Metade da população israelita já recebeu pelo menos uma dose de vacina para a Covid-19, 25% dos britânicos também e 12,5% dos americanos. A União Europeia? 3,6%. Portugal está muito ligeiramente acima. Quase não há diferença entre os Estados-membros, porque a principal limitação é a falta de vacinas. Hoje, parece claro que a compra conjunta de vacinas organizada pela Comissão Europeia não correu bem. Mais em baixo, J. Scott Marcus, investigador do think tank Bruegel, vai ajudar-nos a perceber porquê.
Na fase de desenvolvimento, não se pode dizer que as coisas tenham corrido mal. Começar a vacinar pessoas menos de um ano depois de ser decretada a pandemia com vacinas com taxas de eficácia acima de 90% é um dos maiores feitos científicos da História. Ainda para mais quando a tecnologia que algumas delas têm por base – RNA mensageiro – nunca tinha sido usada (e pode abrir portas para outras vias de investigação). O tempo médio de desenvolvimento de uma vacina é dez anos e a mais rápida, para a papeira, demorou quatro.
“Quando for escrita a História, [as vacinas] vão ser referidas como um dos maiores feitos da Ciência”, disse a socióloga Zeynep Tufekci no Ezra Klein show. “É o tipo de coisa em que devíamos fazer uma celebração nacional, com fogo de artifício e sinos da igreja a tocar.”
No entanto, após o entusiasmo inicial, a lentidão do processo de vacinação na Europa está a ser uma desilusão. Não faltam as mais variadas justificações. Ursula von der Leyen argumenta que a indústria não está a acompanhar o ritmo da ciência. “Estivemos demasiado concentrados no desenvolvimento da vacina e subestimámos as dificuldades relacionadas com a produção em massa”, afirmou no Parlamento Europeu.
À esquerda, clama-se pela libertação das patentes, idealmente de forma voluntária pelas empresas a preços razoáveis. Em alternativa, quebradas à força. Neste texto, assinado por um deputado e um eurodeputado do BE, pede-se que a capacidade produtiva seja “plenamente utilizada e alargada, na medida do possível”
Não é claro que essa via solucionasse o problema. Há quem argumente que, mesmo que isso fosse feito, os obstáculos imediatos à produção não desapareceriam. Por exemplo, a Sanofi chegou a acordo com a Pfizer para a ajudar na produção, mas isso apenas começará a dar resultados em agosto. A Novartis também assinou um acordo e só deverá conseguir começar a produzir daqui a alguns meses. “Não existem “dezenas de empresas preparadas” para produzir vacinas e “acabar com esta pandemia”. São os mesmos grandes players de que já ouviu falar e eles não estão sentados a ver”, escreve Derek Lowe. O investigador entrevistado pela EXAME e pela VISÃO usa o mesmo argumento (ver em baixo): transferências destas são demasiado complexas para resolver problemas de curto prazo.
O que não significa que isso não possa ser considerado na gestão de médio-longo prazo desta pandemia ou que não existam questões mais estruturais a levantar sobre a relação entre Estado e privados no desenvolvimento de vacinas. Questionado pela EXAME sobre como equilibrar o interesse público com os incentivos aos privados, Pedro Pita Barros, professor catedrático na Universidade Nova de Lisboa, nota que isso é mais fácil num momento de emergência. “A própria capacidade demonstrada de desenvolvimento de um novo produto torna-se uma vantagem reputacional para as empresas”, explica. “Além disso, tornou-se mais fácil, num momento de emergência, usar mecanismos adicionais para assegurar a remuneração dos esforços privados, como foi o caso com as compras antecipadas de vacinas por parte dos países da União Europeia. O desafio maior é como fazer esse equilíbrio fora dos momentos de emergência.”
Isso significa que o modelo pode ser ajustado em “tempos normais”? “A Covid-19 mostra que o sector privado conseguiu ter uma vacina em cerca de um ano, não é claro que o sector público tivesse conseguido ser mais rápido”, acrescenta Pita Barros. O problema nem sempre é a velocidade, mas sim em que áreas apostar. Nem todas são igualmente apetecíveis para os privados. “Fora de situações de emergência poderá não ser evidente onde é mais importante investir. A Covid-19 mostra que para situações em que seja muito evidente que existe uma necessidade que não está a ser atendida, poderão ser usados outros modelos para estimular e obter a inovação pretendida.”
Esse debate tem-se intensificado nos últimos tempos, com muitos a notar que, embora o atual modelo de desenvolvimento e fabrico dependente da busca de lucro por multinacionais farmacêuticas tenha sido capaz de dar aos países ricos vacinas eficazes que ajudaram milhões de pessoas, ele tem resultados mais desapontantes em países pobres ou para epidemias graves, mas com baixa probabilidade de ocorrência (SARS, MERS, Zika). “A incapacidade do mundo para produzir vacinas de alta qualidade para a tuberculose, malária, HIV – os três maiores assassinos infecciosos a nível global – e os grandes atrasos a terminar a vacina do Ébola simbolizam as limitações do sistema”, podia ler-se na revista do FMI de outono.
A generalidade das vacinas são financiadas pelo setor privado, muitas com apoios públicos aos quais se candidatam. Uma infografia da BBC resume bem essa relação no combate à Covid-19. Ainda assim, não aborda o papel fundamental desempenhado pela investigação científica básica, onde aí sim, o setor público é chave.
Há um ciclo de “pânico e negligência” difícil de quebrar quando não há perspectivas de lucro imediato. O desenvolvimento de uma vacina envolve custos elevados, horizontes muito longos de investimento, elevado risco de falhanço na fase de I&D e possíveis limitações de procura. As farmacêuticas podem ter mais incentivos para desenvolver, por exemplo, tratamentos para doenças crónicas. Do lado público também há problemas: os governos têm de usar recursos para prevenir contra eventos de baixa probabilidade ou que não vão ser úteis durante o seu mandato.
“Apesar do elevado valor social da vacinação contra doenças com potencial epidémico, características da economia das vacinas cria desafios para alcançar níveis adequados de I&D, produção e aproveitamento. Como o I&D e conhecimento das vacinas criam bens públicos mundiais e porque as doses administradas têm externalidade muito positivas, o mercado tende a sub-fornecê-las”, refere o mesmo artigo publicado pelo FMI. “Portanto, precisamos de intervenção pública para apoiar I&D, fabrico, financiamento e distribuição – provavelmente sob a forma de financiamento coletivo e regulação de instituições existentes.”
Erros europeus
Mas antes de chegarmos a soluções futuras mais estruturais, vale a pena concentrar-nos nos desafios mais imediatos. Na UE, a vacinação está a avançar muito devagar e a culpa tem caído sobre a Comissão Europeia. As boas intenções iniciais da compra conjunta – impedir que Portugal tenha de competir com a Alemanha por doses de vacinas – deu origem a ritmos de vacinação lentos, em comparação com EUA e Reino Unido. Maior demora da EMA na aprovação das vacinas foi um dos obstáculos (que a Comissão diz garantir maior confiança nas vacinas), mas é também apontado falta de financiamento e falta de visão, ao não apostar em vacinas mais promissoras.
Num briefing com jornalistas, um responsável da Comissão lembra que não se pode subestimar a incerteza que existia ao longo do ano passado sobre a eficácia das vacinas, em especial as que iriam utilizar pela primeira vez tecnologia mRNA. Essa incerteza levou Bruxelas a querer um portfolio mais diversificado possível e a apostar em tecnologias mais tradicionais, como a vacina da Astrazeneca e da Johnson&Johnson.
Quanto ao financiamento, normalmente comparam-se 18 mil milhões de dólares do governo norte-americano com os 2,7 mil milhões da UE. A Comissão diz que esse valor não engloba tudo o que a UE gastou no desenvolvimento de produção das vacinas, até porque muitos Estados-membros também tinham os seus programas de apoio à investigação. “É preciso ficar claro que a data de assinatura dos contratos não foi a causa de atrasos na entrega das vacinas”, defendeu a comissária para a saúde, em entrevista ao DN.
Essas são algumas das justificações a ter em conta quando ler a entrevista seguinte. J Scott Marcus, investigador do think tank Bruegel, tem uma visão bastante crítica do papel da Comissão durante este processo: não lhe dando razão no conflito com a AstraZeneca e acusando-a de falta de visão, capacidade de atuação e um conservadorismo orçamental difícil de justificar num momento de emergência. A nossa conversa teve lugar a 5 de fevereiro.
J. Scott Marcus: “Preferiram poupar dinheiro”
As intenções iniciais da Comissão Europeia eram boas e os seus primeiros passos para gerir a contratação das vacinas foram positivos. Concorda?
Sim, concordo. O que fizeram certo? Muito. Estou a trabalhar num estudo para o Parlamento Europeu sobre o impacto da Covid-19 no mercado interno. Se olharmos para o que foi feito no programa original, o facto de terem conseguido ter um processo de compra comum foi muito bom. Nos EUA – não para compra de vacinas, mas para equipamento de proteção individual -, os diferentes Estados competiram uns com os outros pelos mesmos recursos escassos. Fizeram subir os preços, criaram escassez e foi uma confusão para todos. Na União Europeia, evitámos isso tudo e os Estados-membros concordaram em não contratar vacinas fora desse acordo. Evitámos o que poderia ser uma confusão. Os problemas começam depois.
Foi mais benéfico para um país como Portugal do que para uma Alemanha.
Certo. Isto significou que os maiores Estados-membros não conseguem pagar mais do que os pequenos. O problema é o programa estar subfinanciado. Isso não teria de ser fatal. Tinha um financiamento de 2,7 mil milhões, cobrindo não apenas as vacinas. Basta fazer algumas contas para perceber que chega para fazer alguma investigação, mas não pela compra de vacinas.
Como compara com os EUA? Gastaram 18 mil milhões de dólares, certo?
Sim, foram 18 mil milhões, que deveria provavelmente ser o financiamento na UE. Segundo o contrato com a AstraZeneca, as vacinas são pagas pelos Estados-membros, as grandes compras. O financiamento comum paga mais coisas relacionadas com Investigação e Desenvolvimento e outro tipo de despesas. Isso não tinha de ser fatal, mas o problema é que, no momento em que tinham de fazer compras de grande dimensão, preferiram poupar dinheiro, em vez de fazer as compras que a Europa precisa.
Como se pode explicar que, num momento em que se perdem milhares de milhões todas as semanas, esse financiamento não tenha sido reforçado? Há alguma explicação?
Publicamente, nunca apareceu uma explicação. A Comissão está demasiado preocupada em evitar culpas para dar uma resposta séria. Essa pergunta aparece regularmente em talk shows alemães, em que se questiona responsáveis seniores, como o ministro da Saúde, Jens Spahn, sobre o que aconteceu. Eles fogem imediatamente à pergunta ou dão outra resposta. Ninguém quer falar disso, a presidente da Comissão foge às responsabilidades. Um paper interessante de Larry Summers estimava que o custo anual por pessoa da pandemia nos EUA era 20 mil dólares. Dado que a dose mais cara da vacina é 28 euros… é absurdo! Aliás, uma das respostas que recebi num texto que escrevi no blogue [do Bruegel] foi “a Comissão poupou dinheiro”. É absolutamente louco.
E, pelo menos, conseguimos vacinas mais baratas ou nem isso?
Não é totalmente claro. Nunca vi uma boa análise dos EUA. Podemos ter conseguido um melhor preço do que os EUA e do que Israel (embora eles também tenham trocado dados e resultados de testes). É possível que a UE tenha conseguido um melhor negócio, mas não interessa. São peanuts.
Quando chegamos a setembro, outubro, o que é que a Comissão devia ter feito e não fez? Aposta mais clara em vencedores na corrida às vacinas?
Essa é a grande questão. Os EUA já estavam a fazer grandes encomendas em julho. As pessoas que eram responsáveis pelas compras tinham de ter muito dinheiro nos bolsos para fazer algumas apostas – e até perder algumas apostas – para termos as vacinas que precisamos, aquelas que fossem aprovadas primeiro. Os EUA fizeram as primeiras encomendas da Pfizer em julho. Mas, pelo menos em novembro, os papers alemães tinham analisado os resultados. Por essa altura sabíamos o suficiente para que as maiores encomendas fossem feitas à Pfizer e Moderna. Por que motivo isso não foi feito? Um dos meus colegas acha que os Estados-membros bloquearam a Comissão. É possível. Mas a responsabilidade continua a ser da Comissão. Noutros temas, como imigração, quando a Comissão não gosta das posições de certos países, traz os assuntos a público. Além disso, criaram um pacote de 750 mil milhões de euros e não colocaram lá financiamento para isto. Foi um auto-golo.
Pode explicar um pouco melhor o que a Comissão fez? Foram muitas pequenas apostas em muitas vacinas?
Na fase inicial, sim. E isso não era errado nessa fase, porque aumentou a probabilidade de termos múltiplos projetos bem sucedidos. Aliás, poucas vacinas falharam. Só me lembro da Merck. E tivemos atrasos com a Sanofi. Basicamente, muitas parecem estar a dar origem a vacinas funcionais. Em breve, chegará a da Johnson & Johnson. As apostas iniciais não foram um desperdício. E, no grande esquema das coisas, são uns trocos. No caso da AstraZeneca, o investimento foi 336 milhões de euros. É um valor que não me importaria de ter na conta bancária, mas o paper do Larry Summers fala de um custo total de 16 biliões nos EUA. Estamos a perder tempo a discutir o quê? O facto de terem apostado em muitas vacinas que podem chegar mais tarde não me preocuparia. Aliás, a Pfizer, por exemplo, não queria um investimento do tipo warp speed. Não precisava dele, nem das complicações que vêm com ele. Embora possamos dizer que a Comissão não apostou nos cavalos certos, acho um argumento irrelevante. Apostar em muitas vacinas foi a opção correta. Onde falharam criticamente foi no momento de viragem… O ponto a partir do qual ficou claro que certas vacinas seriam aprovadas e que teríamos de comprar muitas daquelas que poderíamos usar no curto prazo para vacinar a nossa população mais vulnerável. E, se acabarmos com vacinas a mais, podemos sempre doá-las a países mais pobres.
A Pfizer vai começar a produzir em fábricas da Sanofi. Este tipo de política industrial também podia ter sido iniciada mais cedo?
Mais uma vez, culpo a Comissão por ter feito as encomendas tarde. As empresas teriam gerido de forma diferente se soubessem quantas doses iriam produzir. As encomendas tardias significaram que a produção não começou tão cedo como podia. Sem as encomendas, é de esperar atrasos.
Em específico sobre a polémica com a AstraZeneca, a situação ainda é lamacenta…
Não é lamacenta. Eu li o contrato. A Comissão está a fazer declarações enganadoras e, nalguns casos, demonstrativamente falsas.
Procuraram um bode expiatório?
Acho que estão à procura de um bode expiatório em vez de tentarem resolver o problema. O contrato tem três tipos de encomendas. Uma encomenda inicial e depois de encomendas opcionais e adicionais. A encomenda inicial diz que a AstraZeneca fará o “o seu melhor esforço razoável” para produzir e entregar as doses. Na imprensa lê-se “será que a Comissão cometeu aqui um erro?” Não, isso foi o mais correto. Como todas são novas vacinas, há um risco de cadeias de fornecimento até pela natureza da pandemia. Acho que nenhuma empresa sã conseguiria dar um compromisso firme de que entregaria uma vacina que nunca foi produzida antes. A presidente da Comissão diz que estes esforços razoáveis eram apenas para o I&D e não para a produção. Ela não leu o contrato ou leu e não quer dizer o que está lá escrito. O contrato não suporta aquilo que ela disse. Esse é o primeiro problema. Depois há quem diga que, como a empresa disse que nada a impedia de assinar o contrato, não pode ter conflitos de entregas. Esse risco de conflito de fornecimento estava obviamente lá. A Comissão não pode dizer que não sabia que a AstraZeneca tinha um contrato com o Reino Unido. A possibilidade de a Comissão ganhar em tribunal é aproximadamente zero, o que eles devem saber.
A AstraZeneca acabou por se comprometer com algumas vacinas extra.
Quanto disso foi devido à ameaça e quanto disso eles fariam de qualquer forma, não sou capaz de dizer. Mas, noutro nível, diria que aquilo que a Comissão fez com a AstraZeneca é muito prejudicial para as políticas públicas. Por exemplo, sabemos que há um acordo entre a BioNTech [e Pfizer] com a Sanofi para converter as suas unidades. Se eu fosse o líder da Sanofi, estaria a considerar nos meus cálculos o risco de acusações falsas da Comissão e danos à minha reputação para perceber se é um bom negócio. Hoje, estaria mais relutante em assinar um contrato do que há duas ou três semanas. Dificulta a cooperação.
E depois ainda tivemos o caso da Irlanda do Norte. Há um efeito cumulativo na imagem pública da Comissão.
Por um lado, era claramente prejudicial à nossa relação com Irlanda e Reino Unido. Também é muito mau na nossa relação com o resto do mundo, por exemplo com os países mais pobres. Ao mesmo tempo, estão a tentar obter financiamento para o Covax para ajudar os países em desenvolvimento a vacinar a sua população mais vulnerável. Para a nossa imagem e posicionamento no mundo, numa altura em que a Europa tenta ser a campeã dos mercados livres e da ordem mundial, é muito prejudicial. E, já agora, há um bom artigo que diz que o risco de retaliação é elevado.
Mesmo se assumirmos que a Comissão tem razão no diferendo com a AstraZeneca, isso faria uma grande diferença na lentidão de vacinação na Europa?
A AstraZeneca é a solução errada para o problema imediato. O problema imediato é ter a população de risco vacinada nos próximos 3 a 6 meses. AstraZeneca tem uma história de eficácia complicada. Nos ensaios clínicos, um grupo de indivíduos foi vacinado com meia dose na primeira toma e nesses houve uma eficácia de 90%. Para os outros, [que receberam duas doses completas], foi 62%. Eles fizeram uma média para os 70%. De qualquer forma, claramente mais baixa do que as outras [as vacinas da Pfizer e da Moderna têm eficácias de 95% e 94%]. Eu estou num grupo de risco. Vou querer ser vacinado por algo com 60% de eficácia, quando posso esperar por 90%? Não. Portanto, a AstraZeneca é uma solução de segundo nível para o problema mais imediato. É mais indicada para populações de baixo risco.
Cada país debate se o seu governo está a fazer um bom trabalho na vacinação. Vê diferenças relevantes entre os países?
Diria que a limitação conjunta é o número de doses disponíveis, mas a execução do programa irá fazer diferença. Um problema na comparação entre a UE e o Reino Unido é que a decisão do segundo de esperar mais tempo para dar a 2ª dose, permitindo dar mais primeiras doses… não sou médico, mas consideraria dúbia. Os testes não foram feitos dessa forma. O líder da operação Warp Speed, nos EUA, disse que normalmente isso não faz diferença, mas também que, se queremos ter o maior número de pessoas vacinadas com sucesso, não devemos mexer muito [com as datas]. Essa é uma diferença grande. Para além disso, os números iniciais pareciam mostrar que os franceses estavam muito atrás dos alemães, mas agora os países já estão todos a convergir para o mesmo ritmo. Na Alemanha, há agora notícias de atrasos para consultas, sistemas computadorizados a precisar de melhorias, linhas telefónicas sobrecarregadas… Estamos a tentar vacinar primeiro os mais velhos, que são quem tem dificuldades em marcar estas coisas online. Têm de pedir ajuda aos filhos. Há coisas a melhorar, não são irrelevantes, mas diria que são normais num programa como este que está a arrancar.
Mencionou antes a possibilidade de ter faltado à Comissão o apoio dos Estados-membros para mudar o plano. A responsabilidade cai sobre quem? A Comissão e a presidente?
Teria de dizer que sim. É possível que os Estados-membros tenham sido uma barreira, mas o trabalho é da Comissão. É ela que gere o Instrumento de Apoio de Emergência. Se havia Estados a bloquear os esforços, a Comissão era responsável por trazê-lo a público. O mais simpático que podemos dizer é que foi um pecado por omissão. De qualquer forma, o cão não ladrou.
Muitas vezes culpa-se a burocracia de Bruxelas e a lentidão dos processos. Compra esse argumento?
Imagino que ele tenha algum peso, mas numa coisa tão importante, a Comissão tinha de ter adotado uma postura de tempo de guerra. É uma emergência de saúde pública. O facto de não terem aumentado a visibilidade para o tema… o mais otimista que podemos dizer é que alguém não fez o seu trabalho.
Agora que aqui chegámos, é complicado encontrar uma solução mágica para resolver o problema?
Não é impossível. Já foram feitas algumas coisas. A 8 de janeiro, a Comissão anunciou que iria comprar mais 300 milhões de doses à Pfizer. Isso resolveria grande parte do problema, a questão é quando serão entregues [a 17 de fevereiro foi confirmada a compra de 200 milhões + 100, 75 milhões das quais chegam no segundo trimestre]. Já agora, devo dizer que a Pfizer e a Moderna ofereceram mais doses à Comissão do que aquelas que a Comissão quis contratar. A Moderna disse que ofereceu 300 milhões e que a Comissão só quis 80 milhões (com opção para outros 80 milhões), a Pfizer fez declarações semelhantes. A AstraZeneca diz que fez o contrato com o Reino Unido três semanas antes. As coisas foram feitas com menos urgência do que se podia.
E mais?
A outra questão é a transferência de tecnologia. Há um debate na Alemanha: devem as farmacêuticas serem obrigadas a licenciar a tecnologia. Acho que é um debate enganador. Nunca trabalhei na indústria farmacêutica, mas trabalhei na indústria tecnológica nos EUA. Não estamos a falar de produzir um produto que mudou pouco nas últimas décadas. São vacinas totalmente novas. E, no caso das vacinas mRNA, nunca foram produzidas para humanos em quantidade. Portanto, não é apenas assinar um contrato. É preciso transferência de tecnologia. Fiz isso em telecoms e tecnologias de informação e comunicação. Em todos os casos, é sempre preciso atenção da gestão e profissionais treinados dos dois lados que invistam tempo a aprender como as coisas se fazem na prática, todos os detalhes que não estão escritos e tudo o que não deve ser feito. Isso tem implicações. Não é prático esperar que 20 empresas comecem ao mesmo tempo a fabricar a mesma vacina. É duvidoso que a empresa que está a licenciar tenha profissionais suficientes para gerir essa transferência. Em segundo lugar, o número de empresas capazes de fazer isto é limitado. A maioria das vacinas – especialmente as mRNA – exigem elevados níveis de especialização dos profissionais e da infraestrutura. O líder da BioNTech usou argumentos semelhantes: encontrar alguém capaz de fabricar estas vacinas não é trivial. Tendo a concordar. Quando vemos um pato na água e esquecemo-nos que está a acontecer muita coisa abaixo da linha da água com as patas. É preciso muito para que essas transferências sejam bem sucedidas. Se virmos que há obstáculos, há um papel para as políticas públicas. Sou mais intervencionista do que a maioria dos americanos. Normalmente, gostaria que a indústria tentasse primeiro. Mais uma vez, o facto de as compras terem sido feitas tarde obriga-nos a pagar um preço elevado.
Que lições podemos tirar deste caso? O que pode a Comissão aprender? Não ter medo de gastar?
Essa é a grande lição. A primeira coisa é: o Instrumento de Apoio de Emergência foi o mecanismo certo, mas precisava de mais financiamento imediato. É a lição mais simples. Em segundo lugar, os responsáveis têm de conseguir fazer uma viragem. Acho que quando o programa foi criado não pensaram nisso. As pessoas que o gerem têm de ter a latitude e a liberdade para fazer julgamentos e apostas razoáveis. Não apostas estúpidas, mas algumas que não terão resultados. Perder algumas será melhor do que uma demora desnecessária numa pandemia. Não queremos deitar dinheiro fora, mas poupar alguns euros não pode ser a prioridade.
A Hungria decidiu comprar a vacina russa. Antecipa consequências políticas negativas destas falhas? Reforço do euroceticismo? No Reino Unido nunca estiveram tão contentes por terem saído.
Sim, o Reino Unido está um bocado convencido. Acho que o caso alemão é mais preocupante do que o húngaro. Os resultados publicados na Lancet sobre a vacina russa mostram que ela parece ser boa em termos de segurança e fiabilidade. Falam de uma eficácia de 92%. Assumindo que os resultados são confirmados, é provável que a EMA a autorize. Mas se a Comissão não conseguir doses suficientes, será que os países vão comprar fora do acordo? Tem havido notícias contraditórias sobre a compra de 30 milhões de doses pela Alemanha. Como residente alemão, não posso dizer que esteja descontente com isso. Mas vai totalmente contra a lógica dos acordos. Infelizmente, a Comissão assumiu uma responsabilidade e não executou bem. É difícil culpar os Estados-membros por tentarem proteger a sua população. Se as coisas não forem resolvidas, vamos provavelmente ver mais casos. São necessárias conversas pró-ativas e não confrontacionais com as empresas, para que elas promovam o máximo de produção e eliminem obstáculos. Mas o primeiro passo tem de ser reconhecer que se cometeram erros e que tudo se fará para os corrigir. Falta fazer isso, o que bloqueia a discussão.
Para terminar, há alguma novidade positiva à qual nos possamos agarrar?
Acho que as empresas estão a fazer tudo para aumentar a produção, agora que têm encomendas firmes. A vacina da Johnson & Johnson parece estar para breve e é só uma dose, embora tenha uma eficácia de 66%, portanto também é mais indicada para população que não seja de risco. Os russos também parecem estar a estudar se podem dar apenas uma dose. Outro desenvolvimento positivo é que a Pfizer achava que cada frasco dava para cinco doses, mas tem sido possível tirar seis doses. É um ganho de 20%. E quase todos os dias há anúncios de coordenação, como entre a Pfizer e a Sanofi, cuja vacina está atrasada. Há muito a ser feito.
Nota: artigo atualizado, com referência no início à percentagem da população vacinada com pelo menos uma dose e não à totalidade de doses administradas. Dados compilados pelo Our World in Data e recolhidos dia 20 de fevereiro.