Numa altura em que os olhos estão postos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) nacional e na forma como o Estado e a iniciativa privada vão aproveitar a chamada “bazuca”, Vanda de Jesus e Sara do Ó pedem cautela na utilização das verbas que elas, alertam, não querem ver a serem usadas para esconder problemas ao invés de resolvê-los.
Numa conversa assertiva que voltou a juntar as entrevistadas no Martinhal Chiado, parceiro da EXAME na Girl Talk, a diretora-executiva da Estrutura de Missão Portugal Digital começou por pedir mais confiança entre as “pessoas do Estado e as pessoas da iniciativa privada”. Vanda de Jesus, que acumula mais de duas décadas de experiência na área da tecnologia, salientou que, no arranque da recuperação económica, “o tema da confiança é absolutamente crítico”. “Ao longo da minha vida profissional sempre me esforcei por criar essas pontes de confiança antes de começar a fazer um trabalho mais profundo”, admite. “Mas se calhar só agora é que estou a reparar mesmo em como isso é importante – talvez por estar nestas funções, numa estrutura de missão e com a responsabilidade do digital. Ao longo das minhas funções sempre fiz o trabalho da tradução do mundo da tecnologia para os negócios e dos negócios para a tecnologia. E logo percebi que o que tenho de fazer neste tema, entre público e privado, é ser uma ‘dealer’ de confiança da tradução e garantir que as partes também se conhecem”, e justifica: “Há uma grande desconfiança dos dois lados – neste momento, quando tenho uma reunião, 50% são questões técnicas e os outros 50% sou eu a tentar perceber as pessoas e se temos na reunião o nível de confiança certo para as coisas acontecerem.”
A fundadora e CEO do Grupo Your aproveitou a deixa para introduzir as questões críticas que ela acredita que surgiram desta crise que ainda agora está a começar. E deixa algumas críticas à forma como o Governo fala às PME, representantes de 94% do tecido empresarial nacional. Para Sara do Ó, é preciso uma comunicação mais clara e um caminho mais aberto para que a comunicação flua bilateralmente. Só dessa forma, acredita, vai ser possível trabalhar em conjunto e fazer as alterações essenciais ao tecido empresarial e político.
“Confiança é deixar isto claro: o que eu quero de ti? O que tu queres de mim? Qual o resultado que nós queremos no final? E acho que muitas vezes não sabemos qual é a nossa missão num projeto. É como se estivéssemos a fazer um puzzle e falhasse uma peça – eu não consigo emoldurar o puzzle se esta peça estiver em falta. E se uma pessoa falhou na organização, onde é que eu não lhe comuniquei que tal era a contribuição dela? Porque só te podes sentir confiante se souberes exatamente o que esperam de ti.” E é essa comunicação efetiva que Sara espera conseguir estimular no Estado e nas empresas com as quais trabalha. “Eu sou uma otimista incurável e acho que esta crise trouxe coisas incríveis. Houve coisas assustadoras: vivemos num clima de incerteza, de dor, de necessidade de sobrevivência, de fragilidade, de medo de perder o sustento, de perder a vida… Houve um confronto gigante com a perda. Com a perda da vida, do negócio, dos nossos empregos. Houve um sentimento de vulnerabilidade que nos pôs a todos em igualdade.” E foi nesse momento em que foi obrigada a parar, enquanto empresária, e percebeu quais os grandes desafios que se adivinham no horizonte e que vão exigir um trabalho conjunto de iniciativa pública e privada: desigualdade, demografia e qualificação. “Portugal é o quinto país mais velho do mundo, a população ativa é muito reduzida e é pouco qualificada”, resume.
Maiores e mais digitais
É aqui que Vanda recorda os vários programas que estão a ser preparados pelo Governo para conseguir capacitar trabalhadores e líderes para as competências básicas digitais, área em que admite haver um enorme caminho a percorrer. Caminho que se for trilhado, espera, permitirá depois uma profunda alteração no tecido empresarial português, tornando-o mais competitivo, atrativo e rentável. “Quando a pandemia começou, tínhamos 22% da população sem acesso à internet e sem competências digitais. E ainda temos outro número que me impressiona tanto ou mais e que se refere ao facto de 52% não ter quaisquer competências digitais básicas. O programa Eu sou Digital quer, precisamente por isso, pôr jovens a trabalhar com pessoas mais velhas para conseguir reduzir este gap. Temos como objetivo até 2025 incluir 1 milhão de pessoas nas competências digitais”, adianta Vanda. Uma iniciativa que Sara aplaude e que lamenta só pecar por tardia. Para a empresária, é fundamental conseguir aumentar a dimensão média das empresas nacionais.
No entanto, para isso são precisos líderes mais qualificados e mais confiantes, que consigam perceber as vantagens de se trabalhar em rede ao invés de preferirem o “quintalinho. Eu adoro o quintalinho”, atira com um sorriso irónico, antes de explicar o conceito que já popularizou entre as pessoas com quem fala regularmente. “O quintalinho é eu ter uma empresa que não fatura, que tem resultados líquidos negativos, mas olhar para a marca que construí, ver o poder que ganhei e não querer abdicar disso”, resume. “Devo dizer-vos que nos últimos meses tenho visto, com muita alegria, muitas empresas a darem as mãos umas às outras, muito incentivadas por contabilistas, por advogados, por aqueles que são os fornecedores com competências de gestão e que conseguem perceber que aquelas duas entidades juntas vão mais longe. Mas isto tem de ser implementado de cima”, defende. Uma ideia que já tinha sido abordada na Girl Talk, quando em abril Filipa Barreto (KPMG) e Susana Serrano (Têxteis Adalberto) identificaram precisamente a mesma necessidade.
Com 94% das empresas em Portugal a faturar €2 milhões, Sara questiona por que razão não se consegue dar o salto, num País onde há um mindset global. E deixa uma ideia, quase em coro com Vanda: “Acho que elas não conseguem dar o salto porque, a partir de uma determinada altura, é preciso uma série de competências de gestão que os empresários não têm. E como se resolve isto? Temos um problema grave de retenção de talento, mas temos talento incrível lá fora. Porque não aliciar as pessoas que estão em determinados setores a fazer coisas incríveis lá fora a voltarem para Portugal? Com condições obviamente favoráveis e com incentivos fiscais muito interessantes, para virem reativar, reinventar e ajudar estes ecossistemas que serão fruto de uma concentração de empresas que assim conseguirão ter escala e competência para lutar lá fora.” Até porque, lembra Vanda, “a médio prazo já não vamos ter pessoas suficientes para o nível em que os projetos já estão, nem para dar formação aos outros… e não vamos conseguir esperar pelos meninos de 5 anos que vão ter essas competências”.
Portanto, defendem ambas, o trabalho começa agora e não é apenas através de formações sobre digitalização. O que é necessário, garantem, é trabalhar com os líderes e empresários as soft skills que lhes permitirão identificar os problemas dos seus modelos de negócio e que os capacitarão para ouvir quem os pode ajudar. Nas empresas familiares, há que ajudar os atuais gestores a ouvir as gerações mais novas, que têm outro tipo de visão e que podem ser uma verdadeira chave para o sucesso, na medida em que percebem que o digital “não é uma coisa que compram no supermercado” com o dinheiro que estará à disposição, mas algo que implica “rever fundamentalmente modelos de negócio e fluxos de caixa, de forma a preparar cada vez melhor as organizações para futuros embates como este que elas sentiram agora”, e cujas consequências ainda estão por se refletir na economia.
“É que a recuperação económica não acompanhou a recuperação pandémica. E é por isso que este dinheiro me assusta”, repete Sara, “porque tenho muito medo de que os pequenos empresários se desconcentrem da operação na tentativa de conseguirem captar algum dinheiro que depois pode não resolver coisa alguma”. E vai mesmo mais longe na crítica, lembrando que “estamos a falar, e a viver de, empresas que vivem de cash flow diário e que foram obrigadas a fechar. Eu reforço sempre isto: quem é o tecido empresarial português? 94% são microempresas, estruturas familiares, muitas vezes com menos de 10 colaboradores, a faturar €2 milhões. Portanto, estas empresas têm capitais próprios, estão totalmente endividadas e vivem de uma sociedade pedinte do Estado…”, alerta.
É por isso que no processo de recuperação, acreditam, vai haver uma dor necessária de que poucos gostam de falar mas que as executivas acreditam ser relevante abordar: “É um mal necessário deixar algumas empresas caírem. E custa muito dizer isto, mas essa limpeza é essencial à sobrevivência do tecido empresarial português.” Porém, nem todas têm de morrer. “É preciso que caiam para que se juntem às que sobreviverem ou que se reinventem. E para isso é preciso haver um trabalho sério de análise de mercado em que consigamos perceber como é que elas se podem juntar às outras”, defendem. “Há muita esperança de que, nas candidaturas às Agendas Mobilizadores [previstas no PRR], haja esse tipo de concentração”, adianta Vanda. “Do que tenho receio é que o nível de confiança ainda não seja suficiente. Mas temos de ajudar todos os setores”, admite ainda.
“Vamos juntar o que cada um sabe fazer melhor. Quem não sabe partilhar não sabe crescer!”, atira em jeito de resumo Sara do Ó, enquanto pede também um envolvimento maior entre as missões empresariais do Estado e as PME, lamentando que, muitas vezes, sejam apenas consideradas as grandes empresas que “representam 5% do tecido empresarial. E as outras? Vamos levá-las a ver o mundo, para que possam fazer melhor”, pede.
No mesmo sentido, as duas responsáveis apelam a uma maior aposta na educação e formação para as competências emocionais, a uma maior transparência na comunicação entre instituições públicas e privadas e a um olhar estratégico de médio prazo para o País.
Até porque Vanda gostaria muito de que, daqui a 10 anos, a sua Estrutura de Missão já estivesse extinta – “era sinal de que o trabalho estava feito e de todos os objetivos foram cumpridos”. Já Sara espera que em 2031 já seja possível ter um País em que apenas 54% das empresas são PME. “Se calhar somos umas otimistas, mas vamos dar o nosso melhor”, garantem com uma gargalhada.
Artigo publicado inicialmente na edição n.º 450 , de outubro de 2021, da revista EXAME