Pagamos 9 dólares, ficamos uns minutos (ou horas) numa fila e, quando chega a nossa vez, recebemos uma saqueta fechada. Lá dentro, estão três cromos ou momentos de um jogo de NBA para colecionar. Nada de revolucionário nem uma experiência pela qual nunca passámos quando colecionávamos cromos. A diferença é que isto se passa no écran do nosso computador ou telemóvel. Chama-se NBA Top Shot e faz parte do movimento que está a mudar o colecionismo desportivo e a olhar para ele cada vez mais como um investimento.
O Top Shot é uma plataforma onde podemos comprar e vender highlights oficiais de jogos de NBA. Em vez de ter fotografias dos jogadores para guardar ou colar, tem algumas das suas melhores jogadas. É uma parceria entre a NBA, o sindicato de jogadores e a Dapper Labs, uma startup canadiana. A NBA decide que jogadas quer promover e a Dapper decide quantas serão disponibilizadas dentro dessas saquetas virtuais. A sua raridade depende da espetacularidade da jogada, do momento em que foi feita e, acima de tudo, da fama do jogador. Esse mix – com uns pozinhos extra que venham, por exemplo, de a jogada ser do ano de estreia do atleta – determinam o preço a que ele é vendido. Um afundanço do LeBron James vale mais do que dois pontos de um Donte DiVincenzo.
Talvez seja mais fácil de perceber com um exemplo. Um dos momentos que me calhou nessas saquetas foi um afundanço do Montrezl Harrell, dos Los Angeles Lakers. O Top Shot compromete-se a produzir, pelo menos, 40 mil desses momentos, mas avisa que pode decidir aumentar esse tecto no futuro. É comum e barato. No entanto, outro que me saiu foi um triplo de Saddiq Bey, dos Detroit Pistons, que a plataforma garante que só produzirá 18 mil. É menos comum e mais caro. Algumas das jogadas mais raras podem ter uma disponibilidade de apenas algumas dezenas. Essas são vendidas por milhares de dólares.
Os momentos mais baratos custam dois ou três dólares. O mais caro de sempre, um afundanço do LeBron (lá está), foi vendido por 208 mil dólares.
Por esta altura, talvez seja importante sublinhar que este dinheiro todo não lhe dá qualquer direito sobre essas imagens. Aliás, provavelmente encontra todas aquelas jogadas de graça no YouTube. A escassez é criada através de NFTs ou non-fungible tokens. O que é isso?
Os euros que tem na carteira são fungíveis. Pode trocar essas notas por outras de igual valor. Uma nota de €10 vale o mesmo que duas notas de €5. Se algo é “não-fungível”, isso significa que tem propriedades únicas e não pode ser trocado. É isso que é um NFT: um certificado digital de autenticidade, que prova que aquele ficheiro é único. Para garantir a fiabilidade do processo, é utilizada tecnologia blockchain – a mesma que está por trás de criptomoedas, como a Bitcoin -, cuja natureza descentralizada torna falsificações ou fraudes teoricamente impossíveis.
Os NFTs permitem criar escassez no universo digital. Um ambiente em que isso tem sido muito mais complicado de assegurar do que no mundo físico. Ao ser possível colocar um carimbo inviolável de autenticidade numa obra de arte, música ou vídeo, os NFT vieram facilitar a monetização nesse espaço. Novos mercados começaram a nascer como cogumelos e os preços começaram a explodir. Isso ficou mais claro do que nunca quando o artista Beeple vendeu a sua colagem digital “Everydays: The First 5000 Days” por 69 milhões de dólares. O terceiro valor mais alto pago pela obra de um artista vivo. Os Kings of Leon lançaram um álbum como NFT e Ana Moura fará o mesmo com o seu próximo projeto.
O Top Shot usa a mesma tecnologia para os highlights. É o equivalente às cartas de jogadores, mais comuns nos EUA, ou às cadernetas de cromos, mais habituais por cá. Se quiser, também consegue ir à net imprimir caras de jogadores em vez de comprar uma saqueta de cromos. Mas não é bem a mesma coisa. Não é assim tão diferente das obras de arte. Por uns 20 euros eu posso ter uma cópia de “O Grito” de Edvard Munch pendurado na minha sala de jantar. A generalidade das pessoas não consegue perceber a diferença para o original, mas ele foi vendido por 120 milhões de dólares, em 2012.
O argumento de que é possível ver noutro sítio – de borla! – só aparece se não pensarmos muito sobre a forma como estamos habituados a fazer as coisas. “Não posso ir ao YouTube de graça ver o afundanço do Ja Morant? Claro que pode. Também pode pedir ao seu primo na escola de design para desenhar no Photoshop uma carta de “rookie” do Kobe Bryant em vez de pagar 42 mil dólares por ela no eBay”, escreve a revista SLAM.

Para já, o Top Shot é um sucesso. Segundo o NYT, foram feitas vendas no valor de 589 milhões de dólares desde outubro do ano passado, um período que coincidiu com a febre das criptomoedas e a “descoberta” de NFTs pela generalidade da população.
A Dapper diz que já arrecadou 45 milhões só com a venda das saquetas, a NBA e o sindicato dos jogadores não quer revelar quando já receberam. Numa altura desafiante para a monetização do entretenimento desportivo, outras modalidades podem olhar para esta via. Em vez de uma caderneta do Mundial de Futebol, porque não guardar clips de algumas das melhores fintas?
Os jogadores também parecem gostar. E o site já entra no trash-talk. Num jogo entre os Jazz e os Pelicans, Rudy Gobert afunda na “na cara” de Josh Hart e diz-lhe que espera que aquele momento vá parar ao Top Shot. Mais: eles aperceberam-se do poder que têm para fazer mexer o mercado. Quando um jogador vai ao Twitter promover um highlight seu ou dos seus amigos, faz disparar o preço.
Os efeitos são imediatos. Ao contrário dos cromos em que temos de nos encontrar para os comprar ou trocar, o facto de ser digital torna as transações muito rápidas. O que significa que é também terreno fértil para especulação.
No início de março, ao “Wall Street Journal”, um analista financeiro que se tornou colecionador dizia ter gastado 175 mil dólares em momentos Top Shot e que a sua coleção já valia 20 milhões de dólares. Havia muitos utilizadores novos a entrar e relativamente poucos momentos disponíveis. O mercado estava super-quente. As saquetas que se compravam por $9 tinham três momentos e, cada um deles, era facilmente vendido por $5, $10 ou mais. O que fazer com um mercado assim? O Top Shot decidiu deitar-lhe um balde de água fria em cima.
O site aumentou a periodicidade dos lançamentos, com novas saquetas todas as semanas e facilitou-lhes o acesso, permitindo que todos os que reservassem conseguissem comprar (antes havia um limite de saquetas disponíveis em cada lançamento). Isto inundou o mercado de jogadas, algumas delas de qualidade mais duvidosa, fazendo cair significativamente os preços. Alguns momentos passaram a ser vendidos por $1.
E aquele analista financeiro que falou ao WSJ há três meses? O valor da sua coleção pode ter caído para metade. No meu caso, aquela jogada do Saddiq Bey deixou de valer mais de $30 e pode agora ser encontrada à venda por $13. Outro momento, do Joe Ingles, dos Jazz, caiu de $20 e poucos para $2.
Durante a Grande Depressão, o Governo americano pagou aos agricultores para destruírem colheitas e gado para estimular artificialmente os preços. Aqui, estamos a assistir ao contrário: inundar o mercado para os arrefecer. Fazer com que a dinâmica da oferta supere a da procura. Só que, em vez de porcos e algodão, são clips da NBA.
Muitos colecionadores não gostaram de ver a coleção perder valor, mas os mais atentos estão otimistas: era algo inevitável para impedir um rebentar desorganizado da bolha. Ainda assim, faz sentido lembrar que o anterior projeto da Dapper foi o CryptoKitties, cartas digitais de criaturas adoráveis. Também teve um arranque promissor, mas os valores afundaram ao fim de algum tempo, quando as pessoas se cansaram. Não é impossível que isso se volte a repetir.
Os geeks mostram o caminho
O dilema do Top Shot é semelhante ao que foi vivido por outro tipo de colecionáveis. Um dos exemplos mais conhecidos é o das cartas de basebol. Elas nasceram no final do século XIX, quando as empresas de tabaco queriam tornar os pacotes mais rijos. Entre meados da década de 1980 e dos anos 90, o negócio viveu uma bolha. As empresas que produziam estas cartas fizeram disparar a produção, enquanto os colecionadores agarravam todas as que podiam, convencidos de que estavam a acumular uma fortuna em cartas. Como costuma acontecer nestes casos, o valor acabaria por colapsar. Hoje, há milhares de coleções constituídas nessa altura quase sem valor.

A história da bolha da banda-desenhada é relativamente bem conhecida, fazendo hoje parte do mito de queda e renascimento da Marvel: de empresa na falência a maior franchise cinematográfico do mundo. Também nesse caso, a bolha rebentou de forma desorganizada.
Mas não existem só exemplos maus. Magic: The Gathering mostra que o caminho pode ser outro. São cartas parecidas com as de basebol, mas em vez de jogadores têm criaturas e monstros, com números, estatísticas e poderes que mostram a sua força. Além disso, em vez de só servirem para serem colocadas em capas transparentes ou expostas em vitrines, elas podem ser usadas para jogar com os seus amigos.
As cartas Magic enfrentaram uma situação semelhante a outros colecionáveis. As saquetas estavam cheias de cartas mais comuns, mas havia também a probabilidade de lhe sair uma mais rara. Alguns jogadores ficavam com elas para as usar, mas muitos aproveitavam para vendê-las a preços cada vez mais altos. Um pack de $3 podia ter uma carta que seria revendida por dezenas ou centenas dólares. Ainda este ano, a mais famosa, chamada Black Lotus, ultrapassou os $500 mil.
“Os fenómenos que análisámos tiveram o seu pico, a altura em que estavam mais “quentes”, durante dois anos. A determinada altura, as pessoas pensam “uau, gastei $1000 em banda desenhada e só há $25 que eu quero mesmo ler”. Isso bate-te como um monte de tijolos. Assim que que um número suficiente de pessoas acredita nisso, a dinâmica de mercado muda e temos um grande problema.”
A descrição é feita à NPR por Skaff Elias, matemático e um dos primeiros trabalhadores da Wizards of the Coast, empresa responsável pelas cartas Magic. O jogo estava a criar classes de jogadores: quem tinha muito dinheiro/interesse para comprar cartas raras e o resto. A prazo, a explosão dos preços e a concentração de poder seria uma barreira à entrada. E havia também riscos financeiros. Embora muitos na empresa quisessem continuar a surfar a onda, a bolha das BDs e das cartas de basebol mostrava que, para garantir a sustentabilidade, era necessário ir noutra direção.
Em vez de deixar a bolha insuflar, eles anteciparam-se. Meteram as impressoras a funcionar e inundaram o mercado de novas cartas. A NPR conta que eles iam loja a loja ver o preço a que as saquetas estavam a ser vendidas e iam ajustando a produção. Revender cartas ainda era possível e podia ganhar-se algum dinheiro com a carta certa, mas deixou de ser tão fácil especular. Havia demasiada oferta. Os colecionadores não acharam piada, mas o mercado sobreviveu. Até hoje.
Pode ser isso que está na cabeça do Top Shot, quando decidiu arrefecer o mercado. Se a jogada mais barata custar cinco ou seis dólares, talvez haja menos gente interessada nele do que se custar dois ou três.
“Não podemos estar a produzir mais e mais [cartas] mais e mais poderosas”, explica Zach Hill, um jogador que também acabou a trabalhar para a Wizards of the Coast. “A nossa análise de mercado mostra que as pessoas gostam de espadas, anjos, fogo, dragões, asas e batalhas nas cartas, certo? Portanto, nós não vamos fazer, tipo, o anjo com asas de morcego e espada da desgraça ardente.”

Uma nova bolha?
Hoje, estamos a viver um momento de boom (alguns diriam bolha) de colecionáveis deste género. As vendas de cartas de jogadores atingiram máximos históricos em leilões. Uma carta de LeBron James, do seu ano de estreia, foi vendida por 1,8 milhões de dólares, o mesmo preço de outra carta de Giannis Antetokounmpo. Há um mês, esse máximo foi pulverizado, novamente por James. Mais de dez cartas ultrapassaram os $500 mil nos últimos meses.
O crescimento já tinha começado há uns cinco anos, mas ele acelerou significativamente com a pandemia, com muitos daqueles que ficaram meses fechados em casa a revisitarem as suas coleções e a tentarem perceber quanto podiam valer no Ebay. Foi o que fiz com a minha pequena coleção de Magic.
Sete das cartas desportivas mais caras de sempre foram vendidas no último ano e o recorde a foi batido duas vezes desde o verão do ano passado. O mercado está a aquecer tanto que, tal como no pico dos anos 90, já se fala delas como alternativas de investimento, com todos os riscos que isso implica.
“Os traders podem fazer short selling quando um preço de acelera demasiado, como aconteceu com a GameStop. Em mercados como o das cartas desportivas é impossível shortar. Ninguém pode chegar e disciplinar o mercado”, afirmou o economista John List ao site “The Athletic”.
Esta febre de colecionáveis está a encontrar soluções tecnológicas inovadoras para o alimentar. O Top Shot é um exemplo, mas não está sozinho. A Alt é uma nova plataforma de investimento em cartas desportivas, procurando aproximar-se do investimento em ações numa versão simplificada (um pouco como faz a Robinhood). Ele traz vantagens face ao contacto direto entre vendedor/comprador. É uma forma de ter uma avaliação em tempo real da nossa coleção, com taxas de transação relativamente baixas (1,5%, o que compara com valores 10 vezes superiores no Ebay e potencialmente ainda maiores em casas de leilão) e um serviço de autenticação.
“Há décadas que ações, obrigações e mercado cambial têm sido os veículos de investimento predominantes, em grande medida porque têm sido os mais transparentes e líquidos. Com a Alt, queremos tornar as cartas desportivas – e, eventualmente, relógios, ténis e arte – em ativos para investir”, disse ao Axios o fundador Leore Avidar.
Fala comigo sobre investimentos
Ganhar dinheiro com a nostalgia não é um exclusivo dos colecionáveis desportivos. É fácil lembrar-nos de outras tendências atuais de investimento, como as meme stocks, em que pequenos investidores de retalho se apaixonam por empresas às quais têm alguma ligação emocional, como a GameStop, AMC, Blackberry. Ou simplesmente porque é engraçado. Ter clips de jogos de NBA parece um conceito mais divertido do que comprar ações da Apple ou até minerar Bitcoin.
Isto coloca novos desafios aos mercados, a quem participa neles, a quem os estuda e a quem os regula. Muitas das teorias e ferramentas que usamos para analisar movimentos de mercado são pouco úteis para explicar o que se passou com a GameStop ou com a venda de memes como o Nyan Cat por centenas de milhares de dólares.
Uma hipótese é que se está a acentuar a natureza “social” do ato de investir. A Economist juntou recentemente alguma investigação académica sobre essa tendência, que deu contributos, por exemplo, para explicar o “contágio” de investimento na compra de casa durante o boom pré-crise de 2008.
Outro estudo sugere que podemos tirar prazer de um investimento também porque cria oportunidades para conversarmos sobre ele com outras pessoas e criarmos uma experiência partilhada. Estejamos a falar de Top Shot ou de Bitcoin, eles criam comunidades em que essa coleção ou investimento fazem parte da identidade de quem compra. No caso das criptomoedas isso parece ser especialmente relevante.

Com a vacinação a progredir, o regresso à normalidade será um desafio para os colecionáveis. Há jantares onde ir e viagens para fazer, e não é claro que o interesse se mantenha nos níveis atuais.
Isso pode ser especialmente verdade para aqueles que não têm dimensão física. Há um debate interessante sobre se objetos digitais obedecem às mesmas regras dos físicos e se têm a mesma capacidade de captar a nossa atenção e interesse por tanto tempo, num espaço onde estamos sempre a movimento, seja a fazer scroll down ou a saltar de página para página ou de rede para rede.
As pessoas que voltaram a explorar as suas coleções décadas depois de as terem comprado, farão algum dia isso com clips de NBA guardados num servidor? Pelo sim, pelo não, vou guardar a minha jogada do Anthony Davis.