O ano de 2021 marcou o início do processo de recuperação da crise pandémica. Uma recuperação mais rápida que o antecipado e do que em crises anteriores. Esta crise foi marcada por uma resposta política sem precedente: imediata, robusta e coordenada. A natureza do choque e a situação macroeconómica e financeira de Portugal em 2019, incluindo o excedente orçamental, contrastavam com os desequilíbrios do passado. O espaço orçamental e a manutenção de condições de financiamento favoráveis atenuaram os efeitos do choque, asseguraram a estabilidade financeira e preservaram a capacidade produtiva e o emprego.
Uma Europa solidária e madura evitou a repetição dos erros da crise das dívidas soberanas. Erros que causaram fragmentação política e o agravamento de condições económicas, pondo em causa a integridade da área do euro. Portugal soube inverter esse ciclo. De mau aluno passou a ponto cardeal no retomar de um projeto europeu uno. Esse novo ciclo de políticas europeias não pode ser desperdiçado. Porque a credibilidade é um bem escasso, que custa muito a adquirir e se pode perder com uma mão cheia de decisões frívolas, não a podemos esbanjar.
2022-2024, porque amanhã é sempre longe demais
O ano de 2022 já aí está. A atividade no primeiro semestre retoma os valores de 2019 e cresce, no ano, 5,8% (após 4,8% em 2021), sustentado no investimento e nas exportações, com destaque para os serviços.
A reintrodução de medidas restritivas para conter a pandemia reduz o ritmo da recuperação. Mas o processo de aprendizagem e o progresso na vacinação afastam os cenários catastróficos do início da crise.
O emprego cresce 1,6% em 2022, e a taxa de desemprego reduz-se para 6%. Nos próximos anos, o crescimento do emprego prosseguirá, mas limitado pelas restrições na oferta de trabalho decorrentes da dinâmica demográfica. Este é um dos desafios que o futuro nos reserva.
Em 2020 e 2021, a poupança teve um reforço pronunciado. Este aumento da riqueza e o rendimento disponível real, suportado por um mercado de trabalho robusto, deverá impulsionar o consumo das famílias. O investimento, que teve um desempenho estelar durante a crise, deverá crescer 7,2% em 2022, beneficiado do financiamento europeu, da recuperação da procura e da manutenção de condições favoráveis de financiamento. O investimento, e a sua relação com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), terá um papel fundamental no lançamento das bases de crescimento de uma economia competitiva, resiliente e sustentável, pelo que a sua gestão terá um papel essencial que retomarei adiante.
Num ambiente de excesso de procura, que traduz um crescimento forte da procura acompanhado por uma expansão condicionada da oferta e, por isso, mais lenta, prevê-se que a inflação aumente para 1,8% em 2022, um valor ainda inferior ao da média da área do euro. O aumento da inflação está influenciado pela componente energética, pela subida dos preços das matérias primas e, também, pela recuperação da atividade turística. Os efeitos de segunda ordem não se fazem ainda sentir, nomeadamente pressões salariais, não obstante a limitação da oferta de trabalho consubstanciar um risco ascendente para a inflação. Passados os efeitos temporários e retomada a mobilidade laboral na Europa, antecipa-se uma descida da inflação, que deverá convergir em 2024 para valores compatíveis com o objetivo de política monetária do BCE.
Europa e Portugal: um desígnio de integração
Em 2016, Portugal recuperou a sua credibilidade externa. Entre as perspetivas de multas e sanções por incumprimento do Pacto de Estabilidade e dos compromissos assumidos no quadro europeu e um sistema financeiro periclitante, cumprir de forma firme e determinada com as metas permitiu pôr fim a uma espiral negativa. O seu valor inestimável beneficiou todos – setor público e privado, famílias e empresas, novos e velhos. Os anos seguintes consolidaram uma trajetória credível e sustentável, conquistada com a saída do Procedimento por Défices Excessivos, a melhoria de notação da dívida da República e a redução do risco eminente de colapso do sistema bancário. A dívida portuguesa passou a ser recomendada como investimento seguro, permitindo uma poupança anual dos juros pagos pelo Estado, famílias e empresas superior a 7 mil milhões de euros. Tudo pontuado com a maior redução do endividamento público e privado em percentagem do PIB de toda a União Europeia nos 5 anos que antecederam a crise pandémica.
Em 2022, enfrentamos um novo desafio: dar continuidade ao momento de integração europeia lançado em 2020 pelo Next Generation EU e pela coordenação das políticas monetária e orçamental. Uma implementação eficiente dos projetos e das reformas do PRR não é apenas essencial para o desígnio económico – aumentar a produtividade, competitividade e crescimento sustentável –, mas também para o desígnio político europeu. A emissão de dívida comum com notação de risco da máxima qualidade (AAA) que beneficia toda a Europa – não apenas um conjunto limitado de países – não pode ser desperdiçada. É preciso termos consciência disso: estamos a promover a transição climática e digital com financiamento a taxas muito reduzidas. Se desperdiçarmos esta oportunidade, retrocederemos às infindáveis e estéreis discussões sobre a redução e a partilha de risco na Europa; o momento de partilha de risco mais aprofundado terá sido dado como perdido.
A curta janela de implementação do PRR é por si só um desafio. Todas as hesitações e complacências terão um preço elevado para uma transição com sucesso. Reconhecê-lo é apenas um primeiro passo para desenhar uma boa implementação. Os projetos devem ser estruturantes, produtivos e reprodutivos. As condições económicas necessárias a uma eficiente reafectação de recursos exigida pela transição digital e pela transição climática têm de ser criadas. Utilizando políticas de incentivo às qualificações e de proteção do rendimento, sem criar obstáculos à transição entre empregos, já que os novos serão mais qualificados e sustentáveis. Utilizando o Mecanismo para a Transição Justa, em boa hora criado pela União Europeia, precisamente para que esta transição se faça sem deixar ninguém para trás.
Num contexto demográfico adverso, a capacidade de atração de capital humano qualificado, nacional e estrangeiro é um fator chave para um crescimento sustentado.
O investimento público deve catalisar o investimento privado, evitando encargos de manutenção insustentáveis em investimentos que não geram os recursos necessários para se sustentar. Com os pressupostos subjacentes ao PRR, devemos ser capazes de, em simultâneo, aumentar o investimento e reduzir o endividamento.
Propulsão. Ou a convergência real assente na estabilidade financeira
É fundamental retomar a trajetória de redução do rácio da dívida pública, sustentada por um plano credível de consolidação orçamental. O país tem uma janela temporal de 2 a 3 anos para inverter o aumento da despesa permanente em percentagem do PIB e reduzir a carga fiscal estrutural. Só com uma dívida sustentável se pode manter a confiança dos investidores, nacionais e internacionais. E é também da sustentabilidade e confiança que depende a capacidade de reter o talento que famílias e escolas colocam à disposição da economia. Este continua a ser o investimento mais importante e com mais retorno económico e social. O salto quântico que demos nas qualificações nos últimos vinte anos – de 40% para 83% de jovens com pelo menos o ensino secundário – não pode ser desperdiçado.
O setor privado terá também que retomar a trajetória de redução do endividamento. O diferencial entre o peso da dívida privada entre Portugal e a área do euro, que era superior a 70% do PIB em 2012, passou pela primeira vez, em muitas décadas, a ser negativo em 2019. Sim, é verdade, em 2019 as famílias e empresas portuguesas estavam em média menos endividadas que as suas congéneres da área do euro.
No sistema bancário, o progresso realizado na década após a crise das dívidas soberanas foi preponderante para aumentar a resiliência do setor, tão importante durante a crise pandémica. Persistem desafios estruturais. O processo de digitalização deverá constituir uma alavanca. Mas a consolidação do setor e a transição climática não são menos desafiantes.
As medidas adotadas em resposta à crise pandémica – introdução de moratórias e linhas de crédito com garantia pública – permitiram mitigar a materialização do risco de crédito. Alguns indicadores da qualidade dos ativos mostram sinais de deterioração, nomeadamente no crédito que esteve em moratória. A monitorização deve por isso ser proactiva, definindo soluções de recuperação dos mutuários viáveis e o reconhecimento atempado das perdas, nas situações de insolvência.
Os desafios que enfrentamos devem resultar na transformação da economia, num ímpeto reformista que aumente a produtividade e a competitividade, que prepare Portugal para enfrentar as transições climática e digital com uma oportunidade para mostrar o seu melhor e para se reinventar. Este é o único resultado que garante um crescimento sustentável e inclusivo e assegura um processo de convergência real bem-sucedido.
Artigo publicado, originalmente, na edição 453 da revista EXAME