As obrigações verdes têm um peso cada vez maior no financiamento a nível global. Aparentemente, como estes títulos de dívida pressupõem que o dinheiro seja destinado a projetos amigos do ambiente, até se poderia pensar que as empresas estão a ficar mais limpas. Mas a conclusão não é tão linear, já que algumas das grandes emitentes de obrigações verdes são empresas de energia que continuam a poluir o planeta com a exploração de petróleo ou recurso ao carvão. Mas, pelo menos, as obrigações verdes devem estar a ser decisivas para ajudar essas mesmas empresas na transição para uma economia de baixo de carbono, certo? Não necessariamente, segundo um estudo recente do Banco Internacional de Pagamentos (BIS).
“Em geral, não existe uma forte evidência de que a emissão de obrigações verdes esteja associada a qualquer redução nas intensidades de carbono ao nível da empresa”, concluem Torsten Ehlers, Benoît Mojon e Frank Packer. Os economistas do BIS afirmam que “os investidores mais ingénuos podem esperar que empresas com maiores intensidades de carbono sejam desqualificadas como emitentes de obrigações verdes”. Mas o que ocorre é praticamente o oposto. A maior parte das emitentes destes instrumentos são empresas com uma intensidade de carbono acima das 100 toneladas de CO2 por cada milhão de dólares de receita, indica o estudo. Para se ter uma ideia do grau de poluição, uma tonelada métrica de CO2 equivale a conduzir durante 600 quilómetros um carro a gasóleo ou às emissões médias por passageiro num voo de ida e volta entre Paris e Nova Iorque.
O termo “verde” ou ESG (a sigla em inglês para investimentos em empresas com preocupações ambientais, sociais e do governo) tem atraído cada vez mais investidores e capital, seja pela preocupação da opinião pública pela sustentabilidade e/ou pela convicção de que este tipo de empresas e produtos acaba por ter um desempenho mais estável e de menor risco. As obrigações verdes, lançadas pela primeira vez em 2007 pelo Banco Europeu de Investimento, demoraram algum tempo a ganhar tração. Mas no ano passado bateram um recorde, com as emissões a totalizarem 250 mil milhões de dólares, 3,5% do montante global lançado em obrigações. Já os ativos de fundos de investimento com o selo ESG ultrapassaram pela primeira vez no segundo trimestre a fasquia do bilião de dólares, segundo dados da Morningstar, consultora especializada na análise de produtos de investimento.

Apesar desses sinais encorajadores, o problema é que, nesta floresta, nem tudo é verde. Muitos produtos ou empresas que se vendem com o rótulo de sustentável podem estar longe de o ser. Nos EUA, por exemplo, o The Wall Street Journal concluiu que oito dos dez maiores fundos com etiqueta ESG tinham investimentos nas maiores petrolíferas americanas, que têm mostrado maior resistência do que as europeias em apresentar estratégias concretas para a redução de emissões. Na febre das tecnológicas, no início do milénio, as empresas juntavam o dotcom ao nome para atraírem investimento. Nas finanças verdes, numa escala diferente e ressalvando algumas diferenças, pode estar a ocorrer algo parecido.
Como em qualquer setor que está a crescer rapidamente, existirão riscos de certos participantes no mercado adotarem padrões menos robustos .
will oulton, presidente da eurosif
“Uma das preocupações de reguladores, participantes do mercado e associações de investidores é o aumento a que assistimos de promessas exageradas de instituições sobre as suas credenciais de ESG e de potencialmente induzirem os investidores em erro. Como em qualquer setor que está a crescer rapidamente, existirão riscos de certos participantes no mercado adotarem padrões menos robustos”, reconhece Will Oulton, presidente da Eurosif, uma associação que junta investidores institucionais, gestoras de ativos e instituições financeiras que tem como objetivo a adoção de princípios de investimento sustentável nos mercados de capitais europeus.
Do castanho ao verde
Apesar de os alertas sobre problemas como as alterações climáticas não serem propriamente novos, só recentemente se começou a levar estas questões mais a sério nos mercados financeiros. “Os instrumentos financeiros sustentáveis são novos, e os alunos de licenciatura ainda não os aprendem na universidade. Por isso, acima de tudo, temos o problema da falta de conhecimento sobre o tema”, diz Sofia Santos, especialista em finanças sustentáveis e na análise de risco ESG, à EXAME. Com o fluxo cada vez maior de capital a ir para produtos verdes, é preciso evitar o risco de greenwashing, em que as empresas usam abusivamente a etiqueta verde para obter fundos.
Imagine que tem uma poupança que quer alocar em produtos de investimento sustentáveis. Uma pesquisa rápida na internet poderia oferecer muitos produtos. Mas como ter a certeza de que não se está a comprar gato por lebre ou, neste caso, castanho por verde? A tarefa não é fácil. “Apesar de os investidores de retalho se estarem a tornar mais conscientes sobre o ESG, são poucos os que os conseguem definir de forma apropriada ou decidir como incluí-los na sua carteira”, observa Elizabeth Stuart. A analista da Morningstar afirma à EXAME que “é necessário dar mais poder e know-how a estes investidores, para questionarem as gestoras de ativos sobre as metodologias de ESG”. Já Will Oulton considera que “a chave para lidar com esse problema é uma regulação sensata e pragmática, assim como transparência e a publicação de informação que permita comparações relevantes entre produtos financeiros e as organizações que os promovem”.
É necessário dar mais poder e know-how aos investidores, para questionarem as gestoras de ativos sobre as metodologias de ESG “
elizabeth stuart, analista da morningstar
Para evitar os riscos de greenwashing e incentivar a canalização de investimento para produtos verdes, a Comissão Europeia está a trabalhar, desde 2018, num plano de ação neste campo. O objetivo é “estabelecer uma linguagem comum para o financiamento sustentável”. Além disso, haverá rótulos que serão atribuídos a produtos financeiros e critérios mais apertados para empresas e intermediários financeiros na divulgação de informação. “São, de longe, as regulações mais ambiciosas que vimos neste campo. O plano de ação irá originar inovação, transparência e confiança dos investidores nos ESG nos próximos anos”, considera Elizabeth Stuart. A analista relembra que houve alguma oposição a estas regras, com algumas vozes discordantes a argumentarem que o plano não era claro e estava a ser apressado. Mas refere que, “após alguns percalços iniciais, esta regulação poderá galvanizar o universo dos fundos sustentáveis e dar confiança tanto a investidores como a emitentes”.
Já os economistas do BIS propõem que, tal como existem ratings para a dívida de empresas, se comece também a desenvolver um sistema de notações que permita aferir a qualidade de ESG das empresas. “Esses ratings, que iriam complementar os sistemas de categorização atuais, podem ser desenhados para fornecer incentivos extra para as grandes emissoras de carbono ajudarem a combater as alterações climáticas”, argumentam os economistas do banco central dos bancos centrais.
Já existem algumas entidades, como o CDP (Carbon Disclosure Project), que atribuem ratings a empresas que dependem do seu desempenho ambiental. No entanto, estes projetos dependem bastante da boa vontade das emitentes em partilhar esse tipo de informação e do interesse de investidores em incorporarem esses ratings nas suas decisões. Mas as próprias grandes agências de notação financeira começam a investir na análise de riscos ambientais, sociais e de governo com a compra de algumas entidades especializadas. “Estamos ainda no início de todo este mundo, onde as definições estão a ser construídas em simultâneo com a prática de mercado”, refere Sofia Santos.
Estamos ainda no início de todo este mundo, onde as definições estão a ser construídas em simultâneo com a prática de mercado.
sofia santos
Além de novas regras para os investimentos, estão a ser pensadas medidas que criem incentivos para a banca destinar mais financiamento a projetos e empresas verdes, através de ajustes dos requisitos de fundos próprios. E a própria poderosa política monetária do Banco Central Europeu poderá ter um efeito importante em forçar empresas e instituições financeiras a pensar e agir de forma mais verde.
Rumo ao padrão verde
Face às alterações climáticas e ao grande leque de desafios para a sustentabilidade, como a proteção da biodiversidade e a desflorestação, espera-se que se evolua para uma economia em que uma proporção cada vez maior do investimento seja dirigido a projetos e empresas sustentáveis. As regras para definir o que é ou não sustentável só agora começam a chegar ao terreno. Mas a convicção de que o mundo financeiro se terá de reger por um padrão verde é cada vez maior. “É bem possível que o ESG se torne a norma em cinco a dez anos”, afirma Elizabeth Stuart. Também Sofia Santos acredita que “o mundo das finanças terá sem dúvida um padrão verde”. Isto apesar de ressalvar que o seu impacto será diferente para os vários players do mercado.
O dinheiro alocado a investimentos sustentáveis já tem crescido de forma significativa nos últimos anos. Mas, após a reflexão forçada que o mundo teve de fazer por causa da pandemia, o mais provável é que essa tendência acelere. “O crescimento do interesse em identificar problemas de ESG, como fontes de risco e retorno e de como os integrar nos processos de investimento, tem crescido na última década e a pandemia da Covid-19 enfatizou esta tendência, levando a que se centrasse a atenção na interação entre os humanos e os sistemas ecológicos que, neste caso, teve consequências desastrosas”, diz Will Oulton.
O crescimento do interesse em identificar problemas de ESG, como fontes de risco e retorno e de como os integrar nos processos de investimento, tem crescido na última década e a pandemia da Covid-19 enfatizou esta tendência.
will Oulton
Além da preocupação com um planeta mais sustentável, e apesar do conceito de ESG ainda ser demasiado lato e flexível, os produtos de investimento com estas motivações têm batido o mercado durante a crise pandémica, o que pode convencer ainda mais investidores. “Na Europa, os fundos sustentáveis estiveram bastante protegidos das quedas associadas à pandemia, como o crash nos setores da energia e aviação, e as empresas com fortes credenciais de ESG tendem a ter balanços mais conservadores e a terem melhor desempenho em tempos de incerteza”, revela Elizabeth Stuart. A analista da Morningstar sublinha que “esta pandemia prenunciou muitos dos desafios que iremos enfrentar com as alterações climáticas, portanto foi um teste de stresse esclarecedor para o setor financeiro”.
Cerca de 37% do poder de fogo da bazuca europeia será destinado aos objetivos do Pacto Ecológico Europeu
Outro dos grandes impulsos rumo ao padrão verde vem dos maciços programas que serão colocados no terreno pelos governos para reerguer a economia, particularmente na Europa. A presidente da Comissão Europeia tem insistido na importância de um novo Green Deal, que foi reiterada no discursão da União de 16 de setembro. “Precisamos de mudar a forma como tratamos a Natureza, alterar o nosso modo de produzir e consumir, viver e trabalhar, comer e gerar calor, viajar e transportar”, disse Ursula von der Leyen. E quantificou quão verde será a recuperação da economia da UE. Cerca de 37% do fundo de recuperação de 750 mil milhões de euros, o Next Generation EU, “servirá diretamente a consecução dos objetivos do Pacto Ecológico Europeu”. E 30% dessa bazuca será financiada com recurso a obrigações verdes.
É um sinal forte de que Bruxelas está mesmo a passar das palavras aos atos. A Europa é vista pelos especialistas em ESG como a líder em práticas de investimentos sustentáveis, mas noutros grandes blocos económicos tem havido resistência nessa mudança rumo a uma economia mais responsável. Após a destruição causada por esta crise, até pode existir a tentação de tentar correr desenfreadamente atrás do prejuízo sem grandes preocupações com os danos colaterais, apesar dos sinais cada vez mais frequentes dos perigos de se enveredar por essa opção, como pandemias, incêndios e fenómenos meteorológicos extremos. O desenvolvimento de um padrão verde no sistema financeiro, que banisse o greenwashing e permitisse separar as empresas e instituições que querem contribuir para a solução das que continuam a fazer parte do problema, seria uma arma importante para garantir que o mundo evitaria ir novamente por esse caminho insustentável.
(Artigo publicado originalmente na edição 438, de outubro de 2020, da EXAME)