Os tempos andam perigosos, com o populismo a sair da toca e a afirmar-se desavergonhadamente no espaço público. Há muitas razões para isso mas, na verdade, não é isto que importa, e sim o que fazer perante o fenómeno. E a resposta do establishment tem sido assustada, amadora e contraproducente. Basta pensar em Ferro Rodrigues – um dos símbolos do político de vida inteira – a tentar colocar André Ventura na ordem: falhou redondamente, caiu na esparrela, e foi pior do que ter estado calado.
Se a Assembleia da República e os partidos lá representados vão tropeçando nos seus próprios pés perante o descontentamento demagógico da rua, outras instituições vão dando a munição mais preciosa ao populismo. A Justiça, infelizmente, está a prestar-se a esse lamentável papel.
Vamos por partes.
Começando pela trapalhada do Ministério Público, em que a Procuradora-Geral da República fez notar finalmente a sua existência, da pior maneira. A cúpula da PGR achou por bem comunicar internamente uma diretiva que determina a aplicação do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República e que coloca em causa a independência dos magistrados do Ministério Público. A tal diretiva diz que os superiores hierárquicos têm o poder de emitir “diretivas, ordens e instruções” sobre processos concretos, sendo que os titulares dos inquéritos só em situações excecionais identificadas podem recusar-se a obedecer. Pior, essas instruções ficam entre superior e inferior hierárquico, não tendo de constar do processo.
Em bom português, isto é obviamente retirar autonomia e capacidade de decisão ao titular do inquérito, em favor dos seus superiores hierárquicos imediatos e, em última análise, ao superior de todos, à própria Procuradora. Ora sucede que a Procuradora é designada pelo poder político, ao contrário dos magistrados que são relativamente inamovíveis na sua carreira. Os PGR vêm e vão, os magistrados ficam, exatamente por se entender que isso reforça a sua independência face ao poder político, porque não dependem dele.
É evidente que há muitos exemplos de falta de bom-senso em alguns procuradores do Ministério Público. E se não têm o mais básico bom-senso não podem desempenhar essas funções. Ora que se resolva isso. Mas tentar ir à volta desta forma, nesta altura do campeonato, é um disparate. Bem se pode dizer que isto não muda grande coisa, que é só uma clarificação e até que há bondade prática na diretiva (e nalguns pontos há). Mas, quando chega a altura do esclarecimento juridiquês (que a PGR produziu aqui), já ninguém está a ouvir.
Para quem vê de fora, e não tem obrigação de conhecer os meandros da justiça portuguesa, o que é que fica? Que a PGR está a querer ganhar poder para poder interferir nos processos concretos, “protegendo os amigos”.
O populismo agradece esta borla.
A violação do (alegado) segredo de justiça
Depois temos a farsa da alegada violação do segredo de justiça por parte de António Costa. O caso é simples de contar. António Costa, na qualidade de testemunha de Azeredo Lopes, respondeu por escrito às questões do juiz Carlos Alexandre sobre o chamado Caso Tancos. Ainda a cartinha estava quente já os jornais iam noticiando respostas concretas do Primeiro-Ministro. Face a isto, zero escândalo. Afinal, é hábito determinadas peças processuais que sustentam determinada narrativa terem via verde entre a Justiça e os jornais, ou melhor, entre certa Justiça e certos jornais, ou mais exatamente ainda, entre alguns agentes da Justiça e alguns jornalistas.
Perante esta seletiva “fuga de informação” das suas respostas, o Primeiro-Ministro anunciou que ia publicar no site do Governo, na íntegra, todas as perguntas e respetivas respostas, e assim fez. E, aqui, rebentou o escândalo. Carlos Alexandre rasgou as vestes e veio instar o Ministério Público a pronunciar-se sobre o eventual crime de violação do segredo de justiça, por parte de António Costa. Quanto à inicial violação do segredo de justiça, aliás absurdamente comum nos processos em que Carlos Alexandre intervém, nem uma palavra, zero preocupações.
O erro de António Costa foi não ter feito, como outros fazem, uma discreta (ou nem isso) entrega dessa informação a jornalistas que aceitem acriticamente o que lhes é dado, sob anonimato.
A Justiça portuguesa lida muito bem com a violação do segredo de justiça, desde que a consiga controlar e direcionar e que ela sirva o propósito de dar força às suas teses de acusação, as únicas que têm palco. Do lado da defesa, os arguidos são grelhados em lume brando ou bem aceso, com os jornais a darem todos os dias a versão da acusação como se essa fosse a verdade, e não o que é: uma versão. Quando se chega a julgamento (nos casos em que se chega), a opinião pública está completamente condicionada: o arguido fez obviamente aquelas coisas todas, é necessariamente um indivíduo de mau carácter (estas prosas são por natureza maniqueístas) e, se não for condenado, é porque a Justiça o protegeu, porque é “amigo”. Perante a avalanche de “provas” levadas à estampa dia após dia, durante anos, e a verdadeiros assassinatos de carácter, como é possível não o condenar? Não será por falta de provas, por uma Acusação mal feita, por incompetência do Ministério Público. Não. A explicação terá de ser que “eles”, os poderosos, se safam sempre, se protegem sempre uns aos outros.
E esta é a segunda grande borla que a Justiça dá aos populistas, a completa ausência de fé dos cidadãos no funcionamento de uma instituição central para a democracia.
O populismo cresce porque o sistema falha. O populismo já é perigoso por si, convém não o ajudar de forma tão flagrante.