Alguns traders de grandes bancos internacionais gabavam-se de que era extraordinário o lucro que se poderia ter a manipular a Libor, a Eonia ou a Euribor. Estas taxas a que os bancos emprestam dinheiro entre si já foram consideradas como os números mais importantes no mundo das Finanças. E ditam o custo de contratos de crédito, incluindo de empréstimos à habitação, de derivados financeiros e a rentabilidade de produtos de investimento.
Apesar de serem a referência para contratos de centenas de biliões de euros, estas taxas são geralmente calculadas por entidades privadas com base apenas nos dados fornecidos por pouco mais que uma dezena de grandes bancos. Algumas dessas instituições viram nesta forma de definir o valor destas taxas a oportunidade perfeita para lucrar com a sua manipulação. Após esses escândalos, os reguladores mundiais tiveram de intervir.
Na Zona Euro, o Banco Central Europeu teve mesmo de criar e gerir uma nova taxa para garantir que um dos números mais importantes do mundo financeiro é calculado de forma transparente e à prova de manipulações.A sigla dessa nova taxa é €STR (Euro Short-Term Rate, taxa euro de curto prazo) e a primeira cotação será divulgada hoje. Vai substituir a Eonia, taxa que serve de referência a contratos de derivados no valor de cerca de 22 biliões (milhões de milhões) de euros. A €STR poderá também servir como um plano B caso algo corra mal com a reforma das Euribor.
O cartel da Euribor, Eonia e Libor
Apesar do montante gigantesco indexado a esta taxa, o valor final da Eonia era construído a partir da informação dada por apenas 12 a 15 bancos e calculado por uma entidade privada, a EMMI (Instituto Europeu dos Mercados Monetários), responsável também pela divulgação dos dados da Euribor. Fazem parte dessa entidade, as associações bancárias dos países da União Europeia.
Um investigação da Comissão Europeia sobre a atuação de entidades financeiras nos mercados de taxas de juro concluiu que “houve um cartel entre setembro de 2005 e maio de 2008, a envolver um total de sete bancos (Barclays, Crédit Agricole, HSBC, JPMorgan Chase, Deutsche Bank, Royal Bank of Scotland e Société Générale)”. No final de 2016, foi aplicada uma multa de 485 milhões de euros aos três bancos que não quiseram chegar a acordo com as autoridades (Crédit Agricole, HSBC e JPMorgan Chase).
A atuação não se ficou nas taxas de juro da zona euro. Também no mercado londrino a taxa Libor, que serve de referência a derivados financeiros no valor de centenas de triliões de euros, foi manipulada. Neste caso, os efeitos são ainda mais graves, já que a Libor é uma referência para contratos de derivados feitos um pouco por todo o mundo. “É incrível como a manipulação da Libor pode fazer com se ganhe tanto dinheiro ou se perca caso se esteja do lado oposto. Isto agora é um cartel em Londres”, dizia um trader do Royal Bank of Scotland em mensagens num grupo com responsáveis de outros grandes bancos. Esses elementos serviram de prova a processos judiciais.
O regulador americano, por exemplo, aplicou multas pesadas a bancos como o Barclays, o Société Générale, o Royal Bank of Scotland e o Deutsche Bank. As penalizações excederam os nove mil milhões de dólares.
Construir taxas de referência à prova de manipulação
Afinal, as taxas que influenciam desde a prestação do crédito à habitação até ao mais complexo derivado financeiro eram facilmente manipuláveis e controladas quase a bel-prazer por pouco mais que meia dúzia de bancos. Os receios das consequências que isso poderia ter na confiança de consumidores, empresas e na estabilidade financeira levaram os líderes do G20 a pedir ao Conselho de Estabilidade Financeira que analisasse o problema e emitisse recomendações. A proposta de reforma das taxas de juro chegou em 2014.
Um pouco por todo o mundo, as autoridades estão a reformar as taxas do mercado monetário. Na Zona Euro, o BCE teve mesmo de intervir e não deixar que a taxa de juro de referência fosse calculada e divulgada por uma entidade privada. Com os escândalos que ocorreram neste mercado, são cada vez menos os bancos que querem fornecer dados de forma voluntária a entidades como a EMMI. Sem um grande número de bancos a dar informação, as taxas arriscam não ter uma correspondência ao verdadeiro custo do dinheiro e são mais facilmente manipuláveis.
No entanto, o BCE, que supervisiona os bancos da zona euro, tem acesso a dados sobre qual o verdadeiro valor de cada transação no mercado interbancário. A amostra de bancos para calcular a taxa de curto prazo passa a ser de 50 instituições (ainda não está nenhum banco português incluído, mas o objetivo é que isso venha a acontecer). E em vez de ser calculada com base nas indicações dadas pelos bancos, serão utilizados as transações realmente feitas entre os bancos, de forma a prevenir o risco de manipulação. Entram também nas contas as operações feitas com fundos de pensões ou seguradoras.
“A €STR é mais abrangente do que a EONIA, a atual taxa de juro de referência da área do euro calculada apenas com base em operações de cedência de fundos dos bancos a outros bancos pelo prazo de um dia (útil). Além disso, a €STR tem por base um maior número de bancos. Sendo mais abrangente em termos de operações e contrapartes, esta taxa permite fornecer uma indicação mais fiável do custo dos empréstimos sem garantia na área do euro pelo prazo de um dia (útil)”, explica o Banco de Portugal.
Euribor nas mãos de privados. Mas há plano B caso algo corra mal
A Eonia deixará de existir em 2022. E, a partir de agora, o seu valor terá como referência o da €STR, acrescido de 0,085%. A Libor também tem os dias contados e as autoridades de vários países estudam a forma de a substituir. Mas se no caso da €STR, o BCE chamou a si essa responsabilidade, na Euribor mantém essa tarefa a cargo dos privados da EMMI.
O EMMI já recebeu autorização do regulador dos mercados da Bélgica para continuar a administrar a Euribor. Mas a forma de cálculo vai deixar de ser baseada apenas no valor a que os bancos indicam àquela entidade qual o valor a que estão dispostos a emprestar dinheiro a outros bancos. Agora o valor final das taxas terá de ter como base, sempre que possível, transações efetivas, tal como exigido pelas novas regulamentações europeias. E além de bancos, entram também nas contas os valores da cedência ou obtenção de empréstimos a fundos, seguradoras, bancos centrais ou estados.
Esta nova metodologia tem vindo a ser implementada de forma faseada nos últimos meses. Deverá ficar totalmente operacional até final do ano e não se esperam impactos no valor das Euribor. Mas os dados continuarão a ser fornecidos por um painel reduzido de bancos. Se a €STR será calculada com base nas informações verificadas pelo BCE em 50 bancos, a Euribor continuará a ser definida apenas com os dados de 18 bancos.
Caso o EMMI não consiga, no futuro, ter elementos suficientes para calcular a taxa ou se esta não cumprir com os requisitos mais exigentes, a Euribor poderá deixar de existir. Nesse caso, a solução de recurso seria usar a €STR. Mas, para já, apesar de todas estas mexidas e reformas, não se antecipam mudanças para os detentores de produtos indexados à Euribor.