Quando o Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) foi inaugurado, em 1793, as mulheres estavam totalmente proibidas de pisar qualquer palco nacional, e a situação assim permaneceria até depois da entrada no século XIX, por ordem de D. Maria I. Segundo documentos da época, a rainha queria preservar a moral e os bons costumes afastando as presenças femininas de qualquer exposição pública
– embora haja quem garanta que era também uma monarca ciumenta e que portanto dispensava outras mulheres por perto.
Mais de 200 anos depois de ter aberto as portas ao público, a mítica sala de espetáculos em pleno coração lisboeta tem, pela primeira vez na sua história, uma diretora artística. Elisabete Matos, a mais famosa soprano portuguesa, foi nomeada para o cargo pelo Ministério da Cultura e promete trabalhar para mudar significativamente a estratégia que tem sido, até agora, seguida pela instituição. Recorde-se que Matos foi o nome escolhido para substituir Patrick Dickie, que se demitiu em julho, alegando razões pessoais (apesar de o seu mandato terminar a 31 de agosto).
Acredita-se, no entanto, que o seu afastamento se deveu às várias greves levadas a cabo pelos funcionários do TNSC e que originaram mesmo o cancelamento de alguns espetáculos. Em causa estava a aprovação de um regulamento interno e também as discrepâncias salariais e de horários de trabalho entre os funcionários da Companhia Nacional de Bailado e os do TNSC, assuntos que tinham vários meses de discussão, mas cujas negociações chegaram a um impasse no início do verão.
Acumular de funções
Com uma carreira internacional de cerca de 30 anos, e logo depois de a sua nomeação ter sido tornada pública, Elisabete Matos fez saber que não vai deixar de cantar e que acumulará a sua carreira com
as novas funções.
Por email, em declarações à EXAME, a nova diretora artística do TNSC aproveitou para falar dos seus principais objetivos para aquela que é a principal casa de ópera no País: quer “criar uma atividade mais vasta, com a ideia de aumentar progressivamente o número de títulos por temporada, apostar na coprodução com outros teatros para poder fazer mais a menor custo”, ao mesmo tempo que pretende introduzir no programa do TNSC, “e dentro das possibilidades, recitais líricos com figuras do canto nacional e internacional”. Faz também parte dos seus objetivos atrair públicos e talentos mais jovens, que se possam identificar com aquele palco e o trabalho que há décadas é ali desenvolvido pelo único coro profissional do País.
“Os projetos educativos serão essenciais na criação de um público jovem, com acesso à música, à ópera e ao ballet”, pelo que espera conseguir criar “um estúdio de ópera onde os nossos jovens cantores possam ter formação e preparação e que, nesse seguimento, o palco do Teatro Nacional de São Carlos os possa brindar com a oportunidade de iniciarem uma carreira de sucesso”. Mas como Portugal não é apenas uma cidade – e Elisabete Matos sabe isso melhor do que ninguém, uma vez que estudou em Braga antes de seguir para Espanha, onde vive há mais de 20 anos –, “a itinerância terá sempre um lugar importante, correspondendo assim ao público que não tem oportunidade de frequentar o São Carlos em Lisboa”, esclarece.
Com um olhar mais abrangente e a vontade de que o TNSC se torne uma referência para quem vem de fora, a soprano espera promover uma série de “audições periódicas para que todos os artistas se possam dar a conhecer, criando assim oportunidades de trabalho”, ao mesmo tempo que vai tentar “abordar outros géneros musicais que possam servir um público diversificado e torná-los, quem sabe, em público frequente do teatro. Definitivamente subimos ao palco para criar arte, mas o objetivo final é que este momento seja uma viagem pelo coração, pela imaginação e sensibilidade do público soberano”, remata a cantora.
Acreditando que o TNSC não fica, ou não tem de ficar, atrás de outras salas que além-fronteiras conquistam públicos e corações, Elisabete Matos explica que se conseguir implementar todos os objetivos a que se propõe, e que devem começar a ser trabalhados já a partir do dia 1 de outubro, quando assume formalmente o cargo, “evidentemente poderemos não só competir, como colaborar com outros palcos” internacionais.
Com o início da temporada lírica 2019/2020 marcada também para o mês de outubro, as peças que inicialmente serão apresentadas no palco do TNSC ainda são responsabilidade do anterior diretor artístico, Patrick Dickie. Só depois de estudar atentamente as escolhas do seu antecessor, Elisabete Matos se pronunciará sobre eventuais alterações, garante à EXAME. Assim, o pontapé de saída da temporada será dado, como previsto, por Giuseppe Verdi e diversas récitas de
A Força do Destino, e em novembro dá-se espaço a Christoph Willibald Gluck e à sua famosa Orfeu e Eurídice, para celebrar o centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen. Se nada se alterar entretanto, janeiro, fevereiro e março serão os meses em que o palco do São Carlos apresenta obras de Donizetti e Wagner.
Assumindo que nunca teve a ambição de dirigir o TNSC – “não colocaria a vontade de dirigir o Teatro Nacional de São Carlos como uma ambição. Sou música e amo a música, exercendo a profissão de cantora há cerca de 30 anos, por todos os teatros do mundo” –, assume que estará totalmente concentrada em alterar a estratégia daquela organização. E espera que o facto de ser cantora a ajude a alcançar os resultados pretendidos. “Penso conhecer bem a nossa realidade e os meandros desta casa, podendo através de uma relação de proximidade com todos os seus elementos criar um clima de trabalho numa única direção: a qualidade, a oportunidade e a versatilidade que nos encaminhará a ser de novo um teatro na rota dos teatros europeus.”
Este será “um trabalho difícil e exigente, de grande responsabilidade, mas também o foram e continuarão a ser 30 anos de serviço à música”, relativiza antes de sublinhar que sempre trabalhou “pela arte”, e que é por ela que continuará a fazê-lo, esperando que a dignificação da música, dos artistas e de todos os envolvidos no TNSC seja a grande marca da sua direção. Recorde-se que, além de uma referência para a ópera nacional, o TNSC é ainda casa da Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida pela maestrina Joana Carneiro desde janeiro de 2014.
Este artigo foi publicado inicialmente na edição de outubro de 2019 da revista EXAME.