Desde 2012 à frente da instituição, Nuno Lacasta salienta o trajeto ambiental do País nas últimas décadas, embora admita que recentemente esteja a “marcar passo” no aproveitamento dos resíduos. Depois do abrandamento na atividade provocado pela pandemia, o responsável diz que a instituição está preparada para responder a uma trajetória de recuperação. “Portugal tinha a vantagem de estar preparado nas políticas de economia verde e descarbonização e o plano Costa Silva assume centralmente essa matéria. O desafio é a implementação”, afirma, sobre a estratégia pós-Covid-19 para o País.
Em entrevista à EXAME, defende que a aplicação de impostos ambientais é, “em todo o seu esplendor, o bom exemplo de consignação de despesa”, porque são reinvestidos na melhoria dos ecossistemas. E sublinha o espírito de colaboração da agência com todas as partes interessadas. Pressões diz sentir apenas as do tempo para tomar decisões.
Está há oito anos à frente da APA. O que mais marcou esse período?
Pela primeira vez, temos ao nível do Estado gestão integrada do ambiente – clima, água, resíduos, ar, litoral, impacte ambiental, emergências radiológicas –, com especialistas de muitas áreas e numa relação com municípios e outros organismos. Fizemos uma profunda transição digital, com o LUA (licenciamento único ambiental, que congrega 14 regimes), as guias eletrónicas de resíduos para rastrear o movimento no território e a aplicação Infopraia, que este ano se tornou referência para perceber a lotação das praias. Demos o apport técnico e intelectual ao Roteiro da Neutralidade Carbónica, o primeiro a olhar para a economia e do qual o plano de recuperação económica que Portugal está a preparar é uma expansão. O planeamento de recursos hídricos, de inundações e da orla costeira; a gestão da seca, os projetos pós-fogos, a monitorização dos rios e do litoral e a renovação das redes de qualidade do ar e medição de radiação. As sociedades Polis Litoral, que ajudaram a mudar a face do litoral e terminam no final de 2021, quando a APA assumirá as suas competências e colaboradores.
A agência tem todos os meios e competências de que necessita?
As questões ambientais tornaram-se mais centrais na última década e terá sido isso que levou os políticos a decidir criar a APA, também por questões de gestão e eficiência. Temos um leque já vasto [de competências] que nos dá muitas dores de cabeça e que desempenhamos o melhor que podemos. Não estamos preocupados com a questão da “competenciazinha” para a esquerda ou para a direita, mas com a colaboração com outras entidades. Colaborar é um dos meus lemas.
Mas a APA está com muita frequência na comunicação social. Sente-se à frente de uma entidade com grande influência e poder?
É verdade que isto [gestão integrada] está a significar uma mudança de cultura. Não estamos obcecados com o “não, não, não, não, não”, estamos obcecados em garantir que o projeto é analisado como deve ser. A autonomia técnica existe hoje na APA e é preservada e garantida. Já tomámos algumas decisões controversas, sempre em apoio do Governo e na decorrência da lei, como permitir a prospeção de petróleo no Algarve – que depois não se realizou. Do ponto de vista da lei, fizemos uma análise absolutamente ímpar. Também não aprovámos um porto de contentores para o Barreiro e decidimos sobre a viabilidade ambiental do aeroporto complementar do Montijo
Essa autonomia técnica blinda-vos em relação às pressões?
Temos uma cultura de participação do público nos processos de decisão e os dados ambientais são dos mais disponíveis na sociedade. Recebemos muita informação e temos a tarefa difícil de ponderar e tomar decisões, muitas vezes transversais, que tentam encontrar um equilíbrio, no espírito da lei, entre os diferentes interesses, que às vezes até conflituam.
Mas sente pressões?
Na avaliação de impacte ambiental do aeroporto do Montijo, por exemplo, a pressão verdadeira foi a da gestão do tempo porque é dos processos mais complexos. Estamos obrigados a tempos legais na casa dos cento e poucos dias, temos de correr contra o tempo para trazer para cima da mesa mais de 30 organismos e diversas opiniões.
Que luzes verdes e vermelhas vê no percurso ambiental de Portugal nas últimas décadas?
Numa geração, passámos de país subdesenvolvido em políticas de ambiente para um de primeiro mundo, onde se destacam o abastecimento e saneamento de água e a gestão dos resíduos (fechámos mais de 300 lixeiras a céu aberto e construímos um conjunto vasto de aterros) com taxas de reciclagem interessantes. Mas continuamos a depositar demasiados resíduos em aterro: em menos de uma década temos de passar, no máximo, de 33,5% para 10%, segundo as metas comunitárias, o que é um grande desafio. Houve um período muito importante de montagem do sistema, com a Sociedade Ponto Verde, reciclagem de resíduos elétricos e eletrónicos, pilhas e óleos, mas não escondo que na última década começámos a marcar passo.
Por causa dos consumidores, da recolha ou da valorização?
Um pouco de tudo. A sociedade continua a ser de comprar e deitar fora, há muitos materiais desenhados para um período de vida propositadamente curto, o que me parece um escândalo. Ficámos um pouco acomodados com a primeira geração de aterros e não trabalhámos melhor as cadeias de recolha e triagem na fonte – é essa a frente de batalha. Uma decisão relevantíssima foi o aumento da taxa de gestão de resíduos para 22 euros por tonelada, uma proposta da APA que tem um custo, mas é um desincentivo.
As empresas estão mais conscientes do seu papel no ambiente? Ou ainda há muito greenwashing?
Não há comparação possível entre o estado do ambiente em Portugal hoje e há dez, 15, 20 anos. Não há nenhum indicador que nos diga que estamos genericamente pior na qualidade da água, do ar, do ordenamento do território. Temos historicamente um território desordenado e isso tem implicações, por exemplo, nas indústrias. Tem havido avanços ao nível do mundo empresarial – estou a pensar na CIP – e estamos disponíveis para, em temas como economia circular, descarbonização, gestão de poluição, trabalhar ativamente com associações empresariais. Até podiam ter um papel mais central na sua atividade, mas não me cabe a mim… Temos boas relações e estamos interessados em aumentar o nível de interação nestas matérias.
Já é possível medir o impacto desta pandemia no ambiente? E que lastro estrutural vai deixar?
Talvez o mais visível seja a melhoria sem precedentes da qualidade do ar no confinamento. Deixa um amargo de boca, porque não é paralisando a atividade económica e humana que protegemos o ambiente, mas sim percebendo como podemos, na recuperação, não voltar a níveis anteriores. Há boas notícias nas renováveis e o carvão [centrais] será descomissionado em 2021 e 2023. A recuperação económica de Portugal só pode ser feita com base na descarbonização, porque é o que permite que o valor económico fique no País e não seja exportado na compra de combustíveis ou haja gastos desnecessários do SNS, com cerca de seis mil mortes prematuras estimadas/ano por doenças resultantes da fraca qualidade do ar.
E qual foi o impacto no fluxo de processos que chegam à APA?
Com o impacto na economia notou-se imediatamente uma paragem de entrada de projetos. Estão a retomar e, com o plano de recuperação económica e continuação de investimentos na área das renováveis e infraestruturas, teremos muito trabalho pela frente.
Que papel terá o ambiente nos planos de recuperação europeus e no português, em concreto?
Ainda bem que estamos a discutir isto no âmbito desses planos, e os anúncios da presidente da Comissão Europeia são muito interessantes. Já ninguém contesta as green bonds pan-europeias, ponto final! E o anúncio de redução de 55% de emissões em 2030 é muito importante, não há volta a dar. A descarbonização é um dos pilares dos planos apresentados pela Alemanha e pela França e também está plasmada em toda a linha no plano Costa Silva, que bebeu profusamente do Roteiro de Neutralidade Carbónica e das estratégias de economia verde do Ministério do Ambiente.
O plano português é suficientemente ambicioso do ponto de vista ambiental?
Portugal tinha a vantagem de estar preparado nas políticas de economia verde e descarbonização e o plano Costa Silva assume centralmente essa matéria. O desafio é a implementação. Por vezes, há planos que ficam na gaveta, que são complicados, capilares. Na APA, temos equipas dedicadas a licenciamento e avaliação de impacto da descarbonização. É uma área em que precisamos de mais recursos e estamos a trabalhar nesse sentido.
A descarbonização e transição energética de Portugal fazem-se sem os investimentos no lítio e no hidrogénio?
Faz sentido Portugal posicionar-se agressivamente em tudo o que respeite a energias verdes. O hidrogénio começa a adquirir foros de centralidade e Portugal, com o potencial de Sines e em parceria com países como a Holanda, deve claramente posicionar-se nesta matéria. Haverá um envolvimento da APA na avaliação dos impactes – estarmos na mesma área ministerial permite estabelecer diálogo como nunca, e espero que continue a existir visão política para perceber a mais-valia de integração de energia, geologia e ambiente. A importância do lítio nas baterias é indesmentível e Portugal tem um potencial interessante que pode e deve ser estudado e, sempre de forma sustentável, eventualmente explorado. Temos alguns projetos na mesa, um em fase de definição de conformidade. Na avaliação de impacte far-se-á a consulta do público.
Um dos temas mais polémicos em que a APA esteve envolvida foi a viabilização com condições do aeroporto do Montijo. O projeto ainda faz sentido, dado o impacto da pandemia na aviação? E devia ser revisto?
O resultado da avaliação da APA podia ter sido outro, mas foi este, porque tecnicamente foi possível compatibilizar uma atividade aeroportuária com a gestão da área protegida do Tejo ao nível da avifauna e com medidas de mitigação do ruído nas populações. É público que estão a ser feitas reflexões por diferentes agentes no âmbito da configuração futura da TAP, do hub e da relação com o aeroporto complementar. O nosso papel é, confrontados com um projeto devidamente submetido, proceder à sua avaliação ambiental.
Os Estados são bons alunos e bons professores de práticas ambientalmente sustentáveis?
Historicamente, não – nem falo do caso completamente extremo da antiga União Soviética, que eram todas empresas públicas, com políticas de poluição absolutamente inacreditáveis. Mas, nas democracias, temos visto cada vez mais empresas e entidades públicas a exercerem influência nas cadeias de valor e mudarem comportamentos. As frotas públicas estão a converter-se para híbridos ou elétricos, um conjunto importante de edifícios do Estado começa a dar atenção à eficiência energética. Temos programas de incentivo que nos permitem maior otimismo e o trabalho na APA, em parceria com a ESPAP [Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública] e o Ministério do Ambiente, é trabalhar no “esverdeamento” proativo das compras públicas. Nos próximos anos, o desafio é incluir definitivamente os municípios nesse universo.
As leis portuguesas para o ambiente são amigas do investimento?
Mais de 90% são transposições de leis europeias, e a Europa não é conhecida como um continente avesso ao investimento. Os standards ambientais das leis portuguesas são e devem ser de primeiro mundo, estamos a competir com mercados da OCDE. Onde há uma disfunção que tem de ser melhorada é em alguma incompatibilidade que ainda existe entre regimes de licenciamento ambiental e de atividade económica, agrícola e industrial. É um debate que devíamos fazer, o de perceber se há critérios de licenciamento que são verdadeiramente úteis ou se constituem – inadvertidamente – algumas barreiras e custos de contexto ao investimento.
A regionalização seria positiva para o ambiente?
As CCDR já têm algumas competências, de licenciamento de operadores de gestão de resíduos e de alguns aterros, de acompanhamento da qualidade do ar; os municípios têm amplas competências em matéria ambiental – no último ano transferiram-se competências em gestão de praias, faz todo o sentido que sejam eles a geri-las. Não tenho nada a referir, a APA não deixará de ser uma entidade colaborativa.
Concorda que o ambiente seja uma “galinha dos ovos de ouro” de impostos?
A política de criação de tributos ambientais não é só portuguesa, é recomendada pela OCDE há mais de 20 anos. As taxas de gestão de resíduos, de gestão de recursos hídricos, de carbono e outros têm sido instrumentais para garantir a sustentabilidade da gestão do setor. Pagam a recuperação de ecossistemas e ajudam a mudar a performance ambiental da sociedade, são investidos pelo Fundo Ambiental de volta ao ambiente para a descarbonização, a gestão florestal, do litoral e de cheias. Esta é uma marca de água central da política de ambiente, bem-sucedida, e Portugal é referência nesta matéria. Em 2017, houve cerca de cinco mil milhões de euros de receitas de impostos ambientais. E acontece depois da reforma de fiscalidade verde, invertendo a tendência anterior de diminuição de impostos ambientais. A prazo, a tendência natural é que venham a reduzir-se à medida que as pessoas mudem comportamentos. Mas há algum problema nisso? Que as pessoas mudem comportamentos, que as empresas melhorem a performance ambiental?
E esses impostos são bem aplicados?
Quando coleto impostos nos combustíveis fósseis para investir nas renováveis, creio que estou a tomar uma boa decisão. Ou quando o faço no uso da água, e os gasto para melhorar infraestruturas hidráulicas, ou nos resíduos, para investir na separação de biorresíduos ou na recolha seletiva. É, em todo o seu esplendor, o bom exemplo de consignação de despesa.
Carreira no ambiente e nas alterações climáticas
Nome
Nuno Sanchez LacastaPercurso académico
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa e mestre em Direito (LLM) pelo Washington College of Law da American University, EUA. Foi professor convidado de Direito e Políticas de Ambiente (Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa) e de Direito Comunitário do Ambiente e das Alterações Climáticas (Washington College of Law, American University). Há cerca de 25 anos que trabalha em temas ambientais e de desenvolvimento sustentável.
Carreira
Foi consultor para a OCDE, ONU e Comissão Europeia. Desde 2002, desempenha funções de serviço público, como as de diretor do gabinete de Relações Internacionais do Ministério do Ambiente ou gestor do Fundo Português de Carbono e coordenador do Comité Executivo da Comissão para as Alterações Climáticas – área em que foi negociador-chefe da UE em 2007. Preside, desde 2012, à Agência Portuguesa do Ambiente (APA), instituição com cerca de 850 colaboradores. Em julho do ano passado, o Governo renovou a sua comissão de serviço na liderança da APA.
Entrevista publicada na edição 438 da EXAME, em outubro de 2020