Estão a ver os batalhões de homens e mulheres em motas e bicicletas com mochilas gigantes? Os estafetas de apps como as populares Glovo ou Uber Eats são um reflexo de transformações profundas no mercado de trabalho. Por esta altura, já deve estar farto de lençóis de texto a explicar-lhe como os robots lhe vão roubar o emprego no futuro, mas essa é apenas uma das vias pelas quais a tecnologia pode mudar a natureza do trabalho – e talvez nem seja a mais provável de se concretizar. Nos últimos anos, temos assistido ao crescimento de fenómenos de informalidade e maior precarização da relação empregado-empregador, que deixa o primeiro numa posição mais frágil.
Num estudo publicado este ano pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a instituição alerta para os já conhecidos riscos relacionados com a automatização, mas sublinha a relevância das plataformas de crowdworking como fonte de disrupção. Segundo a OIT, elas “podem recriar práticas laborais do século XIX e gerações futuras de trabalhadores digitais à jorna”.
Do que estamos a falar? Empresas como a Uber ou Lyft são a face mais visível do debate, devido aos protestos dos taxistas, mas não são as mais relevantes no que diz respeito ao peso no emprego. Provavelmente nunca ouviu falar da Amazon Mechanical Turk, Crowdflower, Crowdsource ou Care.com, mas têm milhões de trabalhadores inscritos nas suas plataformas, responsáveis por pequenas tarefas online, como classificação de imagens, ler críticas de utilizadores ou preencher questionários.
Neste texto utiliza-se a palavra trabalhadores, mas para as empresas desta “gig economy” ou economia do biscate, a sua mão-de-obra é composta por empresários em nome individual. As plataformas servem apenas para os colocar em contacto com os clientes finais. As vantagens são fáceis de identificar: salários mais baixos e flexibilidade contratual. Os trabalhadores também podem beneficiar dessa flexibilidade, assim como, nalguns casos, da capacidade de trabalhar a partir de casa e ganhar mais algum dinheiro sem um compromisso contratual.
No entanto, para muitos, essas vantagens são uma miragem. Estas tarefas representam fontes essenciais de rendimento e pagam muito mal. 0,8 dólares para ler uma crítica a um restaurante, 1 dólar para preencher um inquérito psicológico e longos períodos de “tempo morto”, a procurar novas tarefas ou clientes. Segundo a McKinsey, três em cada dez freelancers são-no por necessidade e quase metade desses não têm outra fonte de rendimento. Não deixa de ser curioso que esta economia de plataforma não seja propriamente atrativa para desempregados, mas mais para quem já trabalha, mas normalmente não a tempo inteiro.
Numa conversa com a VISÃO há alguns meses, Valerio de Stefano, ex-quadro da OIT e especialista na área, nota que “estes trabalhadores têm salários muito baixos, falta de estabilidade, não estão protegidos em caso de doença, nem têm proteção social”. Quem lhe vai entregar o jantar em tupperwares bem acomodados e com coraçõezinhos desenhados provavelmente terá de pagar do seu bolso qualquer despesa com um acidente e dificilmente terá direito a baixa médica. Sindicatos? As atividades são ainda demasiado recentes e fragmentadas para que estejam organizadas. O JN escrevia no final do ano passado sobre as dificuldades que os estafetas enfrentam.
Uma referência para o resto do mercado
“Antes da internet seria muito difícil encontrar alguém, sentá-la durante dez minutos, fazer com que ela trabalhe para si, e depois despedi-la após esses dez minutos. Porém, com a tecnologia pode, de facto, encontrar esses trabalhadores, pagar-lhes um montante muito baixo e depois livrar-se deles quando já não precisar.”
A frase é de Lukas Biewald, CEO da Crowdflower, que chegou a ter 5 milhões de utilizadores registados. Na Europa, este tipo de vínculo ainda não representa uma percentagem elevada da mão de obra, mas os números absolutos podem nem ser o mais relevante. Como as regras da Função Pública servem de referência para o setor privado, estas plataformas servem de exemplo para o resto do mercado. Na realidade, elas surgem num contexto de várias transformações conjunturais e estruturais, que favorecem o seu crescimento: degradação demográfica, flexibilização das leis laborais, crise económica e revolução tecnológica. O emprego tradicional, a tempo inteiro e de jornada contínua, com vínculo direto entre empresa e empregador tem perdido terreno.
Nem todos acham que só existem consequências negativas. Ao Expresso, Carmo Sousa Machado, chairman da Abreu Advogados, até admitia que os salários poderiam aumentar, mas reconhecia que no que diz respeito a condições de trabalho e proteção social “estamos sim perante um quadro efetivo de deterioração da proteção dos trabalhadores”. Existem deficiências profundas de regulação. Jean Pisani-Ferry dizia à VISÃO que “a categoria de trabalhadores independentes está desenhada para as necessidades de lojistas e de médicos, não de motoristas da Uber”.
Esta nova realidade não afeta apenas os direitos dos trabalhadores, mas também o financiamento de pensões e outros apoios sociais, cuja arquitetura se baseia no trabalho dependente. Maior prevalência deste tipo de trabalho criará uma pressão adicional sobre o Estado Social, seja no sentido de cortar despesa ou encontrar novas fontes de receita.
Importa referir que a tendência de precarização dos vínculos laborais não surgiu com a emergência deste tipo de plataformas. De Stefano escrevia em 2016 que “flexibilidade extrema, transferência de risco para os trabalhadores e instabilidade de rendimento tornaram-se há muito tempo numa realidade para uma fatia da mão-de-obra no mercado de trabalho actual, indo muito além das pessoas empregadas na “gig economy”.
Portugal tem já uma das percentagens mais elevadas de trabalhadores com vínculos precários da União Europeia. Apesar da melhoria do mercado de trabalho dos últimos anos – e das promessas do Governo e dos partidos que o apoiam no Parlamento – esse número continua a rondar os 21%/22% do emprego por conta de outrem. É possível que nos próximos anos este rácio cresça ainda mais. Parte da mudança pode ser inevitável numa economia de serviços digitalizada, mas é importante que os responsáveis políticos estejam atentos, para que se evite o retrocesso de mais de 100 anos para o qual a OIT alerta.
Ao longo dos últimos anos, os académicos têm discutido várias consequências negativas do crowdwork. Uma análise feita há dois anos pelo Parlamento Europeu sistematizava-as da seguinte forma:
– Transformar as relações laborais em atividades por conta própria.
– Desumanizar os trabalhadores, tornando-os invisíveis. Um exército anónimo com o qual o empregador não contacta ao vivo e que deve estar sempre disponível para trabalhar quando a empresa necessitar.
– Deslocalização de tarefas, não só para outros países, como entre várias pessoas. Por exemplo, alguém que era contratado a tempo inteiro para fazer três tarefas é substituído por 3 pessoas que trabalham menos horas, por menos dinheiro e com menos direitos.
– Algum deste trabalho em plataformas exige acesso estável e de elevada qualidade à internet e algum conhecimento tecnológico, o que exclui alguns segmentos mais velhos da população.
– O trabalhador está mais vulnerável a flutuações na procura ou mudanças de hábitos de consumo. Como está por sua conta, um acidente ou doença podem ser suficientes para não conseguir pagar as contas.
– Esta maior vulnerabilidade significa que o Estado vai provavelmente gastar mais dinheiro em apoios sociais, o que têm um impacto orçamental negativo.
– Este tipo de relação laboral digital torna também mais difícil fiscalizar direitos fundamentais, como o trabalho infantil ou formas contemporâneas de escravidão.