Para ouvir em Podcast:
Google Podcasts
Spotify
Quando foram divulgados os dados relativos à taxa de desemprego de janeiro de 2022, nem as mais otimistas expectativas podiam prever que ela estivesse nos 6%, confirma a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho. “Exatamente há dois anos tive uma reunião de emergência para saber como íamos fazer face ao que estávamos a sentir, que era uma pandemia”, começa por recordar a responsável. “Na altura, o desafio era conseguir criar mecanismos para fazer face a contextos que implicavam suspender a atividade presencial.”
Falámos com a governante e com Catarina Reis, economista e professora na Universidade Católica Portuguesa (UCP), no passado dia 16 de março, na semana em que se assinalaram dois anos do início do primeiro Grande Confinamento devido ao SARS-CoV-2.
“Confesso-lhe que o tema em cima da mesa, na altura, era como conseguir controlar a taxa de desemprego, quando tínhamos a memória da crise anterior, em que tivemos meses em que ela ultrapassou os 18%. E se há dois anos me tivessem perguntado se era possível atravessar uma pandemia e ter uma taxa de desemprego nos 6%, eu digo-lhe que ninguém, que ninguém presente nessa reunião, achou que isso fosse possível”, continua, com um sorriso.
E se há dois anos me tivessem perguntado se era possível atravessar uma pandemia e ter uma taxa de desemprego nos 6%, eu digo-lhe que ninguém, que ninguém presente nessa reunião, achou que isso fosse possível
Ana mendes godinho
Juntámos as duas especialistas no Martinhal Chiado, parceiro da EXAME nesta rubrica, para analisar a evolução do emprego e do mercado de trabalho, num momento em que Portugal já recebeu centenas de refugiados ucranianos, tendo montado uma operação inédita de colaboração entre serviços, para que estas pessoas pudessem ser integradas na comunidade e no mercado laboral assim que chegassem. Nesse sentido, quisemos perceber que desafios e oportunidades a chegada dos refugiados vai provocar. E também como se pode deixar para trás a imagem de Portugal como um País de elevadas competências mas salários consistentemente baixos.
“Acho que a pandemia também nos deu muitas lições do ponto de vista da capacidade de adaptação permanente e de criação de um ambiente coletivo para conseguir ultrapassar obstáculos”, continuou Ana Mendes Godinho. “A pandemia foi uma lição permanente de transformação da capacidade de resposta pública, de eliminar passos burocráticos e hierarquias de decisões, porque as respostas tinham de ser muito rápidas, dadas com muito pragmatismo e descomplicação.”
E vai pedindo desculpa por estar sempre a dar exemplos relacionados com os últimos, mas é quase uma inevitabilidade: o período que marcou a sua chegada ao Ministério do Trabalho foi também aquele em que todos atravessávamos por uma pandemia.
“Houve uma grande capacidade de concentração em função de resultados rápidos. E quando nos centramos em resultados, o que é acessório e o que noutros tempos parecia essencial passa a ser relativo. E isso é uma transformação extraordinária, que espero que tenha vindo para ficar”, admite.
“Há impossíveis que de facto se conseguem ultrapassar. E a taxa de 6% em janeiro é a prova disso mesmo. Houve uma grande capacidade de mobilização coletiva para assumir que a manutenção de emprego era uma prioridade de todos nós e também para a manutenção da capacidade de nos mantermos como sociedade. É verdade que houve uma mobilização inédita de recursos públicos, mas as empresas também assumiram o risco de manter postos de trabalho sem saberem o que ia acontecer. Portanto, foi uma mobilização conjunta”, aplaude.
Daí que, quando se olha para janeiro e se vê que Portugal regista a taxa de desemprego mais baixa dos últimos 20 anos, se percebe rapidamente que o desafio agora é outro: a falta de recursos humanos. “E esse é um dos desafios que temos, não só como País mas ao nível global”, defende a governante.
Com uma população cada vez mais envelhecida e a transição digital a marcar pontos no presente, torna-se ainda mais evidente a necessidade de atrair e de reter talentos em Portugal.
Catarina Reis afirma que essa é efetivamente uma das maiores dificuldades com que Portugal se debate atualmente. “E isso é em parte porque o mercado de trabalho não é muito atrativo – os salários não são muito altos, quando comparados com os dos restantes países europeus, e a carga fiscal para um nível salarial nominalmente semelhante é mais elevada em Portugal do que em outros países semelhantes”, nota.
Os salários não são muito altos, quando comparados com os dos restantes países europeus, e a carga fiscal para um nível salarial nominalmente semelhante é mais elevada em Portugal do que em outros países semelhantes
catarina reis
“Dos alunos que temos na UCP, muitos deles contemplam a possibilidade de irem para fora, e muitos acabam por ir, efetivamente”, realça. “Portanto, temos uma taxa de natalidade baixa, poucas crianças e, além disso, o talento está a fugir, o que para mim é muito preocupante”, salienta a economista, que tem centrado a sua investigação em macroeconomia, com particular ênfase no desenho de políticas ótimas para o governo.
É por essa razão que vê com bons olhos a chegada de novos profissionais, qualificados, que podem ser parte integrante da resposta às necessidades do mercado de trabalho mas também à comunidade como um todo. “É uma oportunidade muito boa que nós temos de aproveitar e de acarinhar.”
”Mas acho que também temos de acarinhar quem escolhe ficar, dar aquele incentivo extra a quem está a terminar a sua licenciatura. São jovens que estão a terminar o seu curso num mercado de trabalho muito incerto, e é preciso incentivá-los a ficar neste País”, atira em jeito de desafio.
Quem fica com os trabalhos que ninguém quer?
Questionada sobre se não corremos o risco de ver alguns dos recém-chegados refugiados a ficar com os trabalhos mais precários e menos bem pagos, que muitos portugueses não aceitam, a ministra do Trabalho garante que o executivo está a tentar acautelar essas situações, através de uma task-force conjunta entre o Instituto do Emprego e Formação Profissional e o Ministério do Trabalho, que procuram cruzar as qualificações e as necessidades de quem chega com as ofertas de trabalho entretanto inscritas na plataforma criada para o efeito.
“Procurámos, num primeiro momento, garantir que as pessoas ficam com a capacidade de integração total nas varias dimensões – e daí a simplificação que fizemos dos processos de atribuição de NIF e do número de Segurança Social, o que pode parecer insignificante mas é fundamental, porque as pessoas logo que chegam têm a capacidade total de inclusão na sociedade. E a verdade é que tivemos, no passado, processos kafkianos que dificultaram a inclusão das pessoas no mercado laboral.”
Agora, defende, é necessário que estas medidas pontuais se transformem em regra, porque, “se precisamos realmente de pessoas, temos de ser os mais acolhedores também em termos formais”, continua. Por outro lado, e em relação a estas pessoas que chegam agora, em condições particularmente desafiantes, o executivo tentou fazer logo o levantamento junto das empresas portuguesas dos perfis de que elas estão à procura. “Em menos de uma semana, tínhamos mais de 22 mil ofertas de emprego. Criámos uma plataforma de procura rápida, nos mais diversificados setores, áreas e perfis de competências. Portanto, para responder à sua pergunta, se eu acho que os refugiados vão ficar somente com os trabalhos que os portugueses não querem, verdadeiramente, não! Estamos com uma taxa de desemprego baixa, precisamos de trabalhadores de diferentes perfis e tentamos que este match seja o mais adequado. Temos dedicadas equipas conjuntas do IEFP e da Segurança Social a contactar individualmente cada uma destas pessoas, para perceber exatamente o perfil e as necessidades que têm – percebemos que muitas delas são mulheres com crianças e, portanto, também com necessidades acrescidas de resposta a isto”, explica. Adianta ainda que entre as áreas e perfis mais procurados nas ofertas apresentadas por parte das empresas, há trabalhadores tecnológicos, para a área da hospitalidade, elevada oferta no setor social, na indústria e também na construção civil.
Menos talento, mais salário
No entanto, a pergunta mantém-se: como se sobem salários numa economia que está habituada a ter pessoas a ganhar tão pouco?
“O combate à precariedade tem de ser uma missão conjunta, de todos”, defende Ana Mendes Godinho. “Claro que já começamos a sentir alguma evolução positiva, fruto da falta de recursos humanos. Quando se começa a ter falta de talento, as empresas têm de oferecer melhores condições para o reter, o que mostra que o próprio mercado vai ajustando-se em função dessas necessidades”, começa por dizer.
Quando se começa a ter falta de talento, as empresas têm de oferecer melhores condições para o reter
ana mendes godinho
“Não acho que a afirmação de Portugal passe por salários baixos, mas pela mobilização de talento e das condições que temos em termos de qualidade de vida. Acho que temos dois desafios e duas oportunidades no momento em que vivemos: traçar um quadro de compromisso de valorização dos salários e dos jovens no mercado de trabalho. Esta questão é crítica. A capacidade que temos de ter para criar condições para que os nossos jovens não queiram emigrar deve ser a nossa prioridade total”, defende. Para isso, adianta, “temos de garantir que os jovens têm condições para decidirem ficar por aqui”. É por isso mesmo, diz, que o executivo ao qual pertence tem trabalhado para melhorar o acesso à habitação dos mais jovens, ao aumento de capacidade em termos de equipamentos sociais, nomeadamente de creches, e tem reforçado o IRS jovem, com o objetivo de aumentar a liquidez dos salários dos jovens que decidam ficar em Portugal. Quanto a mexer nos impostos, Ana Mendes Godinho não se fez ouvir.
No entanto, salientou, Portugal viu o salário mínimo nacional aumentar em 40% desde 2015, “o que, se bem se lembram, muitos diziam que ia fazer aumentar o desemprego”, atira com um sorriso. Só que, admite, o salário médio não acompanhou essa subida.
“A ideia que eu tenho é que mesmo as multinacionais pagam menos em Portugal do que noutros países, portanto olham para Portugal como sendo um País com talento mas com salários baixos”, realça Catarina. “Estamos a falar de pessoas muito qualificadas, ao nível das melhores escolas europeias, portanto é justo que sejam remuneradas do mesmo modo. E também para criarmos um círculo virtuoso de melhores salários, mais produtividade e, tendo salários mais altos, os impostos também podem baixar”, aproveita para lembrar.
Estamos a falar de pessoas muito qualificadas, ao nível das melhores escolas europeias, portanto é justo que sejam remuneradas do mesmo modo
catarina reis
“Porque, obviamente, se os salários são baixos, quem é que vai pagar impostos a não ser quem ganha mais?”, sublinha a economista.
E defende que tanto o Estado como as empresas precisam de fazer a sua parte para se conseguir chegar a este cenário ideal. “O salário mínimo tem subido, e sem aumento de desemprego, o que tem sido muito positivo, mas o salário médio não se tem mexido assim tanto, e a classe média fica ali um bocadinho esmagada. É preciso criar um quadro institucional previsível para as empresas – isso ficou prejudicado durante a pandemia, porque houve o choque que reduziu a procura e depois as dúvidas sobre quais seriam as medidas adicionais. Mas agora esperamos que isso comece a passar e sabemos que, em geral, ter previsibilidade ajuda imenso as empresas”, sublinha.
“E também acho que é necessário haver alguma flexibilização do mercado de trabalho, porque o que temos agora é alguma segmentação. Temos um grupo de pessoas que está efetiva no seu trabalho, com estabilidade, e pessoas com precariedade, salários mais baixos, e logo mais sujeitas aos choques”, repete. “Não se pode pôr o ónus todo na empresa, mas temos de pensar em como se pode flexibilizar o mercado de trabalho sem tirar a rede de proteção dos trabalhadores”, desafia.
Ana Mendes Godinho aproveita para dizer que não podia concordar mais com isto e que é preciso “dar o devido valor ao trabalho”, recordando que “o peso das contribuições no PIB teve uma oscilação muito grande desde 2010 – estava a par da média europeia. Em 2015, porém, baixámos significativamente, passando esse peso de 48% para 44%, e desviámo-nos da média europeia. Isto revela que o valor do trabalho desceu percentualmente no PIB”.
O que significa, avisa, que “a valorização do trabalho na economia tem de ser crítica para as empresas”. Por outro lado, também defende um forte combate à pobreza infantil, porque, “se pensarmos que há 20% das crianças em Portugal em risco de pobreza ou de exclusão, isso significa que estamos a desperdiçar 20% da nossa população, o que é inadmissível como sociedade”.
Com um final de conversa centrado sobretudo na questão desta necessidade de se investir cada vez mais na Educação, a partir da primeira infância, as especialistas terminaram a concordar em algo: na capacidade de parcerias entre empresas e Estado Social através de políticas públicas ativas que possam favorecer o crescimento da economia nacional