Enchem páginas de jornal e passam na televisão à hora dos programas familiares. “Sente zumbidos nos ouvidos? Você esforça-se para ouvir as conversas nos seus encontros e festas?” Pululam nos anúncios do Google e chegam ao telemóvel em chamadas de telemarketing: “Gostaria de melhorar drasticamente a sua audição?” E até entram pela caixa de correio adentro a acenar com amostras grátis. “Poupe uma fortuna!” Soa-lhe familiar? São exemplos da estratégia agressiva de venda de amplificadores e aparelhos auditivos, atrás da qual se esconde um apetecível negócio de milhões de euros. Em Portugal, é dominado sobretudo por multinacionais, com cada vez mais pontos de contacto e a que parece não faltar potencial para crescer.
A impulsionar este mercado está não só a silver economy, com o envelhecimento crescente da população, mas também a cada vez maior sensibilização social para os problemas auditivos. O avanço tecnológico reduziu o tamanho dos aparelhos auditivos,e o seu impacto estético potenciou a conetividade, melhorou a eficácia e o preço. Hoje, pouco maiores são do que um feijão, ficam praticamente invisíveis dentro do ouvido, ligam-se sem fios a aplicações do telemóvel e à televisão e vêm equipados com soluções de Inteligência Artificial ou baterias recarregáveis.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 15% da população global sofra de algum grau de perda auditiva, com uma prevalência cinco vezes superior em pessoas com mais de 65 anos. Em Portugal, o número de indivíduos com algum tipo de perda auditiva significativa rondará um milhão. Nos seniores, afetará três em cada cinco pessoas, segundo dados do setor. Além do fator demográfico, também o excesso de ruído, a exposição a substâncias químicas, infeções e doenças são apontadas pela OMS como principais causas de diminuição ou de perda auditiva.
Em 2017, as empresas com as redes próprias de retalho mais expressivas destes aparelhos e acessórios faturaram no total cerca de €80 milhões em Portugal, e quase todas viram o negócio crescer em termos homólogos. Só a Hidden Hearing Portugal, dona da Acústica Médica, vendeu €26 milhões, sendo também a que mais lucrou (€2 milhões), segundo dados da Informa D&B. A operação portuguesa, que em 2019 completa 25 anos, destaca-se entre as que mais têm crescido no universo da casa-mãe, a multinacional dinamarquesa William Demant, sobretudo durante e depois dos anos da crise de 2007-2008.
“Foi quando nos dotámos dos meios próprios para a combater e expandimos a rede de lojas e a visibilidade”, explica Fernando Ferreira, diretor-geral da empresa, à EXAME. Os fortes investimentos em comunicação e na criação de facilidades, como a concessão de crédito sem juros para a compra de aparelhos, contribuíram para taxas de crescimento de dois dígitos, ainda visíveis em 2015, quando começaram a abrandar. Já os lucros não acompanharam a subida e, nos dois anos seguintes, ficaram reduzidos a metade.
Este foi, justifica o responsável, o custo de não repercutir, no já de si elevado preço dos aparelhos, o aumento dos gastos com inovação e melhoria de qualidade dos serviços. Segundo estimativas apresentadas à Autoridade da Concorrência, o preço médio do pacote de aparelhos auditivos dos diversos retalhistas ativos em Portugal rondará os €1 300 a €1 400. “O mercado não tem elasticidade para absorver estes aumentos de preço, e uma estrutura grande não mantém sempre estes ritmos de crescimento”, adiciona.
Inês Capinha aponta para valores por aparelho em torno dos €1 000, dependendo do nível de perda auditiva e do estilo de vida do cliente, e antevê que haja tendencialmente “mais gente a precisar e a poder comprar”. Com os seus dois irmãos, Inês está à frente da Casa Sonotone. São a quarta geração desta empresa familiar com um historial longo. Há 84 anos o seu bisavô, Raul Augusto dos Santos, tendo perdido a audição na idade adulta, comprou um aparelho em Espanha. Propôs à norte-americana Sonotone – the Hearing House vender os seus dispositivos em Portugal. E assim nasceu a empresa.
Hoje, gere mais de 30 mil clientes ativos, fechou o ano passado a crescer mais de 10% e espera que 2019 traga um crescimento ainda maior do negócio (15%) e que o número de pontos de venda chegue aos 400. O investimento, que em 2018 superou €50 mil, deverá ser ainda maior este ano, numa estratégia de proximidade com o cliente, preços e qualidade competitivos, além de apoio técnico. “O mercado está em expansão. As pessoas começam a precisar cada vez mais cedo de aparelhos, devido aos novos estilos de vida e à exposição ao ruído”, justifica.
Terreno fértil para compras
A nível internacional, o panorama do setor para os próximos anos também parece promissor. Segundo previsões da MarketsandMarkets, o mercado global de aparelhos
e implantes de audição deverá crescer a um ritmo anual de 7%, para atingir os $9,78 mil milhões (€8,6 mil milhões) em 2022. Previsivelmente, o maior crescimento virá da população adulta, em especial a sénior, com impacto particular no mercado europeu, palco de várias operações de fusão e de aquisição nos últimos anos.
Em Portugal, essa transformação estrutural reduziu o cenário a uma mão-cheia de retalhistas e concentrou cerca de 95% do mercado em quatro grandes redes: Minisom/Amplifon/GAES, Acústica Médica, Widex e Audição Activa. No centro deste movimento, esteve a italiana Amplifon que, em fevereiro de 2017, comprou à Audionova o seu negócio em Portugal, a Minisom e, em agosto do ano seguinte, absorveu a espanhola GAES, redes que combinavam um total de 100 lojas no País, na altura da aquisição. Na compra da GAES, a companhia aplicou €528 milhões, enquanto a aquisição da Minisom ficou avaliada em €16 milhões.
Com cerca de uma centena de centros auditivos e quase 70 mil clientes, a Acústica Médica ficou à margem das fusões e das aquisições e exclui participar em futuras compras. Não antecipa que as mudanças alterem o domínio do mercado ou os preços, mas também não vê margem para mais operações. “Nunca se sabe se foram fusões premeditadas ou consequência de outra coisa maior. Como me dizia com graça alguém que estava neste setor: ‘Ainda não percebi se fui comprado ou vendido, várias vezes. Se houve interesse em comprar ou em despachar e vender’”, diz Fernando Ferreira. No compra-e-vende, também a Casa Sonotone foi abordada, sempre com resposta negativa. “Recebemos mais do que uma proposta de compra, mas todas foram declinadas.” A ligação familiar e os laços criados com os clientes tornam “impossível vendê-la”, justifica Inês Capinha.
A EXAME procurou perceber como o crescimento orgânico e o movimento de compras e de fusões impactou outras redes a nível nacional, mas a discrição parece ser palavra de ordem noutras empresas do setor. Contactada insistentemente, a Audição Activa – sediada em Faro e com uma forte presença online – nunca respondeu. A Widex disse não ser “oportuno” conceder a entrevista. As questões enviadas à Amplifon (que comprou a Minisom e a GAES) ficaram sem resposta até à hora de fecho desta edição, apesar de vários contactos.
Obrigar a levantar do sofá
Com uma perda de capacidade lenta e progressiva ao longo da vida adulta, pode demorar uma década desde que a pessoa se apercebe da dificuldade em ouvir até ao momento em que decide colocar um dispositivo, com prejuízo do conforto e da solução estética. “Os aparelhos auditivos não são feitos para as pessoas ouvirem melhor ou mais alto. É desagradável deixar de ouvir a campainha da porta ou o relógio da sala, mas o importante é a comunicação humana”, argumenta Fernando Ferreira. Daí a abordagem mais agressiva das marcas através de publicidade e de ferramentas online que – assegura – não pretende vender aparelhos, mas “fazer as pessoas levantarem-se do sofá” e procurar aconselhamento.
Para a Acústica Médica, o ano que passou voltou a ser de crescimento. Em 2019, o plano de expansão desta rede prevê um investimento mínimo de €1 milhão, incluindo na criação de 10 a 12 novas lojas e cerca de duas dezenas de novos empregos. “O investimento está a crescer, não só na comunicação como na distribuição”, afirma Fernando Ferreira, que considera que o mercado ainda está muito longe da saturação. “É preciso investir, investir. O importante é estar o mais perto possível das pessoas.”
Além da proximidade, outra tendência que marca este mercado é a da verticalização, com fabricantes a integrarem distribuição e retalho, algo que Fernando Ferreira espera que se acentue nos próximos anos. Tal como a William Demant, que detém a Acústica Médica e produz os aparelhos auditivos Oticon, a Sonova, com 3 500 lojas no mundo, gere marcas de aparelhos como a Phonak ou a Unitron. A Widex, número dois em faturação, vende dispositivos que fabrica sob marca própria mas poderá em breve tirar partido da capacidade de produção da concorrente alemã Sivantos, se chegar a bom porto o plano de fusão com a sucessora do negócio de aparelhos auditivos da Siemens. Com a compra do grupo GAES, a Amplifon trouxe no carrinho a Microson, fabricante de aparelhos com sede em Barcelona. Já a dinamarquesa GN Store Nord seguiu uma estratégia diferente que passa por parcerias com o retalho especializado em vez de aquisições de lojas.
Entretanto, outras redes de retalho especializado ligado à saúde, como a MaisÓptica ou o Grupótico, também incorporaram estas soluções nos seus serviços, demonstrando como um setor marcado pelo estigma e que viveu “às escondidas” durante gerações está a tornar-se presença comum em centros comerciais e em lojas de rés do chão. Fernando Ferreira nota a transformação: “Até há 10, 15 anos, estas lojas estavam num terceiro andar, com uma placa na porta.” Ainda assim, nota o cuidado que é preciso ter com a privacidade. “Não é agradável eu estar sentado na sala de espera da loja dos aparelhos para surdos – é assim que é visto. Os óculos não são para cegos, mas os aparelhos auditivos são para surdos”, concretiza.
Inês Capinha espera que o facto de cada vez mais pessoas serem afetadas pela perda auditiva venha a apagar os tabus que ainda existam sobre o uso destes dispositivos: “Um estudo recente indica que apenas 10% das pessoas que precisam usam aparelho. Isto tem um grande impacto na qualidade de vida; a perda auditiva sem tratamento leva ao isolamento e pode até resultar numa esperança de vida mais curta”, conclui a sócia-gerente da Casa Sonotone.
Notícia publicada originalmente na edição de fevereiro de 2019 da EXAME