Transformar ativos considerados tóxicos em mais-valia, começar com um capital social de 50 mil euros, zero liquidez, uma dívida garantida pelo Estado no valor de 746 milhões de euros e um quadro de recursos humanos com mais de 500 pessoas. Em traços gerais, foi este o cenário apresentado ao conselho de administração da Oitante – inicialmente Naviget –, a entidade criada para absorver os ativos do extinto Banif com os quais o Santander Totta não quis ficar em dezembro de 2015, aquando da resolução do banco fundado por Horácio Roque. O mandato foi muito claro: “Desinvestir, maximizando o valor e minimizando o risco”, resume à EXAME o presidente da instituição desde a sua criação, Miguel Artiaga Barbosa. Em dois anos e meio, cerca de 30% da dívida já foi paga, mais de 250 milhões de euros foram arrecadados com a venda de imóveis, os lucros fixaram-se nos 30 milhões de euros e os recursos humanos passaram de 512 a 80. Muitas pessoas foram absorvidas pelo Santander Totta, outras passaram para a Altamira – o servicer com o qual a Oitante fez um contrato de prestação de serviços – e outras ainda saíram mediante um dos dois programas de rescisão amigável que, entretanto, já foram implementados pela entidade. A gestão dos recursos humanos é assumida pelo gestor como uma das tarefas mais difíceis que enfrentou desde que assumiu o cargo. “Conseguimos reduzir logo [o número de pessoal] de 512 para 450 com transferências para o Santander, mas a partir daí foi preciso começar a gerir as expectativas, porque num dia trabalhavam num banco e no outro eram parte de uma sociedade gestora de ativos. E gerir as expectativas foi difícil.”
Aos 47 anos, Artiaga Barbosa é conhecido por ser um gestor focado, pragmático e exigente. Passou pelo Crédit Suisse e pela Goldman Sachs, nas quais desempenhou funções na área de gestão de risco, e foi ainda assessor de Maria Luís Albuquerque quando esta ocupava o cargo de ministra das Finanças. Chegou também a ser representante do governo nas administrações do BPI e do próprio Banif, com funções não administrativas. “Sou basco e anglo-saxónico”, atira, com um dos poucos sorrisos que fez durante a conversa de cerca de uma hora com a EXAME, na Pousada de Lisboa. “O meu mandato é muito claro e as pessoas sabem como eu sou. O conselho de administração está muito, muito, focado em encontrar resultados em equipa, e em que as pessoas sejam impactadas por esses resultados”, resume, quando questionado sobre como encarou o desafio de passar para a gestão executiva.
E recorda as principais dificuldades que enfrentou ao encabeçar a liderança da primeira sociedade-veículo criada já em conformidade com as regras da Comissão Europeia para as resoluções bancárias – a resolução do BES, um ano e meio antes, foi a primeira da Europa e as regras aplicadas foram praticamente feitas à medida dos acontecimentos. “Não podemos esquecer-nos de que a resolução foi uma surpresa total para um conjunto de pessoas”, começa por dizer. “Numa fase inicial, além do desinvestimento, foi necessário assegurar a transição dos ativos para o Santander. Houve um período de migração que foi negociado, através de um contrato de prestação de serviços que tinha um prazo de dois anos e que acabou por ser executado em nove meses, fruto do trabalho da equipa do Banif”, explica. É que a atividade bancária do Banif passou para o Santander Totta sem que tivesse havido qualquer interrupção na prestação de serviços, o que implicou um esforço adicional de parte a parte para garantir que toda a informação sobre clientes, créditos e afins fosse migrada sem problemas para a nova instituição. “Foi uma parte muito crítica nesse ano para assegurar receita, porque não tínhamos nenhuma”, salienta o responsável enquanto se recosta na cadeira e elogia o trabalho de todas as equipas que trataram deste processo e que “vestiram a camisola” desde o primeiro dia. Para isso, esclarece, contribuiu decisivamente o trabalho desenvolvido por Paulo Boaventura, membro do CA, e sobretudo por Sérgio Batista, antigo diretor de Recursos Humanos do Banif e que integrou a administração da Oitante. “Criámos entretanto uma estrutura em paralelo, reorganizámos as 22 direções que tinham vindo do banco em sete departamentos que tinham funções para servir a Oitante e funções para servir o Santander.” Houve ainda que preparar os ativos para serem vendidos através de todas as diligências necessárias e esperar até junho de 2016 para que o perímetro da Oitante ficasse definitivamente fechado, uma vez que era preciso passar todos os imóveis e NPL (non performing loans ou crédito malparado) para o nome do novo veículo, por exemplo.
Tudo isto enquanto a Direção-Geral da Concorrência, da União Europeia, recordava que se as metas não fossem cumpridas, a sociedade entraria em liquidação imediata. Uma informação que o conselho de administração decidiu não transmitir aos funcionários para não causar qualquer tipo de pânico. “Executámos o cumprimento dessas metas” e desde março de 2016 “conseguimos ter condições para nos posicionarmos no mercado de forma diferente, e o grau de pressão que tínhamos de todos os stakeholders diminuiu”. Artiaga Barbosa admite que o facto de ter pouca exposição pública o ajudou, sobretudo no início de vida da Oitante. Explica que “executar primeiro e comunicar depois” foi uma opção consciente que a administração tomou, desde o início, para evitar ruído em tempos conturbados, e também para conseguir mostrar aos trabalhadores que o seu principal objetivo era cumprir objetivos e não mostrar que podia fazê-lo.
Contribuintes não serão chamados
A partir daí, garante o responsável, o trabalho tornou-se um pouco mais fácil. Os ativos que integram a Oitante foram avaliados, considerando um haircut na ordem dos 66%, como mandam as regras da Comissão Europeia, pelo que é possível maximizar-lhes o valor, sobretudo no que se refere a ativos imobiliários. “A Oitante era composta por, essencialmente, três grandes grupos de ativos: participações financeiras, imóveis e NPL, e os fundos de restruturação e empréstimos que as subsidiárias tinham. A Oitante tem muitos imóveis: alguns diretamente no seu balanço e outros através dos fundos de investimento onde é participante”, esclarece. “Vendemos, ao longo destes praticamente três anos, cerca de
270 milhões de euros de ativos de um património inicial de 1,3 mil milhões de euros.
O que procuramos é sempre maximizar o valor dos ativos”, e isso tem estado a ser feito, garante ainda quando questionado sobre como se consegue então transformar uma sociedade veículo de ativos considerados tóxicos em dinheiro real. “A única coisa que posso dizer-lhe é que, até agora, o valor de venda dos ativos da Oitante tem sido, em média, acima do seu fair value. Em termos globais, o objetivo está a ser cumprido e esse objetivo é muito claro: repagar a dívida” de 746 milhões de euros com a qual a Oitante foi financiada aquando da sua constituição. “Essa dívida tem uma contragarantia do Estado. Até hoje, não entrou um único cêntimo do Estado [na Oitante] e o objetivo é que não entre” e, em última instância, que os contribuintes não voltem a ser penalizados por esta resolução. Recorde-se que só a resolução do Banif já custou aos cofres públicos 2 255 milhões de euros. Apesar de não querer comprometer-se com datas, Artiaga Barbosa acredita que até ao princípio de 2021 vai ser possível repagar a totalidade da dívida, o que poderá levar entretanto à distribuição de dividendos. Mas sem garantias. “Acho que não é prudente estar a anunciar o pagamento de dividendos em 2022. Ainda faltam quatro anos! O principal objetivo agora é acelerar o pagamento da dívida. Assim que uma parte substancial desses ativos esteja paga, é natural que comecem a abrir-se perspetivas…”, afirma, no entanto, com um novo sorriso a querer nascer-lhe no rosto.
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“É mais difícil gerir pessoas do que dinheiro”
O responsável da Oitante fala dos maiores desafios e aprendizagens ao fim de quase três anos à frente da gestora de ativos.
Qual foi o seu maior desafio, até agora?
O preview da incerteza do primeiro ano e a gestão das pessoas. É muito mais difícil gerir pessoas do que gerir dinheiro.
O primeiro ano foi muito complicado, também porque a Oitante era vista como um produto híbrido. Ninguém queria ter muita ligação àquele veículo, talvez por experiências passadas.
Houve um momento crítico durante o primeiro ano, nessa gestão de pessoas…
A partir do momento em que o contrato com o Santander terminou, em setembro [de 2016], início de outubro, ficámos com 200 pessoas que não tinham ocupação…Preocupámo-nos desde sempre com os RH e eu tinha uma visão forte: achava que a Oitante podia ser uma sociedade gestora de ativos com um cariz muito vincado na recuperação. E nessa senda, sempre transmiti que a nossa prioridade seria maximizar não só a venda de ativos mas também as transições de pessoas. Foi aí que começou a surgir a ideia de que a Oitante poderia fazer surgir um novo servicer em Portugal. Essa ideia começou a ganhar peso a partir de fevereiro [de 2017]. Esse primeiro trimestre foi muito parecido com agosto de 2008, quando a crise começou.
Em que sentido?
Foi um trimestre em que os investidores desapareceram do mercado porque, com a alteração do risco político em Portugal, havia sérias dúvidas acerca do País. Portanto, uma transação de 1 600 milhões de euros, em novembro, para cuja totalidade havia cinco investidores interessados (a maior operação de NPL que havia no mercado em paralelo com a venda do Banif)… de repente tudo desapareceu. Eu antecipei que isso pudesse acontecer num segmento muito particular dessa carteira e fui mantendo um conjunto de investidores para garantir que tinha, pelo menos, capacidade para executar uma parte dessa transação. Foi isso que permitiu fazer o ponto de viragem com a Autoridade da Concorrência.
Falou de um novo servicer. Qual a importância do contrato fechado com a Altamira em julho?
Foi um contrato absolutamente crítico, porque permitiu a passagem de 140 pessoas da Oitante para lá. Permitiu ainda
a profissionalização da venda de imóveis e NPL, e houve um alinhamento de interesses importante. Foi também a forma que encontrámos para que houvesse um business plan e cumprimento de metas nesta área. E há penalidades se não houver cumprimento de metas, portanto todos estão muito concentrados em cumpri-las.
Já estão em velocidade de cruzeiro?
A velocidade de cruzeiro é sempre difícil porque está limitada pela venda de ativos. Sem essa venda, a Oitante precisaria do seu acionista e, numa segunda linha, do contribuinte, e não é esse o objetivo. De todo!
É precisamente o contrário. Mas acho que a forma como tudo aconteceu e o trabalho dos últimos dois anos tornaram possível que isso não aconteça.
Qual foi a sua maior aprendizagem?
A experiência ao nível de um CA, ao nível mais executivo, com pessoas que não são escolhidas por mim. E conseguir direcionar uma equipa para um objetivo que é definido é claramente uma experiência muito enriquecedora e interessante. Talvez essa tenha sido a experiência mais marcante. Tal como gerir todos os stakeholders.