Em agosto de 2007, a economia mundial ainda se mostrava de boa saúde. Os países cresciam a bom ritmo e o dinheiro multiplicava-se através das redes de computadores a uma velocidade estonteante. Era fácil, e barato, fazer milhões. As taxas de juro eram baixas, os bancos ofereciam empréstimos com condições irresistíveis e os cidadãos, ávidos de consumo, embarcavam na bebedeira coletiva e compravam casas e mais casas para habitação permanente, para férias, para investimento. Os bancos não largavam o filão e até os governos apoiavam a construção de imóveis, geradora de emprego e de receitas fiscais. A procura era tanta que os preços começaram a subir, insuflando a bolha.
Quando a Banca e os banqueiros perceberam que a compra e a venda de créditos hipotecários podia render infinitamente mais do que os juros cobrados aos clientes, comprimiram em pacotes uma amálgama de títulos de crédito – hipotecários, ao consumo, de cartões de crédito – e criaram um novo instrumento financeiro (CDO ou Collaterized Debt Obligation) capaz de revolucionar o mercado de capitais. A partir dos Estados Unidos da América, onde o fenómeno teve início, começaram a vender os seus ativos aos quatro cantos do globo. Durante algum tempo, as coisas correram bem e os lucros foram grandes, até que um dia tudo se complicou, a bolha rebentou e o resto da história da crise do subprime é conhecida.
Do subprime à crise financeira
As ondas de choque chegaram rapidamente à Europa. A desconfiança alastrou e o pânico instalou-se nos mercados. Num momento de aperto, os bancos deixaram de emprestar dinheiro uns aos outros. A 9 de setembro de 2007, o banco Northern Rock, com sede em Newcastle upon Tyne, no Nordeste de Inglaterra, dirigiu um pedido de ajuda ao Banco de Inglaterra. A braços com uma corrida aos depósitos, as suas ações desvalorizam 31% num único dia. Semanas antes, o Banco Central Europeu (BCE) efetuara uma injeção de liquidez de emergência no mercado, no valor de €95 mil milhões, para acalmar os investidores. Do outro lado do Atlântico, o presidente da Reserva Federal (Fed), Ben Bernanke, especialista em estudos sobre a Grande Depressão, decretara uma descida das taxas de juro de 5,25% para 4,75%, naquele que seria o primeiro de uma série de movimentos para conduzir os juros para valores negativos (acompanhados de um programa em massa de compra de ativos, destinado
a estimular a economia).
Em Inglaterra, o Northern Rock é nacionalizado daí a meses, a 17 de fevereiro do ano seguinte. Nos EUA, o banco de investimento Bear Stearns colapsa, em meados de março, e acaba por ser vendido. A crise instala-se no sistema financeiro, sem retorno aparente. Os bancos tinham emprestado dinheiro a mais e com garantias a menos; esses créditos foram revendidos e estavam agora espalhados pelo mundo inteiro; os bancos centrais, responsáveis por regular e supervisionar o setor, estavam desatentos e abrandaram a vigilância. Como num filme, os acontecimentos precipitavam-se em direção ao clímax da narrativa.
No dia 7 de setembro, Washington resgata as agências de crédito hipotecário Fannie Mae e Freddie Mac. No dia 15, dá-se o acontecimento mais marcante da crise, e a razão para que, dez anos depois, estejamos a escrever sobre ela: a falência do centenário banco de investimento Lehman Brothers, o quarto maior dos EUA, que as autoridades norte-americanas deixaram falir aparentemente para “dar uma lição aos mercados”. A dívida do banco era superior a 613 mil milhões de dólares (€432 mil milhões, ao câmbio da altura, mais de duas vezes o PIB português).
Uma certa ordem mundial, tal como a conhecíamos, estava a terminar. A vertigem era total.
O mercado do crédito, já em retração, travava a fundo. Empresas e famílias entravam em incumprimento, e os balanços dos bancos inchavam com o crédito malparado. Os bens dados como garantia dos empréstimos desvalorizavam-se ao ponto de terem de ser eliminados das contas das instituições financeiras, forçadas a aumentar o capital.
Por todo o lado, as bolsas caem, as empresas afundam-se, os consumidores retraem-se. As autoridades norte-americanas recorrem ao dinheiro dos contribuintes para salvarem os bancos que são “too big to fail”. Escassas 24 horas após o colapso do Lehman Brothers, a Reserva Federal é obrigada a resgatar a AIG, a maior seguradora do mundo. Outro grande banco de investimento, o Merrill Lynch, é vendido ao Bank of America para evitar a derrocada.
Mas o pior ainda estava para vir.
Às primeiras falências seguem-se muitas outras, a um ritmo frenético. Para conter os danos, o Tesouro norte-americano irá injetar mais de 700 mil milhões de dólares (cerca de €500 mil milhões, ao câmbio da altura) em cerca de 90 instituições financeiras, entre setembro de 2008 e março de 2012. O Programa de Auxílio para Ativos Problemáticos, desenhado por Henry “Hank” Paulson (ex-presidente da Goldman Sachs, nomeado secretário do Tesouro pelo antigo Presidente George W. Bush), foi transformado numa poderosa injeção de dinheiro público, para “limpar” o lixo tóxico que os bancos acumularam em operações de alto risco.
Na Europa, o dinheiro dos contribuintes também viria a ser usado para deitar a mão aos bancos, através de ajudas financeiras ou da nacionalização dos seus ativos, em países como a Islândia (onde os três maiores bancos faliram), a Irlanda e o Reino Unido, mas também em França e na Alemanha. A Irlanda tinha dado uma “garantia integral, sem limites”, ao seu sistema financeiro, atirando o défice público para uns estratosféricos 32% do PIB…
Em Portugal, o ex-governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, reúne-se com os cinco maiores banqueiros e mostra-se alarmado com “a situação de dois pequenos bancos”, cujas fragilidades são potenciadas pelas ondas de choque da crise internacional. Todos na sala percebem a mensagem. O BPN é nacionalizado a 2 de novembro e o BPP é intervencionado a 1 de dezembro desse ano (ver texto sobre o colapso de bancos em Portugal). Porém, os outros bancos também já não estavam de boa saúde. O BES e o Banif colapsaram desde então, o BPI e o BCP recorreram às ajudas públicas, a CGD foi recapitalizada.
Numa conversa com a EXAME, o economista Vítor Bento recorda o que esteve na origem do problema: “O excesso de poupança, criado em certos países, foi transmitido aos mercados financeiros e absorvido por outros, através de níveis elevados e irresponsáveis de endividamento. Os bancos dos países credores emprestaram muito dinheiro aos bancos dos países devedores, que ficaram mais expostos aos créditos finais junto dos clientes. Quando as coisas se complicaram, os bancos credores retiraram o dinheiro e os bancos devedores ficaram a braços com os devedores finais, muitos deles incapazes de pagar. Isto ajuda a perceber porque os países devedores tiveram mais problemas no sistema bancário do que os outros.”
Com efeito, a exposição dos bancos do Norte da Europa à periferia era enorme. Os bancos franceses e alemães tinham cerca de 1,6 biliões de dólares em ativos aplicados no sistema financeiro de Grécia, Itália, Espanha, Irlanda e Portugal. Temendo o risco de contágio, os bancos do Norte, auxiliados pelos respetivos governos, retiraram rapidamente o seu dinheiro da periferia. Entre 2009 e 2013, reduziram quase para metade a sua exposição a Portugal, de 240 mil milhões para cerca de 130 mil milhões de dólares. O ajustamento foi de tal forma violento que os bancos locais reagiram, cortando no crédito às empresas, de forma igualmente violenta.
Da crise financeira à crise da dívida
Costuma dizer-se que o setor financeiro está para a economia como o sistema circulatório está para o corpo humano. É ele que irriga os tecidos. Sem liquidez, a economia mundial começa a definhar. Os bancos, afetados pela desconfiança, veem-se forçados a recorrer à liquidez do BCE para manterem as portas abertas. As empresas acusam dificuldades de tesouraria e retraem o investimento, cortam custos e despedem pessoas. Os consumidores, sem
emprego, sem poupanças e sem confiança no futuro, compram menos. A produção diminui, a receita dos impostos cai e a economia desacelera. Nos EUA, o PIB recua 0,3% no final de 2008. Na Zona Euro, ainda cresce 0,4%, mas ameaça seguir o mesmo caminho.
O ano de 2009 será o da recessão mundial mas também o da resposta global. Perante a ameaça, os governos são incentivados a pegar em dinheiro que não têm e a atirá-lo para cima do problema, através do resgate dos bancos em dificuldades e do lançamento de programas de estímulo à economia. A crise financeira transforma-se numa crise das dívidas públicas e alastra à economia real, criando um monstruoso exército de vítimas que, nos anos seguintes, não voltará a terum emprego. A Europa fica ainda mais virada do avesso, quando uma insolvente Grécia se torna a primeira vítima da recessão, em maio de 2010 (seguiram-se os resgates da Irlanda, de Portugal, do Chipre e da Banca, em Espanha), provocando uma crise de desconfiança sobre a dívida soberana da Zona Euro e a própria moeda única.
Nos dois lados do Atlântico, a crise teve praticamente a mesma dimensão, com a economia a encolher cerca de 5% entre o final de 2007 e o início de 2009. Contudo, a Zona Euro registou novo recuo entre 2011 e 2013, enquanto os EUA mantiveram a trajetória da recuperação. No final de 2015, o PIB da Zona Euro ainda não tinha voltado ao valor de 2007, mas já o PIB dos EUA crescia mais de 10% no mesmo intervalo. Uma análise do economista francês Thomas Piketty mostra que, enquanto os EUA adotaram uma relativa flexibilidade orçamental, a Zona Euro tentou reduzir os défices orçamentais muito depressa, com medidas de austeridade. O efeito foi o contrário do que era esperado: os défices dispararam ainda mais e as dívidas públicas ficaram fora de controlo.
Em 2008, Portugal ainda era um País diferente do que viria a ser nos anos seguintes. A dívida pública atingia 71,7% do PIB, pouco mais de metade do valor atual. No entanto, as ondas de choque arrastaram o País para o fundo. Os bancos portugueses, sem acesso a liquidez e afogados em títulos de dívida pública nacional, pressionaram o poder político, forçando a vinda da Troika. Ainda hoje vivemos as consequências da “doença” e dessa “cura”.