continua a verificar-se em 2020, mas com uma diferença mais pequena entre os dois. Estes gastos recuaram de 13,7% para 10,7% do PIB entre 2010 e 2019. Em 2020, com a pandemia, voltaram a subir para 11,7%.
O investimento público tem sido uma das rubricas mais debatidas nos últimos anos, devido à incapacidade do Governo para executar níveis próximos daqueles que foi orçamentando. É verdade que a comparação com 2010 seria sempre complicada – foi o ano de maior investimento público desde 1997 -, mas em 2020 ainda nem se tinha chegado ao nível de 2015. De consistentemente acima da média do euro, Portugal passou a estar claramente abaixo.
Os juros da dívida são uma rubrica menos discutida, mas bastante relevante para perceber o que aconteceu às contas públicas portuguesas. Entre 2012 e 2014, Portugal gastou quase 5% do PIB em juros da dívida. Hoje, esse valor está abaixo de 3%, ao mesmo nível de 2010, antes da explosão da crise da dívida.
Por último, a dívida pública portuguesa é muito mais elevada do que a média do euro. Já o era em 2010, mas em 2020 essa diferença é ainda maior: 134% do PIB vs 102%. O endividamento público, que vinha a recuar nos últimos anos, voltou a disparar em ano de pandemia. Trabalho de Sísifo?