Estamos a viver dois dos maiores desafios da nossa história: o combate contra uma pandemia e a adaptação a um novo mundo que estará perante nós. Nunca em tão pouco tempo um acontecimento teve impacto no mundo inteiro e em diferentes frentes, sobretudo a nível económico, social, laboral e civilizacional.
Mas há um aspeto que torna este tipo de surtos especialmente preocupante: a sua regularidade. Será que vamos viver num mundo constantemente preparado para este tipo de surtos?
A verdade é que o mundo não vai voltar ao normal, e por isso terá de ser gerado um novo normal que a médio prazo será melhor, mas que a curto prazo implicará desafios para todos. Para isso, é necessário repensarmos e corrigirmos a forma como vivemos, trabalhamos e socializamos. Esta mudança deve passar, inevitavelmente, pela aceleração exponencial de tendências que estavam a emergir na nossa sociedade, sobretudo as tendências de trabalho e que ficarão depois desta tempestade.
Por ser algo a que o mundo moderno nunca assistiu, qualquer tentativa de identificação do impacto será um exercício com um grande grau de incerteza. Mesmo assim, e com as devidas ressalvas, existem várias tendências e mudança que possivelmente se irão verificar:
Saúde como área ainda mais prioritária e aposta forte na prevenção
A saúde será provavelmente uma das áreas mais impactadas, com a valorização de sistemas de saúde públicos fortes e o desenvolvimento da telemedicina, que permitirá uma redução significativa dos custos associados a patologias que podem ser detetadas mais precocemente e controladas de forma mais eficaz. Também ao nível das empresas, assistiremos a um reforço da importância de estratégias de bem-estar focadas em dimensões como o pilar físico, emocional, social e financeiro, sobretudo no que respeita à saúde mental dos colaboradores, com a criação de estratégias de mitigação da ansiedade e stress.
Recolha e tratamento de dados individuais
A forma como os estados controlam atualmente os cidadãos, onde estão, onde vão e, por exemplo, o seu estado de saúde a qualquer momento, deverá ser uma tendência que poderá ficar durante os próximos anos. Seja por receio de um novo surto ou por outra qualquer razão, poderá passar a ser razoável existir um controlo efetivo e digital.
Dificuldades na mobilidade dos colaboradores
Futuras políticas de maior protecionismo poderão ter impacto na forma como as multinacionais se têm situado ao longo das últimas décadas, ao nível da dinâmica de processos de M&A e à globalização no seu todo. Também as viagens de negócios serão substituídas, na sua maioria, por conferências virtuais, uma opção que trará um impacto negativo nos setores da aviação e da hotelaria, mas que ao mesmo tempo será impulsionadora da evolução tecnológica. Isto permitirá também uma maior facilidade de trabalhar à distância, o que levará a uma nova abordagem na gestão dos recursos humanos.
Economia (ainda) mais verde
O facto de em muitas áreas se ter de recomeçar a forma como as empresas vão operar, bem como o grande desenvolvimento tecnológico, a redução da mobilidade e o foco dos cidadãos em garantir o bem-estar, puxarão claramente para um mundo mais verde.
Back to basics no trabalho
Existirá provavelmente uma recessão forte nos próximos anos, o desemprego aumentará e as empresas vão sentir os efeitos desta crise. A valorização do emprego será mais forte e poderemos assistir a um regresso aos aspetos valorizados pela Geração X no mercado de trabalho, muito mais focados na segurança, ou seja, o balanço financeiro da empresa poderá contar mais do que o desafio do projeto (um efeito que provavelmente se multiplicará pelas próximas gerações). Para além disto, existem outros fatores que passarão a ser importantíssimos no momento da escolha de um novo emprego, como a capacidade tecnológica da organização, a forma como o trabalho remoto pode ser executado, a existência de políticas fortes que apostem no bem-estar e a continuação do acreditar nos valores da organização.
Um mercado cada vez mais digital
Não restam dúvidas de que as empresas vão apostar ainda mais na tecnologia após esta fase crítica. Iremos assistir ao aceleramento da robotização do trabalho e a inteligência artificial vai desenvolver-se rapidamente, substituindo muito do trabalho de decisão que ainda cabe aos humanos. Existirá ainda uma democratização do acesso à Internet, existindo uma pressão sem paralelo para o 5G, 6G ou 7G. Fatores como o aumento do streaming, o trabalho remoto, o aumento das comunicações com imagem, a industrialização mais digital e acima de tudo o aumento dos utilizadores regulares da rede será exponencial, o que exigirá um aumento do investimento por parte das empresas.
Um novo paradigma no trabalho
O trabalho será certamente menos humano e à medida que a evolução permita, teremos sistemas, máquinas e inteligência artificial a substituir equipas de humanos em todos os setores, mas principalmente naqueles onde há grande concentração de pessoas ou que estejam hoje também muito dependentes dessas mesmas pessoas. Os processos serão otimizados, e vamos eliminar grande parte da papelada e da burocracia associada a processos ineficientes, que podem facilmente ser digitalizados ou geridos de forma mais automatizada. Já a gestão da mão de obra continuará a tendência de ter uma força de trabalho mais flexível, especializada e gerida por projetos específicos. No que respeita à gestão de equipas, espera-se novas formas de comunicação mais regular e à distância, assim como a gestão de carreiras com base em projetos transversais, a gestão de colaboradores pelas suas competências e não pela sua função ou departamento, a facilidade de criar equipas diversificadas e a existência de uma nova liderança assente na gestão de grupos de pessoas em determinados momentos.
Reconhecimento dos riscos de pessoas
As pessoas são o maior bem de uma organização, mas também o seu maior risco. Enquanto a maioria dos riscos de negócio têm planos de seguro a si associados, o mesmo não se passa na gestão do risco de pessoas. A necessidade de estar preparado para responder rapidamente a situações que obrigam a trabalhar remotamente, a substituir pessoas ou equipas-chave na organização, ou a introdução de políticas fortes de bem-estar do colaborador, falham neste momento na maioria das organizações. A aproximação das equipas de gestão de risco ao mundo dos recursos humanos será uma nova realidade, podendo ser criadas funções especializadas nesta tipologia de riscos.
Novas cidades e escritórios
Os estudos apontavam já na direção da geração Z preferir um maior isolamento, a possibilidade de um trabalho mais individual e não tão em grupo como os millennialls. Dessa forma espera-se que os open spaces sejam repensados e que sejam melhoradas as condições de trabalho em casa. Esta menor mobilidade, com menos pessoas a trabalhar no escritório, menos pessoas a realizar o circuito entre casa e trabalho, a opção por espaços de escritórios mais pequenos e até mais afastados de centro, entre outros fatores, poderão implicar grandes alterações na organização das cidades. O potencial de uma crise imobiliária é enorme, bem como de tudo o que está associado à cidade como a conhecemos hoje, sobretudo nas grandes urbes. Pelo contrário, começaremos a assistir a um repovoamento de locais mais remotos, como as regiões do interior.
Uma nova sociedade
Depois de todas estas mudanças, deixo uma reflexão final. Será que vamos assistir a uma sociedade mais apostada na família, na preocupação com os outros, numa mistura maior entre vida pessoal e profissional? Será que vamos ter rendimentos garantidos generalizados e vamos apostar em investir mais em áreas como a saúde, cuidados continuados, educação e outras formas de apoio e valorizar muito mais essas funções face ao que valorizamos hoje? Sabemos que provavelmente mais de metade dos empregos que existirão nos próximos 10 anos são completamente desconhecidos hoje, mas sabemos também que cada vez mais teremos a necessidade de nos unirmos como sociedade, apostar numa integração familiar mais forte e por isso prevejo que existirá uma tendência natural para vidas mais equilibradas e integradas na comunidade.