São demasiado complexas, sujeitas a erros e pouco adequadas para gerir crises profundas. O debate (antigo) sobre os méritos das regras orçamentais europeias foi reavivado nos últimos dias, quando Niels Thygesen, diretor do European Fiscal Board (EFB), veio dizer que a meta de 60% do PIB para a dívida pública é “irrealista”. Mário Centeno decidiu agitar ainda mais o debate e, de saída da liderança do Eurogrupo, pediu uma reflexão sobre possíveis alterações às normas que regem as contas públicas dos Estados-membros. Afinal, o que tem motivado as críticas às regras? Será a pandemia uma oportunidade de reforma?
Como noutras vertentes do debate económico – do papel dos bancos centrais à organização do mercado de trabalho – a Covid-19 está a forçar um fast-forward da discussão sobre as regras orçamentais europeias. Em março, os ministro das Finanças do euro concordaram com a suspensão dessas normas, devido aos efeitos da pandemia. O objetivo era incentivar os governos a gastarem mais para protegerem as suas economias de uma crise histórica, sem terem de se preocupar com o cumprimento de metas. No entanto, desde o primeiro minuto em que essas suspensão foi anunciada, emergiu uma discussão: quando irão regressar as regras? Será repentino? E serão os princípios iguais ao que eram antes?
A incapacidade de responder de forma assertiva a estas perguntas tem sido utilizada como justificação para países como Portugal hesitarem no momento de colocar todo o carvão na caldeira. O medo que, tal como na crise anterior, o País seja apanhado na curva por uma exigência de disciplina orçamental. Mário Centeno, até há dias responsável por desenhar esse equilíbrio, considera decisivo que haja um período de transição.
“As regras orçamentais incluem, a meu ver bem, uma cláusula de derrogação de âmbito geral justamente para este tipo de circunstâncias. Esta cláusula permite desvios face ao esforço de ajustamento normalmente exigido. Neste caso concreto, dada a elevada incerteza, a cláusula não pode funcionar como um interruptor, em que se desliga e liga”, responde à VISÃO, ainda enquanto presidente do Eurogrupo.
O receio de muitos é que, perante a pressão dos mercados ou uma mudança do humor político em Bruxelas ou nas capitais mais influentes na Europa, os países europeus acabem perante um de dois caminhos: um regresso apressado e duro à austeridade com famílias e empresas ainda a lamberem as feridas da pandemia; ou a violação aberta das regras por alguns Estados.
É precisamente esse o receio de Zsolt Darvas, investigador do ‘think tank’ Bruegel, que tem escrito amplamente sobre o tema, sublinhando as limitações do quadro atual. “Assim que a crise de saúde pública começar a desaparecer e a atividade económica regresse, as regras orçamentais serão reativadas. Serão abertos procedimentos por défices excessivos para a maioria dos países da UE. Mas, tendo em conta a enorme incerteza em torno dos indicadores usados pelas regras orçamentais da UE, o atual quadro orçamental será especialmente difícil de implementar e defender”, explica à VISÃO. “Se tivermos uma segunda recessão de menor dimensão e a cláusula de escape não for novamente ativada, a atual arquitetura não permitirá novos estímulos, o que prolongará a recessão. Definir o ritmo apropriado para consolidação orçamental será um enorme desafio. A UE deverá evitar o erro que cometeu na crise do euro há dez anos, quando uma consolidação orçamental demasiado rápida prolongou a recessão.”
Centeno defende que, quando reintroduzirmos as regras, devemos fazê-lo “de forma faseada e levando em conta a temporalidade desta crise”. E argumenta que devemos tratar o endividamento resultante da crise pandémica de uma forma diferente do resto da dívida pública. “No momento de definir o esforço orçamental adequado no regresso a um caminho de sustentabilidade devemos tratar este desvio resultante da crise de forma diferente, e tendo em conta o que falta para que a economia recupere o nível de antes da crise, ou seja quando a incerteza se reduzir.”
Considerando que muitas análises avisam que os efeitos económicos da Covid-19 podem demorar anos a desaparecer, significa isso que as regras ficarão suspensas até lá? Quanto tempo? O ex-ministro das Finanças não quis ser específico – a incerteza é enorme -, mas admitiu que, para a generalidade dos Estados-membros, “normalidade” será uma palavra que apenas começarão a usar daqui a mais de dois anos.
“Há riscos positivos, como o fundo de recuperação que seguramente terá um grande impacto face às previsões que conhecemos, mas também o risco negativo de uma segunda vaga deste vírus do qual continuamos a saber pouco”, lembra. “Com os dados de que dispomos neste momento, é possível que alguns países, como a Alemanha, voltem já no final de 2021 aos níveis de atividade pré-Covid, outros – talvez a maioria dos estados europeus – tardarão mais um ano. Isto para dizer que primeiro temos de nos assegurar que esta retoma é sólida e só depois podemos retomar o caminho da consolidação orçamental.”
Novas regras para a pandemia
Tal como já tinha dito ao “Financial Times”, Centeno assume que, para além de evitar um regresso repentino das normas orçamentais, esta pausa pode ser uma boa oportunidade para repensá-las. “Parece-me adequado que utilizemos este período para refletir coletivamente sobre o caminho a seguir na adequação dessas regras ao novo enquadramento”, diz à VISÃO.
O ex-governante não foi o primeiro a sugerir essa possibilidade. Niels Thygesen lidera o European Fiscal Board (EFB), o organismo independente responsável por aconselhar a Comissão Europeia sobre matérias relacionadas com política orçamental. Numa videoconferência com os jornalistas no início deste mês fez uma provocação que terá arrepiado muitos políticos do Norte da Europa: não é realista pensar que poderemos voltar a aplicar o limite de 60% do PIB. “Não serve de nada termos um objectivo irrealista. É crítico que olhemos para isso”, avisou Thygesen.
Para se perceber o que ele quer dizer, basta olharmos para as previsões de dívida pública para este ano. A Comissão Europeia espera o endividamento dos países da moeda única ascenda coletivamente a 103% do PIB. Em Portugal, ela deverá tocar nos 132%, muito perto do máximo histórico atingido durante a última crise. A Grécia chegará quase aos 200% e Itália perto dos 160%. Bélgica, Espanha e França também estarão acima dos 100%. A orçamentalmente conservadora Alemanha não chegará aos três dígitos, mas também verá a dívida disparar 16 pontos percentuais, para os 76% do PIB.
Em 2020, apenas seis países do euro irão respeitar o limite de 60% do PIB, definido pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento. Em 2021 serão apenas sete e a a dívida pública da zona euro continuará muito perto dos 100%.
Sabendo o que irá acontecer às contas de todos os países, Thygesen considera que “irá exigir demasiado” forçar os rácios de endividamento a descer ao ritmo que indicam as regras. Pode ser uma versão da tarefa de Sísifo: anos e anos de sacrifício a empurrar uma pedra até ao topo da montanha, até que uma nova crise a atira de novo para o sopé.
Já este ano, a Comissão Europeia deu início a uma revisão do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que deverá apenas ser conhecida no início de 2021 e servir para fazer mais perguntas do que apresentar soluções prontas a serem rejeitadas a Norte e/ou Sul. “A decisão que iremos tomar acerca da cláusula de escape e a revisão destas regras irão moldar a nossa política económica por muitos anos”, antecipou o comissário Paolo Gentiloni.
O EFB de Thygesen está a trabalhar numa proposta de revisão das regras que deverá atribuir a cada Estado-membro uma meta específica, dependente das circunstâncias da sua economia. Deveremos conhecê-la em outubro. No seu relatório anterior, o EFB tinha sugerido alterações significativas às regras, que as afastassem de uma estratégia de “tamanho único” e permitindo ainda mais flexibilidade para investimentos em infraestruturas e ou relacionados com alterações climáticas.
Até Thomas Wieser, que durante seis anos liderou o grupo de trabalho do Eurogrupo e era visto como um dos homens mais influentes (e duros) no espaço comunitário, já admitiu que não é razoável pensar num regresso imediato ao tecto de 3%. “Qualquer solução agregada e abrangente será um falhanço catastrófico”, disse ao Euroactiv o austríaco, que foi durante anos um dos bastiões mais conservadores no que diz respeito à política orçamental comunitária. “Precisaremos de abordagens à política orçamental diferenciadas nacional e setorialmente. Acho que ninguém é estúpido o suficiente para propor ‘vamos voltar a estar abaixo de 3% no ano X’. Isso seria provavelmente o maior erro.”
Para que servem as regras?
Este debate não nasceu com a pandemia. Há muito que observadores, analistas e economistas consideram que o actual sistema tem fragilidades. Durante os “anos bons”, através de uma série de excepções e alçapões, elas não impediram a acumulação de debilidades orçamentais entre vários países e, com a crise da dívida de 2010, elas foram usadas como justificação para iniciar um ciclo de austeridade que hoje é visto de forma bastante crítica.
Comecemos pela origem. O que são regras orçamentais e para que é que elas servem? São limites auto-impostos pelos governos sob a forma de indicadores de contas públicas. Podem ser aplicadas sobre a despesa, a receita, o saldo entre as duas (excedente/défice), o endividamento ou todas elas. O seu objetivo é garantir a sustentabilidade de longo prazo das contas públicas e ajudar ao equilíbrio da economia no curto prazo.
Elas não estiveram connosco para sempre e tornaram-se populares apenas no final do século passado. Segundo o Bruegel, entre 1990 e 2015, o número de países que obedecem a essas limitações orçamentais saltou de 5 para 96.
A lógica para por detrás da sua existência está ligada à ideia geralmente aceite de que os governos têm tendência para deixar engordar os défices. Entre a busca de popularidade ou vitórias eleitorais, preferem medidas com benefícios imediatos, podendo sacrificar o longo prazo pelo caminho.
Na Zona Euro, existem mais argumentos para elas existirem. Como os países cederam a sua soberania monetária ao BCE, a política orçamental tem ainda mais relevância como instrumento contra-cíclico. Numa união monetária, as decisões de um Estado-membro têm impacto nos restantes e a política orçamental pode criar ou corrigir divergências de preços ou remunerações.
Ela ganha maior importância numa união monetária imperfeita, como esta, onde não existem transferências entre Estados. Os tratados europeus proíbem o resgate directo de países. Não só o BCE não pode comprar diretamente dívida pública, como um país não pode ser responsável por pagar a dívida de outro.
Por esta altura, será importante referir que embora se assuma este viés a favor dos défices, ele pode nem sempre se verificar. Veja-se a posição da Alemanha nos últimos anos, que acumulou excedentes orçamentais cada vez maiores (num mundo pré-pandemia), sendo mais recentemente criticada por estar a comprometer o dinamismo da economia europeia. No debate europeu, os défices são normalmente demonizados e os excedentes vistos com benevolência. Se forem grandes e persistentes, ambos podem ter efeitos distorcivos.
Complexas, pouco precisas e pró-cíclicas
As regras orçamentais foram evoluindo ao longo dos anos. Neste momento, existem quatro grandes números que os ministros das Finanças têm de tatuar no braço: o défice orçamental tem de estar abaixo de 3% do PIB; a dívida pública abaixo de 60% (se for mais elevada, deve descer todos os anos pelo menos 1/20 da diferença entre o valor atual e os 60%); o défice estrutural obedece a um limite definido país a país; a despesa “real” do Estado não pode crescer mais rápido do que a previsão de crescimento potencial da economia
São-lhes feitas três críticas frequentes: excessiva complexidade, dependência de indicadores difíceis de estimar (e sujeitos a muitas revisões) e a sua natureza pró-cíclica.
Mário Centeno fala-nos sobre o argumento de excessiva complexidade:
“A introdução de regras orçamentais teve um papel fundamental na criação da moeda única. E, regra geral, têm contribuído para uma gestão macroeconómica mais responsável. Sem este processo político europeu de convergência para saldos orçamentais equilibrados através de regras comuns aprovadas democraticamente pelos estados, ficaríamos à mercê do escrutínio – muitas vezes irracional – dos mercados. Mas estas regras têm-se tornado cada vez mais complexas, passámos de 90 páginas para mais de 600 páginas de regras, criando fricções desnecessárias por via de uma automaticidade cega em que se pretende ter tudo previsto nas regras.”
Sempre que as regras se revelaram insuficientes, a solução foi adicionar uma camada de complexidade. Um processo que resultou em normas cada vez menos transparentes e mais difíceis para os responsáveis políticos assimilarem, quanto mais para a população as compreender (experimente perguntar à pessoa sentada ao seu lado o que é o “saldo estrutural”).
Num artigo que escreveu para o Instituto Ifo no ano passado, Charles Wyplosz, professor no The Graduate Institute, em Genebra, sublinhava que “a disciplina orçamental é uma condição necessária para o funcionamento tranquilo do euro”, mas que tinha sido um “triste azar da História” que a solução encontrada tenha sido o Pacto de Estabilidade e Crescimento. “Quando as limitações do pacto se começaram a tornar evidentes, a resposta tem sido tentar “melhorá-lo”, deixando-o por vezes mais flexível, outras vezes eliminando lacunas ou procurando aumentar a responsabilização nacional, mas tornando-o sempre mais complexo.”
No que diz respeito à dificuldade de estimar certos indicadores, as críticas são normalmente dirigidas ao saldo estrutural. Um indicador que parte do saldo global, mas que lhe retira a componente cíclica (crescimento/quebra da economia) e ignora receitas e despesas extraordinárias. A intenção é boa: ter um indicador que não seja afetado pela conjuntura, seja ela boa ou má. Mas o resultado não tem sido brilhante. O problema principal é que ele não é observável. Exige que seja estimado o PIB potencial. Isto é, a atividade económica se os recursos disponíveis estiverem a ser utilizados em “plena capacidade”. A sua natureza complexa tem-se traduzido em revisões significativas.
Todas as métricas estão sujeitas a correções periódicas, mas o saldo estrutural tem sido especialmente vulnerável. Num relatório que preparou para o Bruegel em 2018, Darvas mostra que as revisões chegam a ser maiores do que o ajustamento exigido pelas regras. “O saldo estrutural é um conceito teórico sensato, mas cujo cálculo está sujeito a enorme incerteza”, caracteriza Darvas. “A revisão anual da variação do indicador face à sua estimativa inicial ficou, em média, entre 0,5% e 1% do PIB no período 2010-19, o que é muito alto tendo em conta que o típico ajustamento exigido aos países é de 0,5 pontos do PIB.” Mais preocupante: essas revisões não têm diminuído. Quando muito, os dados sugerem que aumentaram.
Desengane-se se acha que isto é um mero detalhe técnico de que só os geeks querem saber. Como as correções podem ser maiores do que o ajustamento exigido, isto significa que a avaliação da solidez das contas pode variar facilmente entre “está a cumprir” e “está a violar” as regras, com todas as consequências que isso tem para a reputação do país.
“Um problema mais profundo emerge na presença de choques persistentes (como a Grande Recessão), que podem levar a estimativas excessivamente pessimistas do PIB potencial, porque o PIB potencial é afetado pela condição cíclica”, escreve Darvas. Isso pode levar-nos a um ciclo vicioso, que se verificou na crise anterior e, possivelmente na próxima: “crescimento baixo do PIB era visto como estrutural, portanto as estimativas de PIB potencial foram revistas e levaram os responsáveis políticos a acreditar que era necessário um maior ajustamento da política orçamental do que na verdade era preciso”. É fácil perceber como isso se torna numa profecia auto-realizável.
“Dada esta incerteza na quantificação de saldos estruturais, não acreditamos que regras orçamentais possam ser implementadas usando simplesmente fórmulas matemáticas sem análise económica adequada”, diz o mesmo Darvas. “No mínimo, recomendamos que a Comissão Europeia publique intervalos de confiança no hiato do produto [diferença entre PIB e PIB potencial], crescimento potencial e estimativas de défices estrutural.”
A terceira crítica é provavelmente a mais polémica: estas regras mostraram-se pouco adequadas para gerir ciclos económicos. O foco da crítica dependerá dos óculos políticos utilizados, mas não é controverso dizer que elas não impediriam o crescimento do endividamento dos Estado durante o pré-crise e, mais tarde, foram usadas para justificar a política pró-cíclica de combate à crise, responsável por ter atrasado a saída da recessão de alguns países e a retoma da economia europeia. Hoje, é relativamente consensual que essa estratégia de austeridade foi um erro.
Isso significa que as regras não cumpriram um dos objetivos para existirem: a capacidade de estabilização. Nem nos bons tempos, nem nos maus. O facto de elas terem de ser suspensas para lidar com a atual crise pandémica não será outro indício de que elas não são adequadas para lidar com momentos difíceis?
Além disso, a sua natureza pró-cíclica também significou que o BCE ficou sobrecarregado, responsável por carregar sozinho “o piano” da recuperação e estabilização da economia europeia. Isso é problemático, uma vez que é reconhecido que a política monetária pode estar perto dos seus limites, o que está a obrigar os bancos centrais a entrarem em terrenos desconhecidos. Nos últimos anos, têm-se repetido os pedidos a partir de Frankfurt – antes por Mario Draghi, agora por Christine Lagarde – para que os governos usem a política orçamental para puxar pela economia. Leia-se, gastem mais.
Um possível contra-argumento a estas críticas é apontar para o factor humano. Serão as regras que são desadequadas ou é a forma como os responsáveis políticos nacionais e comunitários as aplicam que tem sido o problema? Ao longo dos anos tem sido sempre possível encontrar uma nova “flexibilidade” para fugir a sanções, que nunca foram aplicadas.
Esse é, aliás, o desafio que a Comissão terá de começar a pensar. Se decidir não mexer nas regras e reativá-las no curto prazo, é possível que alguns Estados especialmente afetados pela Covid-19 não sejam capazes ou não as queiram cumprir. Se estivermos a falar de um país da dimensão de Itália, onde existe um euroceticismo crescente, irá a Comissão Europeia arriscar sancioná-la? E, se não o fizer, como poderá exigir o mesmo a outros países? Por isso é que o timing do regresso das regras e os moldes em que ele é feito são tão importantes. Um passo em falso e elas podem provocar uma fragmentação ou perder definitivamente os dentes.
O que é uma dívida “elevada”?
Enquanto decorre este debate europeu sobre a adequação das regras, a academia e instituições internacionais têm refletido também sobre os próprios limites. Porquê 60% do PIB? É um bom limite? A investigação mais recente tem sugerido que esse limite pode ser desadequado à realidade económica atual, em que o crescimento económico e as taxas de juro parecem estar estruturalmente mais baixas. Mesmo sem entrar no complexo debate sobre MMT (em breve escreveremos sobre isso), vai havendo cada vez mais reflexão sobre a necessidade de assumir que aquilo que era “excesso de dívida” nos anos 90, pode já não o ser hoje.
Em abril de 2017, o FMI incluiu no seu Fiscal Monitor uma caixa com o título “Podem os países suportar níveis mais elevados de dívida?”. Nele, o Fundo admitia a possibilidade de termos entrado numa era de juros baixos que pode durar décadas. “Parece-nos provável que pelo menos algumas das descidas sejam, de facto, muito persistentes, se não mesmo permanentes. Se o diferencial entre crescimento e taxas de juro tiver caído 1 ponto percentual de forma estrutural, isso significa que os limites de endividamento público podem aumentar 10-40 pontos percentuais. Mais recentemente, o FMI voltou à carga. Um estudo assinado por Philip Barrett procura responder a uma pergunta semelhante: a descida das taxas de juro desde a crise financeira significa que os Governos se podem endividar mais do que se pensava? “A resposta curta a essa pergunta é ‘sim, mas provavelmente apenas por alguns pontos percentuais’”, escreve o autor.
Olivier Blanchard foi o último a juntar a voz ao debate. Em 2019 publicava “Dívida pública e taxas de juro baixas”, que trazia uma conclusão provocadora: a obsessão mundial com os níveis de dívida pública é manifestamente exagerada.
“Mostro que a situação atual nos EUA, onde se espera que taxas de juro seguras permaneçam abaixo dos níveis de crescimento por muito tempo, é mais a norma histórica do que a exceção. Se o futuro for como o passado, isso implica que a renovação de dívida, emissão sem futuros aumentos de impostos, possa ser possível. De forma abrupta, a dívida pública pode não ter custos orçamentais”, escrevia o antigo economista-chefe do FMI.
Recentemente, ele perguntava aos seus seguidores no Twitter qual deveria ser a nova referência.
Portanto, o debate não se esgota no adiamento de aplicação de regras e nas suas fragilidades, questionando até se estamos a utilizar o limite de velocidade certo.
Em março, no blogue do Conselho das Finanças Públicas, Carlos Marinheiro também reflectia sobre a desadequação destas metas num ambiente de crescimento e juros baixos, notando que o limite de 3% para o défice deixou de ser compatível com uma um limite de 60% para a dívida pública. Ou será necessário ter défices ainda mais baixos (2%?) ou teremos provavelmente de aceitar dívidas mais altas, na casa dos 90%.
Que alternativas existem?
Os críticos das regras atuais têm normalmente uma prioridade na sugestão de alternativas: maior simplicidade. Quanto menos confusa for a regra, mais fácil é para políticos e eleitores a assimilarem. Mas vários académicos acham que isso não é possível com as métricas que estão no terreno. Recomendam que elas sejam atiradas para o lixo e substituídas por outras. Provavelmente a mais discutida é uma simples regra de despesa pública.
Como funcionaria? A proposta de Darvas (a sugestão do EFB é semelhante) é que a despesa nominal não cresça a um ritmo mais rápido do que a estimativa de rendimento nominal. Se um país tiver uma dívida excessiva, esse será o seu tecto. Segundo as análises do economista, essa regra permitiria trazer prudência orçamental sem ameaçar a estabilidade da economia.
“A minha regra orçamental preferida inclui um objetivo a 5 ou 7 anos de redução do rácio da dívida, calibrado pelas circunstâncias económicas e aprovado pelos conselhos de finanças públicas nacionais e europeias e aprovado pelo Conselho; e tectos de vários anos para a despesa pública, excluindo gastos com subsídio de desemprego, juros da dívida e um tratamento especial para o investimento público”, explica Darvas, avisando que seria necessário fortalecer as instituições independentes responsáveis por monitorizar as contas públicas, incluindo uma estrutura semelhante ao Conselho do BCE, mas dedicado à vertente orçamental.
Charles Wyplosz tem outra ideia, provavelmente ainda mais difícil de avançar: eliminar regras puramente matemáticas e confiar numa análise mais “a olho” e numa perspetiva de longo prazo. “A disciplina orçamental não tem a ver com análise ano-a-ano de saldos orçamentais ou com metas numéricas que não têm bases sólidas”, escreve na já citada análise para o Ifo. Um pouco como já é feito para a inflação nos bancos centrais, sugere que seja definido um objetivo de longo prazo para o endividamento. “O caminho para o rácio da dívida não está envolto em metas numéricas estabelecidas a priori, mas sim num teste “a olho” que verificará se o atual e futuro saldo orçamental representa uma evolução prudente da dívida”, afirma, avisando que, para que isto fosse possível, seria necessário um juízo “apolítico” e “profissional”, confiando essa análise aos conselhos de finanças públicas independentes.
Embora admita que pode ser necessária alguma adaptação num mundo pós-Covid-19, Mário Centeno não parece achar necessário substituir as regras atuais, citando os resultados dos últimos anos como prova de que elas podem funcionar. “Antes da Covid, eliminámos todos os procedimentos por défices excessivos e quase todos os países atingiram os objetivos de médio prazo. Um excelente indicador de estabilidade e uma boa demonstração de como as regras cumpriram o seu propósito”, frisa à VISÃO.
Essa é também a resposta que dá quando lhe é perguntado o que fez durante este mandato para tornar as regras orçamentais mais adequadas ao seu objetivo: o facto de a generalidade dos países se terem aproximado do equilíbrio orçamental durante o seu mandato, assim como o início de uma revisão destes mecanismos, decidido no ano passado.
Escusado será dizer que qualquer tentativa de mudança representaria uma longa e dura batalha negocial. Os países do Norte da Europa pretendem um regresso o mais rápido possível das regras e se já desconfiam de como os países do Sul vão usar dinheiro europeu para escapar a uma crise pandémica, imagine-se o debate que geraria tornar a fiscalização orçamental mais flexível ou possibilitando uma maior dose contra-cíclica. Ainda assim, se ficar claro que muitos países – especialmente de grande dimensão – serão incapazes de cumprir as regras, haverá capacidade ou vontade para as ativar?
Centeno parece antecipar a dureza desse conflito diplomático. “Estas revisões devem ser feitas sem afetar o grau de entendimento mútuo entre os países, sem que uns pensem que são feitas para facilitar o seu cumprimento e outros que têm como objetivo uma maior pressão sobre as políticas nacionais”, avisa.
É por isso que todos estes debates partem sempre com uma baixa probabilidade de trazer alguma alteração significativa. No entanto, se a dor económica provocada pela crise pandémica for tão grande como alguns esperam, as regras até poderão não mudar, mas talvez fiquem guardadas na gaveta durante vários anos.