Começamos por lhe ouvir a voz, a chamar, pouco antes de sentirmos as mãos pequeninas nas nossas pernas. Fala em árabe, com os olhos cheios de lágrimas, e nós insistimos em seguir caminho como se fosse apenas um som que se mistura com todos os outros da cidade. Ao fim de uns metros de insistência paramos para a ouvir – a tradução vem depois, mas o desespero percebe-se, não importa a língua em que se fale. Damos-lhe as libras que temos na carteira, que chegarão para pouco mais do que para comprar um pacote de seis pães árabes devido à subida astronómica do preço dos alimentos nos últimos tempos: 350% em apenas um ano.
Dela não guardámos o nome, mas a história: tem 12 anos e dois irmãos mais novos. A família fugiu da Síria, há dois anos, à procura de paz e de uma vida em que sobreviver não fosse a única solução. Os pais morreram na explosão do porto de Beirute, a 4 de agosto de 2020. Agora, aquela pequena de olhos tristes e corpo franzino é a imagem de um desespero que está escondido numa cidade que continua a fazer o possível por se reerguer.
Continuamos o caminho em silêncio, e sentimos o nosso próprio suspiro [de alívio?] quando olhamos o Mediterrâneo, a menos de um quarteirão de distância. Estamos na marina de Beirute, lugar privilegiado e onde se passeiam libaneses, saudis e os poucos europeus que arriscam uma visita turística na “Paris do Mediterrâneo”. Sucedem-se os restaurantes caros, alinham-se os barcos que ostentam bandeiras da Ferrari, desfilam casais com as amas atrás. A menina de olhos tristes e corpo faminto está ali tão perto e parece que vive num outro mundo.
Beirute é assim, cheia de idiossincrasias. Os refugiados sírios encontram aqui paz – “o que já não é pouco!”, dir-nos-á o padre Rui Fernandes, jesuíta que há quase dois anos vive no Líbano –, mas “é só. Há muito pouco para além disso”. As feridas da guerra civil na Síria, que durante anos se alastraram pelo território libanês, ainda estão abertas, e é difícil para os libaneses afastar a memória dos acontecimentos recentes. Por outro lado, vamos sabendo das histórias que nos últimos meses poderiam ter ajudado na cicatrização: a ajuda do Programa Alimentar Mundial (WFP, na sigla em inglês), só chegou aos campos de refugiados, uma vez que a incerteza política está a dificultar até a ajuda humanitária às vítimas da explosão e da fome, genericamente, no Líbano. Muitos sírios dirigiram-se à cidade para doar parte dos alimentos que tinham recebido daquele organismo às famílias afetadas pela detonação no porto de Beirute, que foi só o elemento final de uma tempestade perfeita.
Senão, vejamos: depois de décadas em guerra, os conflitos armados no país só abrandaram em 2017; no ano passado, no meio de uma crise financeira que já se fazia sentir, o povo saiu à rua a gritar thawra (revolução) e conseguiu que o Governo se demitisse; no início do ano, a pandemia fechou a porta aos turistas, responsáveis por cerca de 7% do PIB nacional e reduziu significativamente as remessas dos emigrantes (que, por seu lado, representam 14% do PIB do país) que alimentam muitas das famílias libanesas; em agosto, a explosão destruiu o porto de Beirute e, no início de outubro, um incêndio no centro da cidade danificou o edifício desenhado pela iraquiana Zaha Hadid, um dos mais icónicos da capital.
“Se querem saber como sobreviver a tragédias, podem falar connosco”, diz meio a rir, meio a sério a irmã Lucy, da congregação das Irmãs do Sagrado Coração. Responsável pelas finanças da instituição, desdobra-se em reuniões com representantes do Governo, para tentar alinhavar um futuro no qual o dinheiro escasseia na mesma proporção em que as necessidades aumentam. Mas os sorrisos ganham, mesmo que desesperançados. A Imprensa nacional afirma que cerca de 500 mil pessoas terão saído do país em busca de uma vida melhor, nos últimos meses, mas nem todas estão dispostas a abandonar a terra que as viu crescer,
Pamela ainda não tem 30 anos, é fisioterapeuta e tem uma clínica em Beirute. Faz parte da classe alta libanesa e, para ela, sair do país “é deixá-los ganhar [a corrupção, a injustiça, o Hezbolah, no limite]. Temos uma classe política corrupta, e já muita gente antes de mim lutou pelo Líbano. Não me vou embora. Vou continuar a trabalhar para conseguir ter um país melhor”, garante. A postura e o olhar determinados, bem como a elegância, são características comuns das mulheres libanesas – e quase nos fazem entender porque o país não cai, apesar de todas as vicissitudes.
E agora, Líbano?
Adivinhar o futuro é complexo, há vários anos. Uma cidade cosmopolita, com algumas das melhores universidades do Médio Oriente e de olhos postos na “Paris” que quer continuar a ser, luta agora por mais um renascimento. É precisamente sobre isso que nos fala o dono do Route 961, um conhecido bar em plena escadaria Vandome, na zona equivalente ao Bairro Alto lisboeta.
“Tinha 480 milhões de libras no banco. Dinheiro mais do que suficiente para fazer a casa que queríamos (mais de 300 mil dólares ao câmbio do ano passado). De um dia para o outro fiquei sem nada”, conta. Recorde-se que para fazer face ao enorme défice comercial acumulado, os bancos libaneses decidiram confiscar as contas correntes dos depositantes, no ano passado e, incapazes de manter o câmbio fixo que tinham com o dólar desde 1997, converteram todo o dinheiro em libras libanesas. Sem dólares nas instituições financeiras, a moeda nacional pode ter agora sete diferentes taxas de câmbio no mesmo dia, no mercado negro. Durante a semana que passámos em Beirute, o valor do dólar oscilou entre as sete mil e as dez mil libras, e os preços dos alimentos, refeições fora ou roupa tocam facilmente os que encontramos em qualquer capital europeia, o que torna qualquer compra praticamente incomportável, num país onde o salário mínimo é de cerca de 150 dólares.
A título de exemplo, por uma sanduíche dupla de kafta e dois copos de vinho no Route 961 pagámos cerca de 45 dólares. “Essa garrafa de vinho ontem custou-me 10 dólares. Mas amanhã pode custar 20”, continua o proprietário em jeito de justificação pelos preços cobrados. “Tenho três filhos e tomo conta dos meus pais, que também precisam de ajuda. E as perguntas são, todos os dias, as mesmas: vamos comer amanhã? Vamos abrir [as portas] amanhã?”, conta enquanto olha para os filhos, que correm alegres escada acima e abaixo, no meio dos clientes que agora escasseiam. “Obrigada por virem e por pagarem em dólares”, diz-nos. A mulher, russa, pediu-lhe para voltarem para a Europa após a explosão. “Como é que posso ir? Este é o meu país. Tenho de ficar, tenho de ajudar a reerguê-lo. Mas será que podemos ficar?”, atira-nos mais em jeito de reflexão do que de pergunta.
Os conflitos internos e internacionais custam ao Líbano mais de sete mil milhões de euros e têm um impacto de 8% no PIB nacional, segundo os dados do mais recente Índice Global da Paz. Uma fatura que já ninguém quer ou consegue pagar, a não ser que o país receba ajuda internacional – e essa está a ser ferozmente negociada por um recém-eleito Governo que tem pouca vontade de mudar um sistema que favorece as elites instaladas.
“We will rise again”
Nas ruas de Beirute não se vê, genericamente, tristeza ou sequer revolta. O que se sente, ao longo dos dias, seja a passear nas ruas ou a conversar com quem partilha connosco as histórias, é cansaço. E preocupação. Importador de praticamente tudo o que consome, o Líbano sofre com a flutuação cambial mas também com o facto de a principal porta de entrada de bens essenciais, o porto, continuar destruído. Os hospitais e as farmácias não têm acesso a medicamentos – o Governo voltou a decretar um confinamento total, a meio de novembro, para conseguir fazer face à pandemia da Covid-19 que só veio agravar um problema já sério, em termos de prestação de cuidados de saúde – e entrar num supermercado de classe média é uma surpresa. Os preços (e as marcas) de alguns produtos essenciais como massa, arroz, feijão ou grão não são em nada diferentes do que se encontra nos supermercados europeus. Nas mercearias, os preços descem um pouco, sobretudo nos frescos, mas continuam a ser demasiado elevados para a grande maioria dos libaneses.
Comer uma knafeh, um popular doce do Médio Oriente que nos dá as calorias suficientes para um dia inteiro, custa cerca de um dólar: está completamente fora do orçamento das famílias. Muitas delas, aliás, têm tido como única refeição diária o man’ousheh, o habitual pequeno-almoço que consiste em pão árabe recheado com queijo ou especiarias.
Da presença da ajuda humanitária, célere a chegar nos dias após a explosão do porto, restam agora algumas tendas vazias. Muitas delas servem até de estacionamento para motas, outras de espaço de descanso para os trabalhadores da construção civil que fazem renascer os edifícios destruídos há cerca de dois meses.
“Continuamos a tentar trabalhar em rede com algumas ONG, mas são muito poucas as que estão ainda cá”, lamenta Mira Rasbieh, responsável por um consórcio de organizações que, além de prestar apoio aos mais idosos, se concentra bastante na saúde feminina. “Distribuímos dignity kits (cabazes com produtos de higiene feminina) às mulheres mais necessitadas; prestamos apoio domiciliário a grávidas e a recém-mães… Mas a verdade é que não chega. As famílias estão a passar muitas necessidades e nós só atuamos na área da saúde”, explica Mira. Tem conseguido, ainda assim, trabalhar com a Nusanet e com a Caritas, por exemplo, para tentar criar uma rede de apoios transversal aos mais necessitados. E pede à comunidade internacional que não se esqueça do povo libanês. “Continuamos a precisar de ajudar financeira para nos mantermos no terreno”, pede.
Esperança e alegria
Uns metros mais à frente, encontramos Rodrigue Herb, um ilustrador transformado em empreiteiro voluntário, que se desdobra entre carpintarias provisórias, fios de eletricidade e idosos com olhar perdido. Está a trabalhar para a Offre Joie, uma ONG libanesa que tem sido fundamental para a recuperação dos edifícios destruídos em Beirute. “Começámos a fazer o levantamento das necessidades ainda no dia da explosão. Dois dias depois, estávamos no terreno a trabalhar”, atira-nos antes de interromper para receber um grupo de voluntários que hoje vai trabalhar aqui, num dos bairros mais afetados pela detonação, e onde a instituição já recuperou 45 apartamentos.
As doações foram feitas pela sociedade civil, desde particulares a empresas que cederam materiais de todo o tipo. Os trabalhadores especializados – canalizadores, eletricistas, carpinteiros – estão a oferecer mão de obra em troca de transporte e refeições, e muitos outros voluntários estão a aprender a construir paredes ou pintar portas. Por este bairro, em particular, passaram dois mil voluntários em dois meses. As autoridades apareceram apenas para aprovarem o que estava a ser feito, e os moradores recusaram-se a sair. “A Offre Joie devolveu-me tudo. Reconstruiu tudo”, conta-nos Charbel, que abre religiosamente a sua oficina para não ter trabalho, durante 12 horas. O filho universitário perdeu um olho na explosão e isso é o que mais lhe dói. Mas, apesar da desesperança, continua a levantar-se, todos os dias, porque é isso que o povo libanês faz: nunca baixa os braços. E tem um sentido de comunidade que dificilmente sentimos na Europa.
A arte salva
Mireille Goguikian é uma pintora de origem arménia que retrata Beirute como ninguém. Aliás, entre a comunidade artística é mesmo apelidada de Mireille de Ville, por se inspirar nas cidades e na esperança, que dá alento. Recebeu-nos em sua casa, com a generosidade típica dos nacionais, e quando demos conta já estávamos rodeados de obras da pintora: a Notre Dame em chamas, a Arménia a lutar para se reerguer, Beirute em tempos de revolução, Nova Iorque a recuperar do 11 de Setembro.
Em todas as telas encontramos um sol amarelo, o seu símbolo de renascimento. No entanto, na sua voz, encontramos o desalento de uma classe que tem tido muita visibilidade mas nenhum apoio. “Uma caixa de lápis pastel, por exemplo, custa atualmente 200 dólares”, exclama. “É uma loucura”, lamenta enquanto explica que o preço altamente inflacionado do material não lhe dificulta apenas o trabalho, mas condiciona também o ensino dos mais novos, que não podem comprar material. “Perdi muitos alunos” e isso vai refletir-se até na saúde mental da sociedade. “A melhor terapia para sair deste apocalipse é a arte-terapia”, garante à EXAME Goguikian, pintora reconhecida e premiada internacionalmente.
“Acredito que os meus alunos estão a sofrer, e que a arte os pode ajudar.” A necessidade de psicólogos é, aliás, uma das mais apontadas por famílias e ONG que ainda encontrámos no terreno. Sobretudo para os mais novos, que ainda não entendem que, na mesma medida em que é um tesouro geo-estratégico, o Líbano é também um barril de pólvora à mão de demasiados interesses económicos e políticos que lhe dificultam o caminho da paz.
As vendas das obras de arte caíram a pique, numa altura em que há menos turistas e menos gastos. Enquanto os murais da cidade se enchem de novas produções por parte de artistas mais ou menos urbanos, o retorno desse esforço é quase nulo. Mireille pede à comunidade internacional que não se esqueça dos artistas libaneses, e que se lembre que a arte é mesmo o caminho para a redenção. Fala-nos, a ritmo acelerado, enquanto nos mostra as telas rasgadas pelos vidros que saltaram das janelas no dia da explosão. Ela e a família não estavam em casa, e os estragos são, felizmente, solucionáveis.
A revolta pela situação, por seu lado, tem sido o principal gatilho: de repente, a mesa da sala enche-se de ilustrações, colagens e afins que Mireille fez nos últimos dois meses, como um grito de socorro. “As pessoas acham que os artistas têm muito dinheiro, mas a verdade é que às vezes não sei mesmo como vou comprar comida até ao final do mês. Só que não há como fazer outra coisa. Tudo isto vai ter impacto na minha arte”, atira em jeito de conclusão.
Quando saímos à rua, depois de um jantar improvisado em casa da artista, olhamos as ruas desertas e silenciosas de Mar Mikhael, um dos bairros mais tradicionais da cidade. A noite traz a Beirute uma paz e uma esperança em que os libaneses gostam de acreditar, mesmo depois de tantas décadas de conflito. Se isto não é uma lição de resiliência, não sabemos bem o que lhe chamar.
*artigo publicado na edição 440 da EXAME, de dezembro de 2020.