“Vilhena nasceu em 1927, teve sarampo e todas as outras doenças peculiares nas crianças a quem a providência divina não ligou grande importância. No liceu foi perseguido pelos professores, que o chumbaram sempre que puderam. Na Escola de Belas-Artes foi um incompreendido. Tragédias sobre tragédias vão-se acumulando como nuvens no céu da sua vida. Aos 20 anos teve uma pneumonia. Aos 21 uma loira. Aos 23 foi chamado a cumprir o serviço militar.”
É desta forma que começa a Autobiografia, texto escrito em 1958 pelo ilustrador humorístico José Vilhena. Nesse ano, Vilhena tinha 31 anos, já tinha conhecido a loira e uma morena e publicado dois livros, num estilo humorístico e mordaz que, em 1965, o deixaria na mira da polícia dos bons costumes do Estado Novo. É então que Joaquim Palhares, funcionário da censura, reencaminha para a PIDE a sua análise ao livro Humor Parisiense, com as seguintes palavras: “O incorrigível e manhoso ‘Vilhena’ não quiz deixar acabar este ano de 1965 sem lançar a público mais uma das suas produções deletérias que por artes ocultas circulam sempre a despeito das proibições que sobre elas incidem. Posto hoje à venda, segundo creio, não encontro neste livro uma única página que possa ser autorizável. Portanto proponho a sua rigorosa proibição.” Chegaria a ser preso três vezes, sempre pela mesma razão: a alegada perturbação da saúde das mentes dos portugueses, com os seus desenhos e textos carregados de erotismo e crítica política, duas coisas com as quais as autoridades não gostavam de conviver.
Antes disso, em 1957, Portugal viveu um surto da chamada gripe asiática, que fez mortos por todo o País, com maior incidência na capital. Com a população em alvoroço, o tema não podia escapar a Vilhena, que deu largas à sua verve nas páginas do Diário de Lisboa, com uma série de ilustrações publicadas em setembro.
No dia 9 de Agosto de 1957, o navio Moçambique, proveniente de África, entra na barra do Tejo para atracar no porto de Lisboa. Traz a bordo passageiros doentes. Naquele dia, a epidemia de gripe acabara de ser importada. Provocada por um novo vírus que anteriormente não tinha circulado em Portugal, encontrou a população de Lisboa e do País inteiramente desprotegida
Mas como se deu esse surto? O trabalho Gripe em Lisboa, 1957 e 2008, publicado neste último ano e da autoria de Francisco George, Belmira Rodrigues e Mário Carreira, explica que a importação da doença – que começara em fevereiro de 1957, no Norte da China – chegou por barco. “No dia 9 de Agosto de 1957, o navio Moçambique, proveniente de África, entra na barra do Tejo para atracar no porto de Lisboa. Traz a bordo passageiros doentes. Naquele dia, a epidemia de gripe acabara de ser importada. Provocada por um novo vírus que anteriormente não tinha circulado em Portugal, encontrou a população de Lisboa e do País inteiramente desprotegida.”
O contágio era fácil, sobretudo porque não se sabia exatamente o que os doentes tinham. “Investigações epidemiológicas, conduzidas pelos especialistas da Delegação de Saúde de Lisboa, identificaram os primeiros casos. Verificaram que uma criança de onze anos de idade, que se deslocara com a família ao cais para acolher o avô que viajara no Moçambique, adoecera a 11 de Agosto. Nos três dias seguintes, todos os membros da família adoeceram igualmente. Por outro lado, mulher e filhos do médico assistente, que residia no mesmo prédio do bairro de Alvalade, também adquiriram gripe”, prossegue o mesmo texto. E acrescenta: “Outro médico de Lisboa, no mesmo dia, fora chamado a um hotel para assistir a doentes da mesma família (pais e três filhos) que também tinham regressado no Moçambique e que tinham sido acolhidos por outros dois filhos e uma tia residentes no Porto.”
Estava espalhada a doença. Lisboa e Porto são os maiores focos, havendo também registos sérios nas tropas concentradas para manobras em Santa Margarida, em setembro, bem como episódios em algumas colónias de férias. Só em Lisboa, a gripe asiática de 1957 matou quase 300 pessoas.
Lisboa em plena epidemia de gripe “asiática” era, seguramente, uma cidade diferente, sobretudo na primeira e segunda semanas de Outubro. Absentismo nas empresas, fábricas paralisadas, transportes públicos com problemas de funcionamento, escolas fechadas
E há outros paralelismos com o que vivemos nos últimos tempos. “Lisboa em plena epidemia de gripe “asiática” era, seguramente, uma cidade diferente, sobretudo na primeira e segunda semanas de Outubro. Absentismo nas empresas, fábricas paralisadas, transportes públicos com problemas de funcionamento, escolas fechadas, postos dos serviços médico-sociais da Federação das Caixas de Previdência com um aumento extraordinário de procura, hospitais sobrelotados, visitas suspensas à Maternidade Dr. Alfredo da Costa, e, logo depois, medida idêntica adotada nos Hospitais Civis de Lisboa. Foi, também, necessário reorganizar os turnos de médicos, enfermeiros e pessoal administrativo”, pode ler-se no já citado estudo.
José Vilhena sobreviveu, bem como as suas crónicas visuais que aqui publicamos, que ajudaram os lisboetas a descontrair durante um período muito tenso. Viria a morrer em 2015, aos 88 anos.
Artigo publicado originalmente na edição 433, de maio de 2020, da revista EXAME