Quem é que não gosta de fogo-de-artifício? Todos os anos, lá estamos nós a olhar para o céu, já com a cabeça leve do champanhe e a camisola cheia de confettis. É normalmente um momento divertido com alguns “uau” pelo meio. No entanto, ao contrário de outros eventos que nos satisfazem, nós não pagamos para o ver (pelo menos diretamente) e talvez nos recusássemos a pagar se alguém nos pedisse. Apesar disso, não vão faltar foguetes neste réveillon. Porquê?
Sandra Maximiano é uma economista especializada na área comportamental. Numa conversa com a VISÃO, explica que o fogo-de-artifício constitui “um bem público que gera benefícios”, ainda que difíceis de estimar. De uma forma simples: se não houvesse Estado provavelmente não haveria fogo-de-artifício. Dificilmente conseguiria convencer um empresário a financiar uma atividade que é indiferente ser “consumida” por 10 pessoas ou por dez milhões de pessoas e em que é praticamente impossível cobrar entradas.
A teoria económica neoclássica chama a isto um bem “não-rival” e “não-exclusivo”. Ou seja, um bem público. “Não há exclusividade, nem rivalidade. Por isso é que nenhum privado tem interesse em explorar a área”, explica Sandra Maximiano, hoje professora no ISEG e cronista do Expresso.
Outros exemplos de bens públicos são: um farol; estatísticas oficiais; defesa do país; barragens; iluminação de rua; e medidas de redução da poluição. Nesta óptica, transportes públicos não são considerados um “bem público”, porque exigem que pague bilhete ou passe e porque há limites ao número de passageiros que podem ser transportados. Uma piscina pública também não. A entrada até pode ser gratuita, mas não se pode deixar entrar toda a gente, sob pena de arruinar a satisfação de todos.
Bom, mas é relativamente consensual que ver umas explosões no céu não é tão decisivo para o bem-estar da população como uma barragem. E de certeza que conhece alguém que se está a borrifar para os foguetes. Não faria sentido cobrar às pessoas que queiram mesmo assistir ao fogo-de-artifício? É aí que nos deparamos com o problema do “free rider”. Por exemplo, se pedíssemos a todos os lisboetas para pagarem pela organização do evento, a teoria económica diz-nos que um grande número deles se recusaria a contribuir, antecipando que outras pessoas pagariam em número suficiente para que o evento continuasse a acontecer.
Este problema é também explorado na contratação coletiva. Trabalhadores que não são sindicalizados, nem pagam a respetiva contribuição, mas beneficiam dos ganhos conseguidos pelos representantes sindicais junto da empresa. Ou um exemplo ainda mais comum: aquele amigo que nunca quer pagar para encomendar pizzas, mas depois vai lá sempre tirar uma fatia.
Que benefícios?
Em teoria, um privado poderia alugar um terreno suficientemente amplo e restringir a entrada de pessoas que pudessem ver o fogo-de-artifício, mas é fácil antecipar os problemas práticos que implicaria controlar uma área tão grande, com provavelmente uma eficácia duvidosa de qualquer forma. Não é impossível – a Câmara de Londres cobra pelo acesso a um local privilegiado para ver o seu espetáculo de Ano Novo -, mas são necessárias condições muito especiais.
Normalmente, as empresas privadas preferem dedicar-se a produzir bens privados que possam vender e com os quais possam lucrar, deixando para o Estado os bens públicos. “Quando um mercado privado não consegue produzir um bem ao nível ou quantidade que a sociedade deseja, os economistas dizem que há uma falha de mercado”, explica a Reserva Federal de St. Louis, em podcast. “Uma empresa que pretenda fazer dinheiro provavelmente não ofereceria um espetáculo de fogo-de-artifício se não pudesse impedir pessoas de o ver. Precisa de lucrar para se manter em funcionamento. Portanto, o mercado privado não consegue providenciar os espetáculos que a sociedade quer.”
Ficamos perante duas hipóteses: não haver evento; ou o setor público pagar por ele (normalmente as autarquias), num modelo em que o “free riding” é mitigado. O Estado cobra impostos, que redistribui – entre muitas outras coisas – sob a forma de bens públicos.
Para decidir qual das opções tomar é necessário avaliar se existem benefícios. Os ganhos económicos são relativamente óbvios. Um espetáculo de fogo-de-artifício funciona como um íman, atraindo mais visitantes, maior ocupação hoteleira, mais consumo e, eventualmente, uma melhoria da imagem internacional do país (em que altura do ano mais ouve falar da Austrália?). Isso é especialmente relevante para cidades como Lisboa ou Funchal.
Porém, mesmo em locais onde esse benefício coletivo é menos significativo, há benefícios individuais a considerar. “As pessoas procuram o fogo-de-artifício, fá-las felizes”, nota Sandra, reconhecendo, contudo, a dificuldades que existe em medir o nível satisfação quando ela não envolve qualquer pagamento. Faltam estudos e inquéritos. “Os decisores políticos têm dificuldade em saber a preferência das pessoas.”
Se a câmara municipal achar que estes dois tipos de benefícios superam os custos, fará sentido pagar pelo fogo-de-artifício. No ano passado, o espetáculo de pirotecnia em Lisboa, por exemplo, custou 74 mil euros (mais IVA). Em Sidney, talvez o mais famoso do mundo, custou 4 milhões de euros e em Londres em torno de 2 milhões.
E se há dificuldades em estimar o benefício que o fogo-de-artifício traz, ainda menos conhecimento existe sobre as externalidades negativas que podem ser criadas: lixo, barulho, acidentes, incêndios… Por exemplo, este ano no Terreiro do Paço, não poderão entrar selfie sticks, garrafas e copos de vidro e megafones para tentar minimizar alguns desses efeitos. Tudo isso deveria ser contabilizado, junto com os benefícios económicos e a satisfação da população, para decidir se faz sentido usar os nossos impostos para pagar pelo evento.
Cidades grandes vs. cidades pequenas
É necessário ainda referir que o modelo de financiamento não é igual em todo o lado. “Numa vila mais pequena, pode haver um sistema de contribuições para pagar um fogo-de-artifício. Aí, o Homo economicus está menos presente e as pessoas sentem que devem contribuir”, nota Sandra Maximiano, que tem conduzido estudos experimentais precisamente sobre estas diferenças. “Em grupos mais pequenos há menos “free riding”. E as contribuições também são maiores quando as pessoas se conhecem e não são anónimas”, acrescenta. “Em sociedades menos egoístas, há maior capacidade de financiar” estes bens públicos.
Este tipo de eventos tem o problema de durar apenas alguns segundos o que pode fazer com que pareça um luxo desnecessário (lembra-se do escândalo das cartolas em Lisboa há um ano?), havendo certamente quem defenda que os fundos públicos sejam usados para outros fins.
Seria interessante saber quanto estaria cada um de nós disposto a pagar para ver fogo-de-artifício ao vivo ou na TV? 2 euros? 3 euros? Um mero exercício: se as 500 mil pessoas que moram em Lisboa pagassem 2 euros cada, isso renderia um milhão à câmara. Ou seja, (muito) teoricamente, bastante acima do custo do evento.
Na realidade, não sabemos se esse valor é sequer próximo daquilo que os lisboetas estariam dispostos a pagar e, como vimos antes com problema do “free rider”, possivelmente muitos nem pagariam mesmo que adorem ver luzes no céu. Mas o Estado calcula que o benefício vale o custo, por isso intervém.
“Cada um de nós beneficia da utilização de bens públicos todos os dias – muitas vezes sem sequer pensarmos nisso. Mas eles são necessários para que a economia funcione bem, assim como a sociedade em geral”, refere a Fed de St. Louis. “Portanto, da próxima vez que ler sobre segurança nacional, observar um espetáculo de fogo-de-artifício ou conduzir numa estrada bem iluminada à noite, pense por um segundo naquilo que faltaria à sua vida sem bens públicos.”