O Banco Central Europeu (BCE) meteu prego a fundo e acelerou para fora da zona de terreno negativo. Subiu as taxas de juro em 50 pontos base – ao contrário do que havia sinalizado em junho – e não se compromete com o que fará daqui para a frente.
Recorde-se que, em junho, Christine Lagarde havia orientado o mercado para uma subida de 25 pontos base este mês – deixando em aberto a possibilidade de um aumento mais robusto para setembro. No entanto, a materialização dos riscos de uma taxa de inflação superior à estimada – com a pressão sobre os preços a contaminar cada vez mais setores de atividade – e a forte depreciação do euro (que atingiu na última semana a paridade face ao dólar) levaram a autoridade monetária europeia a fazer uma fuga para a frente.
Pela primeira vez na última década, o BCE sobe juros, num movimento que abarca as três taxas diretoras: a taxa de juro aplicável às operações principais de refinanciamento e as taxas de juro aplicáveis à facilidade permanente de cedência de liquidez e à facilidade permanente de depósito aumentam assim para 0,50%, 0,75% e 0,00%, respetivamente.
Uma decisão com impacto no orçamento das famílias e das empresas, cujo crédito vai ficar mais caro, mas com potencial para afetar também o custo dos juros da dívida pública dos países do euro. Por isso mesmo, e em jeito de pacote, Lagarde anunciou a aprovação de um novo mecanismo de escudo para as economias da zona euro e a flexibilização do programa de compra de ativos devido a emergência pandémica.
A mais recente ferramenta no kit do BCE chama-se Instrumento de Proteção da Transmissão (IPT) e Lagarde garante que será suficientemente potente para assegurar uma “transmissão suave da política monetária” em toda a zona euro. O que, em português corrente, significa garantir que os spreads das dívidas públicas se mantêm em níveis comportáveis, escudando-os da especulação financeira.
Mas há regras
O novo mecanismo do BCE não tem valores definidos à partida mas tem regras de elegibilidade. Os critérios incluem: conformidade com o quadro orçamental da União Europeia, nomeadamente não estar sujeito a um procedimento de défice excessivo ou ter sido avaliado como não tendo tomado medidas eficazes em resposta a uma recomendação do Conselho da UE; ausência de desequilíbrios macroeconómicos graves; sustentabilidade orçamental, desde logo, ao nível da sustentabilidade da trajetória da dívida pública; e o cumprimento dos compromissos apresentados nos planos de recuperação e resiliência e das recomendações específicas por país da Comissão Europeia.
Como é tradicional, Christine Lagarde frisa, no entanto, que apesar das regras, o BCE mantém poder discricionário e de julgamento sobre como e quando “puxar do gatilho”. Questionada por vários jornalistas, na conferência de imprensa que se seguiu à reunião do Conselho de Governadores, sobre a possibilidade de estrear o novo mecanismo com a dívida pública italiana – cujos spreads estão a subir por via da crise política desencadeada pela demissão de Mario Draghi – Lagarde não se comprometeu. Garantiu apenas que o BCE tem capacidade para decidir e agir rapidamente, mas ressalvou que “diferenças nas condições de financiamento regionais podem surgir legitimamente, entre outras razões, devido ao cenário macroeconómico de cada país”. Esclareceu ainda que o BCE preferiria não utilizar o IPT, “mas se tivermos de o usar, não vamos hesitar”.
A morte do forward guidance
Em 2012, em plena crise das dívidas soberanas, o “whatever it takes” de Mario Draghi foi suficiente para gerir as expectativas dos investidores e marcou definitivamente o uso regular de uma ferramenta poderosa da política monetária – o forward guidance, ou orientação futura sobre a política monetária. 10 anos mais tarde, Lagarde assume agora que o banco central está a navegar à vista: “Estamos muito mais flexíveis, nisso não estamos a oferecer qualquer tipo de orientação futura”, afirmou.
Depois de ter feito marcha à ré na anunciada decisão de subir as taxas de juro em 25 pontos base em julho, a Presidente do BCE não se compromete com ações futuras. A declaração do BCE “sinalizou a morte bem-vinda de uma orientação futura muito específica”, comentou Nick Kounis, economista do ABN Amro Holding. Embora o Conselho tenha sinalizado que “uma maior normalização das taxas de juros será apropriada”, qualquer decisão sobre futuros aumentos das taxas de juro será feita “mês a mês, reunião a reunião e estará dependente dos dados”, disponíveis em cada momento, afirmou Lagarde.
“O aumento, bem como possíveis aumentos adicionais, visam reduzir as expectativas de inflação e restaurar a reputação e a credibilidade danificadas do BCE como combatente da inflação”, escreveu Carsten Brzeski, global head of macro do ING Groep, em nota de research. “A decisão de hoje mostra que o BCE está mais preocupado com essa credibilidade do que em ser previsível.”
Um trade-off entre credibilidade e previsibilidade com potencial para tornar os mercados mais voláteis, à medida que os investidores reagem com maior sensibilidade aos dados divulgados.
BCE assume mandato de estabilidade de preços
A atividade económica está a desacelerar, por via da guerra na Ucrânia, do impacto da inflação no poder de compra dos europeus e das interrupções das cadeias de abastecimento. Fatores que, de acordo com o BCE, “estão a obscurecer as perspetivas para o segundo semestre de 2022 e mais além”.
Apesar disso, Christine Lagarde relembra que o mandato do BCE é o da estabilidade de preços. “Dadas as circunstâncias, temos de agir em relação à inflação. No cenário base das nossas projeções e da Comissão, não teremos recessão este ano, nem no próximo. Existem nuvens no horizonte? Claro que sim”.
Entre os principais riscos para o crescimento da economia, o BCE aponta o prolongamento da guerra na Ucrânia, “especialmente se o fornecimento de energia da Rússia for interrompido a tal ponto que leve ao racionamento de empresas e famílias”. A guerra pode ainda diminuir ainda mais a confiança e agravar as restrições do lado da oferta, enquanto os custos de energia e alimentos podem permanecer persistentemente mais altos do que o esperado. Uma desaceleração mais rápida do crescimento global também representaria um risco para as perspetivas da área do euro.
Já os riscos para as perspetivas de inflação a médio prazo incluem uma redução duradoura da capacidade de produção da economia, preços de energia e alimentos persistentemente altos, expectativas de inflação acima da meta e aumentos salariais acima do previsto. “No entanto, se a procura enfraquecer no médio prazo, isso reduzirá as pressões sobre os preços”.
O BCE insta ainda os governos europeus a fazerem uso das políticas orçamentais. “As medidas temporárias e específicas devem ser adaptadas de modo a limitar o risco de alimentar pressões inflacionistas. As políticas orçamentais em todos os países devem ter como objetivo preservar a sustentabilidade da dívida, bem como aumentar o potencial de crescimento de forma sustentável para melhorar a recuperação”.
Do lado das condições de financiamento, o banco central espera uma redução dos empréstimos bancários às famílias, por via da redução da procura, e afirma que os critérios de financiamento ficaram mais rígidos para todas as categorias de empréstimos no segundo trimestre do ano, “à medida que os bancos estão cada vez mais preocupados com os riscos enfrentados pelos seus clientes no atual ambiente incerto”. Uma tendência que deverá continuar no terceiro trimestre.