“Acho muito preocupante quando alguém pensa que a digitalização é colocar uma capa mais bonita, para que passe a ser acessível via mobile, num processo anacrónico que muitas vezes está pensado para coisas manuais. It’s like putting lipstick on a pig, como dizem os ingleses. Mas não deixa de ser um porco. Ou nós entendemos que é preciso começar do zero, tornar os processos supersimples e fazer acontecer, ou fica difícil. Temos de simplificar!”, atira Isabel Guerreiro a meio da nossa conversa, mas a frase é quase um resumo da animada troca de ideias entre a Head of Digital Europe do Grupo Santander e a CEO do Grupo Luz Saúde, Isabel Vaz.
Duas engenheiras, duas Isabéis e muitas ideias alinhadas sobre o futuro da Saúde e da banca, e acima de tudo, sobre o caminho que Portugal deve fazer nos próximos anos para conseguir aproximar-se dos níveis de excelência que, acreditam, tem capacidade para alcançar.
“Eu passei agora – eu e a reitora da Universidade Católica Portuguesa – por um tema que é dramático, que foi lutar contra tudo e todos para criar um curso de Medicina em Portugal [numa universidade privada], porque todos nos diziam que Portugal não precisava e porque o sistema está completamente… enfim. Mas ‘who’s talking about us?’. Portugal e os PALOP vão precisar de mais de um milhão de profissionais de saúde nos próximos anos!”, começa por dizer Isabel Vaz, lembrando: “Nós fomos aqueles tipos que, quando éramos muito pequeninos nos atirámos com umas caravelas ridículas para o resto do mundo. Onde está esse espírito?” A gestora pede às universidades que se tornem polos de diversidade e de excelência, dando como exemplo o campus de Harvard, onde os vários cursos convivem no mesmo espaço, o que ajuda a fomentar o espírito crítico, a tolerância e a troca de ideias. “O Instituto Superior Técnico (IST), que é excelente, tem de ser internacional! Nós não temos de ter medo por sermos pequenininhos! É isto que mata Portugal. O Hospital da Luz pode querer ser o melhor da freguesia de Carnide ou ser uma referência europeia! Tem a ver com ambição!”, reitera. Neste sentido, Isabel Guerreiro lembra o exemplo de Singapura, onde atualmente a entrada nas universidades é mais difícil do que em algumas instituições da Ivy League.

Para ambas, a Educação devia estar neste momento no topo das prioridades do Executivo, com uma consciência muito clara de quais são os ativos que o País pode rentabilizar. “Uma das coisas que me fazem aflição nas novas gerações é a falta de sentido crítico – e não quero que seja entendido como uma crítica geracional. Mas temos de falar disto”, reflete Isabel Vaz. “Esta coisa das redes sociais, os influenciadores… Influenciador porquê? O que é que aquela pessoa entende sobre o assunto para influenciar? Umberto Eco falava das legiões dos idiotas, não era? Isto tem a ver com a velocidade a que o mundo corre, as tecnologias… Mas a culpa não é do influenciador, é de todas as pessoas que o seguem e alimentem isso. Por isso é que acho fundamental aprender a pensar, promovendo a diversidade nas universidades. Juntar os campus universitários, para mim, devia ser um projeto para Portugal, porque não temos grandes recursos – além do mar. Temos o mar e temos cabeça, que é ancestral! Portanto, temos de pensar como é que tornamos muitas áreas transacionáveis. Temos cabeças monumentais, e basta pensar na quantidade de pessoas nossas que temos lá fora”, salienta ainda. “E são boas lá fora devido ao contexto”, concorda Guerreiro, que aplaude universidades e empresas onde a diversidade seja política prioritária. “Precisamos de diversidade no ecossistema: de género, de geração, de formação, de idade. Eu não quero ter uma organização onde só se vai buscar os meninos ao IST”, sublinha. “É preciso aceitar que nos desafiem. Isso é um problema de liderança e acho que em Portugal existe por vezes – estou a falar em estereótipos. Mas para ser um bom líder é preciso ser muito seguro. Porque quem é inseguro tende a não querer que o desafiem. Ou ter gente melhor do que o líder. Só está preparado para ser líder quem não está preocupado com o seu próprio desenvolvimento mas com o desenvolvimento dos outros. Tem de ser colegial”, concordam ambas.
Precisamos de diversidade no ecossistema: de género, de geração, de formação, de idade. Eu não quero ter uma organização onde só se vai buscar os meninos ao IST
isabel guerreiro
Numa tarde em que a digitalização esteve no centro da conversa, as responsáveis tentaram esclarecer aquilo que, acreditam, muitas vezes é mal-entendido quando se fala de inovação, tecnologia e digital. “A digitalização é uma das ferramentas possíveis de reengenharia de processos”, esclarece Isabel Vaz. “A engenharia de dados, por exemplo, vai alterar profundamente a forma como prestamos cuidados de saúde. Digitalização, automatização, engenharia de dados: como é que isto, tudo junto, nos vai ajudar a repensar tudo de uma forma diferente, mais eficiente, que atinja objetivos diferentes?” As teleconsultas, as aplicações de saúde e os serviços médicos ao domicílio são, eventualmente, aqueles que os consumidores notam mais, mas não é aí que está a verdadeira inovação dos sistemas. “Olhe o exemplo da sépsis: temos algoritmos normalérrimos de medicina preditiva que a identificam com base num conjunto de indicadores. Mas a Inteligência Artificial permite-nos, hoje, usando um manancial de dados muito maior, e utilizando indicadores nos quais nunca tínhamos pensado, identificar uma sépsis muito mais cedo!” Na ocasião, a gestora – que admite que todos os dias passa, no mínimo, uma hora a estudar – lembrou ainda como um médico da Luz realizou, recentemente, uma ablação do conduto auditivo num paciente italiano… em Itália. “Daí que para nós a questão do 5G seja também fundamental, porque vai acabar com o período de latência, o que em algumas cirurgias é fundamental”, explica.

Já na banca, pede Isabel Guerreiro, é preciso adequar as regras aos novos tempos: para a responsável, não faz qualquer sentido que ainda se obriguem os clientes a assinar documentos presencialmente, ou a apresentarem-se para se identificarem num balcão de uma instituição bancária, quando já há várias formas que permitem, de uma maneira segura, realizar todas estas operações à distância. É a tal “reengenharia” de que falam ambas, e que implica ir muito além daquilo a que comummente chamamos transformação digital. Aquilo que é preciso – e a começar pelo Estado – é de uma transformação. Ponto.
Com uma gargalhada em jeito de lamento, Isabel Vaz salienta que neste ponto a sua homónima deverá conseguir ter soluções mais cedo, uma vez que a Saúde continua a ser uma área estatal. “Há uma grande diferença entre o setor da Saúde e o da banca. É que eu estou num setor estatal, e o Estado tende a resistir mais à mudança. Ainda noutro dia vi o primeiro-ministro e a ministra da Saúde a inaugurarem um centro de saúde, com toda a pompa e circunstância, igual aos de há 20 anos. E claro que esta é uma crítica parva porque era um investimento que estava previsto, mas é só para se perceber a mentalidade. O Estado tem uma inércia maior, mesmo no setor da Saúde, onde há inovação clínica e tecnológica brutal – as pessoas tendem a pensar no setor da Saúde como os hospitais, mas o setor da Saúde é um dos maiores da economia mundial. Em qualquer país não vale menos de 10% do PIB. Ainda hoje, passados 20 anos, gozam comigo por eu dizer que melhor do que o setor da Saúde só o das armas. Continuam sem perceber…”, remata. “Mas como é que ainda não há, por exemplo, um repositório de informação que é do cliente – repito, não é do hospital, é do cliente – com a sua informação clínica? Uma pessoa que vai a um hospital do Estado e depois a um hospital privado não consegue praticamente ter acesso aos seus exames… É ridículo!”, lamenta.
Isabel Guerreiro recorda, entretanto, que grande parte dos algoritmos que hoje são comummente utilizados já estavam a ser estudados nos anos 1960, pelo que é só preciso adequar agora o resultado àquilo que são as possibilidades entretanto trazidas pela capacidade de hardware, de gestão de dados e, claro, dos próprios profissionais, que hoje se querem ainda mais críticos, adaptáveis e curiosos. “Não quero saber se quem vem trabalhar comigo é licenciado em Geologia ou Antropologia ou Astrofísica. Mas quero que seja alguém com sentido crítico, com capacidade de se adaptar, com curiosidade, com a noção de que a aprendizagem ao longo da vida é uma necessidade”, diz ainda. “Porque se as pessoas tiverem isso, as competências técnicas aprendem-se”, garantem.
Eu gastava a massaroca toda em projetos espetaculares de Educação. Com miúdos bem-educados, temos o futuro garantido!
Isabel vaz
Daí que, repetem, as universidades possam ter aqui um papel fundamental na formação das novas gerações. “Se olhar para os EUA, quando pensamos porque é um país tão atraente… é porque eles não têm pudor em procurar os melhores. Misturam perfis, e não têm problema algum em procurar e em apostar. Isso é o que nos faz falta! O que é mais determinante no sucesso de uma pessoa, infelizmente, ainda é a família de onde vem. Não apenas pelo tema social, mas pelo acesso à Educação.” Por isso, defendem, gostariam de ver cerca de metade das verbas do Plano de Recuperação e Resiliência aplicada na Educação. “Enquanto não for mais de 50% para a Educação, o País não vai dar nada. Eu gastava a massaroca toda em projetos espetaculares de Educação. Com miúdos bem-educados, temos o futuro garantido!”, vaticina Isabel Vaz.
“Tanto eu como a Isabel temos o privilégio de poder dar um certo tipo de condições aos nossos filhos, mas é preciso ter um Estado que permita que as famílias que o não têm deem aos filhos o mesmo tipo de educação”, secunda Isabel Guerreiro. “Se eu mandasse, uma das apostas seria claramente na Educação. “E desporto”, pede a outra Isabel. “Sim, o desporto é muito democrático. Ajuda a tornar os miúdos todos iguais. Ensina as pessoas a serem disciplinadas, a lidar com o falhanço, a trabalhar em equipa”, concorda a homónima. “E a serem saudáveis. Poupa-se imenso na Saúde com miúdos que sejam saudáveis. It’s all linked.”
E já que estamos a caminho das autárquicas, recordam ambas, “tudo o que sejam estes projetos de fomentar desporto e educação localmente – e nas cidades pequenas são extraordinariamente importantes – será bem-vindo. Porque esses são os miúdos que fazem as Feedzai da vida!”, concluem.
*Artigo publicado inicialmente na edição n.º 446, de junho de 2021, da revista EXAME