A primeira coisa que temos de dizer é que este não é um exercício de causalidade. Daqui não se vai concluir que alguém votou no Bloco de Esquerda porque é jovem ou porque vive numa grande cidade. Mas é útil – ou, na pior das hipóteses, interessante – para comparar os diferentes perfis dos partidos. Essas características são mais relevantes para uns do que para outros. Algumas conclusões são previsíveis, outras mais surpreendentes.
O debate sobre o perfil dos eleitores de cada partido é antigo, mas ganhou mais algum picante com as declarações de Miguel Sousa Tavares na noite das eleições. O comentador da TVI mostrou ter bastantes certezas sobre quem votava no PAN. Argumentou que nos meios rurais “toda a gente detesta o PAN”, onde “não tem um voto”. “O PAN é o partido dos urbano-depressivos”, são “os vegan, os que comem verduras, alfaces”.
Como ainda não existem dados sobre consumo de legumes para cruzar com os votos do PAN, decidimos começar pela população. O PAN tem ou não mais votos em concelhos com maior densidade populacional? A primeira coisa que convém dizer é que a afirmação de Sousa Tavares é bastante exagerada. O PAN obteve perto de 5,1% nas europeias e há vários concelhos de baixa densidade onde conseguiu resultados acima dessa percentagem, como Torres Vedras, Silves, Aljezur ou Valongo.
Descontando a hipérbole, parece mesmo existir uma relação entre a população e o voto no PAN. O partido dá-se melhor em áreas mais densas. Em baixo, são utilizados dados eleitorais por município recolhidos por Pedro Magalhães, investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, relacionando-os com a densidade populacional. Se acharem estranho o eixo horizontal dos próximos gráficos é porque ele segue uma escala logarítmica, que permite analisar melhor a distribuição de cada partido.
Sozinho, o gráfico não é extraordinariamente informativo: percebe-se que quanto maior a densidade, melhor o resultado do PAN, mas é preciso saber quão diferente é de outros partidos. A utilidade do exercício aumenta quando fazemos uma comparação com outras forças. O Bloco de Esquerda, por exemplo, é visto como um partido essencialmente urbano, mas veja-se a diferença face ao PAN. A recta do PAN é mais pronunciada, o que sugere uma relação mais forte com a densidade populacional.
Além disso, em comparação com o resultado que obteve em 2014, os votos no BE passaram a ter uma relação menos relevante com a densidade, o que sugere que Marisa Matias conseguiu conquistar eleitores em regiões onde o Bloco não tinha tanto sucesso anteriormente, ganhando terreno em áreas com menor concentração de população. Este perfil mais abrangente do BE vai continuar a observar-se mais à frente, na análise de outras variáveis.
Ainda assim, o BE não é assim tão diferente do PAN. Tem simplesmente uma relação menos intensa. Se queremos apanhar diferenças a sério, só temos de olhar para CDU e para o CDS, cuja relação com a densidade é praticamente inexistente.
Nos votos do Basta, a relação é até negativa. O Livre volta a aproximar-se do perfil do PAN, um partido de carácter muito mais urbano.
Sem sairmos do tema da população, podemos olhar para a quantidade de pessoas em vez da dimensão. Neste caso, a cautela com interpretações tem de ser ainda maior. Em baixo, usando a população das freguesias portuguesas segundo os censos de 2011, cruzamos essa informação com os votos de cada partido. A fonte da segunda variável é o repositório de dados da Renascença, que pode ser consultado aqui. São óbvias as diferenças de perfil entre PAN/BE e CDU/CDS. Os segundos conseguem alguns bons resultados em freguesias com poucas pessoas, enquanto os primeiros só o conseguem fazer nas grandes.
Quem ganha mais vota em quem?
Se passarmos do ângulo da população para os salários, também conseguimos ver identificar claras entre os partidos. Também neste caso, o objetivo não é tanto concluir que os votos no PAN se devem ao estatuto remuneratório das pessoas, mas mais que esse estatuto tem uma correlação mais forte com os votos no PAN do que noutros partidos. Nalguns casos, as diferenças são bastante significativas e permitem-nos saber um pouco mais sobre o perfil do eleitor típico de cada força política. Em baixo, está um painel com BE, CDU, PAN e CDS, onde podemos ver a relação entre os votos recolhidos e o ganho médio dos trabalhadores por conta de outrem de cada concelho. As escalas verticais estão diferentes para se perceber melhor a distribuição de cada partido.
As diferenças de perfil ficam expostas: PAN e BE tendem a ter melhores resultados em municípios onde as pessoas ganham melhor (essa relação é mais forte no PAN), enquanto para a CDU essa variável é menos relevante e para o CDS ela simplesmente não parece existir.
(Agora é uma boa altura para lembrar que estes dados não mostram o rendimento da pessoa que votou em determinado partido, mas sim do município onde reside.)
Já agora, se olharmos para PS e PSD vemos que a relação é negativa. Concelhos com salários médios mais baixos são terreno mais fértil para o voto nos dois maiores partidos. Na comparação entre os dois, podemos ver que o voto nos socialistas tem uma relação mais frágil com os salários do que nos sociais-democratas.
O voto e o envelhecimento
A idade dos eleitores também parece ser um fator importante na descrição de cada base eleitoral. Para chegarmos lá, utilizamos o índice de envelhecimento disponibilizado pelo INE. Isto é, a população com mais de 65 anos face ao número de pessoas com menos de 15. Mais uma vez, começámos pelo PAN, que é o partido acerca do qual sabemos menos. O voto no PAN é tendencialmente mais alto nos concelhos mais jovens e, quando se compara com 2014, verifica-se que a “juventude” do voto se tornou mais relevante do que há 5 anos (ainda que, neste caso, seja recomendável alguma cautela com a relevância dessa transformação). Das forças políticas que analisámos, o único partido com uma relação tão forte com a juventude/velhice do município é o Livre.
O caso do Bloco de Esquerda é especialmente interessante. Em 2014, o partido tinha um perfil muito semelhante ao PAN: perdia popularidade à medida que os municípios se tornavam mais velhos. No entanto, ao contrário do PAN que se tornou “mais jovem”, em 2019 o resultado do BE revelou um partido menos condicionado pela idade dos eleitores. Embora continue a ter melhores resultados em municípios mais jovens, aparentemente o voto no Bloco tornou-se menos dependente dessa variável. Mais um sinal da maior abrangência do partido (ou de Marisa Matias).
Como fizemos anteriormente, vale a pena comparar o perfil do BE e do PAN com a CDU. A idade do eleitorado dos comunistas e dos verdes parece ser menos relevante para explicar o voto no partido.
Ou então veja-se o perfil ainda mais afastado do CDS e do Basta. Uma recta praticamente plana indicia que o índice de envelhecimento de determinado concelho não nos diz nada sobre o sucesso destas forças nesse município.
Por último, PS e PSD apresentam um perfil bastante semelhante e praticamente oposto ao do PAN (e BE). Quanto mais velho o concelho, mais votos estes partidos parecem conquistar. Ou, visto de outra forma – talvez mais fiel – os partidos médios e pequenos tendem a ter melhores resultados em municípios mais jovens (o que penaliza os grandes partidos).
Existem outras variáveis em relação às quais podíamos testar relações. Uma delas é claramente a qualificação da população, como faz aqui Pedro Magalhães, para o PAN.
Mas isto já nos dá bastante para mastigar. As eleições europeias trouxeram o PAN para a ribalta, o que surpreendeu muita gente. Quanto mais soubermos sobre quem está a votar nele, melhor poderemos compreender os motivos do seu sucesso. Outubro está já aí ao virar da esquina.