A viagem começou atribulada, com a chuva a trocar-nos as voltas e a obrigar a um atraso à chegada da fábrica (de 20 mil metros quadrados), que é hoje a é casa da Abyss & Habidecor, a marca que produz aquelas que já foram consideradas as melhores toalhas do mundo pelo Wall Street Journal – e que continua a conquistar a elite mundial. Fomos recebidos, apesar do atraso, com um sorriso rasgado. “Agora já aqui estão. Por favor, relaxem e aproveitem a visita”, atirou Pierre de Lemos, filho do fundador e presidente-executivo da empresa, Celso de Lemos. Mas não sem antes distribuir abraços, beijinhos e sorrisos, e em jeito de brincadeira lamentar o facto de ainda vivermos em Lisboa, “tão perto da confusão”.
A chegada fora de horas obrigou a uma alteração do programa inicialmente previsto e seguimos diretamente para o show room, que faz as delícias de todos os que têm o privilégio de visitar as instalações desta empresa, que fatura mais de 15 milhões de euros por ano e reportou em 2017 lucros de mais de um milhão. É entre tapetes de casa de banho, camas – desenhadas e esculpidas por Paulo Neves – cheias de cobertas e almofadas, e toalhas de banho, de seis dezenas de cores diferentes, que descobrimos todo o trabalho a que se tem dedicado a empresa familiar com 40 anos de existência. “Todos os anos temos 60 cores em catálogo. Umas ficam de uns anos para os outros, porque há cores que temos de manter – é o caso do branco ou do creme –, mas tentamos que haja sempre novas”, explica Fernando Aires, o administrador da empresa, enquanto nos mostra uma toalha azul-petróleo, aponta outra num laranja vivo ou realça uma amarela. Fernando, que desde o início partilha decisões com o cunhado Celso, conhece esta fábrica e quem nela trabalha como as palmas das suas mãos. “Exportamos, atualmente, 98% de tudo o que produzimos, aqui e na Ginado”, refere. A Ginado é a empresa onde são produzidas as toalhas de banho vendidas sob a marca Abyss (a Habidecor fica para os tapetes), cuja fábrica é em Tondela. “Queríamos que a fábrica fosse aqui, mas deram-nos umas condições irrecusáveis em Tondela”, justifica. Seja como for, é na zona industrial do Mundão, em Viseu, que todas as toalhas são acabadas, rematadas, tingidas e verificadas antes de serem expedidas. Mãos ágeis – veremos mais tarde – cortam fios soltos, retiram falhas, rematam pontos e cosem etiquetas.
A fraca luz que entra pelos janelões do espaço transformado em exposição, consequência do dia cinzento lá fora, deixa ver o brilho ligeiro da roupa de cama em exposição. “É a nossa linha Celso de Lemos”, explica Fernando antes de revelar que esta vem sendo trabalhada há dez anos, mas finalmente parece ter chegado ao apogeu. “Depois vamos ver os teares, nos quais fazemos os lençóis e as cobertas. São uma maravilha”, garante. “Mas agora vamos almoçar”, pede, antes de revelar que em Portugal só há dois lugares onde é possível comprar os produtos Abyss & Habidecor: a Paris em Lisboa, no Chiado, e o El Corte Inglés.
Aqui o tempo parece mesmo andar mais devagar, mas os horários são para cumprir, portanto seguimos caminho. No refeitório da fábrica juntam-se todos os dias cerca de 80 pessoas, metade de todo o pessoal que ali trabalha, para partilhar a hora de almoço. A empresa garante refeições completas aos funcionários, por 2,50 euros – o mesmo que é pago a título de subsídio de refeição. Hoje há massada de peixe e entrecosto, além de sopa, salada, fruta ou um doce para a sobremesa, sumos, águas e café. Ocupamos uma das mesas sob os olhares curiosos e sorridentes dos trabalhadores da Habidecor. Aqui, é raro alguém abandonar a empresa antes de se reformar. “Damos muito boas condições”, revela o administrador entre duas garfadas. “Estas pessoas é que fazem tudo acontecer. Temos de lhes retribuir”, adianta antes de explicar que praticamente todos os anos há distribuição de bónus pelos funcionários, que podem também usar o court de ténis que vemos da janela. “Ah, o Celso gosta muito de jogar. Eu também gostava, mas agora já não consigo. Há ainda muita malta a jogar à sexta-feira.” Ao lado há uma piscina interior onde há aulas de hidroginástica semanais – e que pode ser utilizada pelos funcionários e pelas respetivas famílias durante os fins de semana. Há também uma sala onde os mais pequenos podem esperar pelos pais, depois da escola, com espaço suficiente para brincar, fazer desenhos ou correr à vontade. Um médico de clínica geral está disponível, duas vezes por semana, para todos os que precisarem, nas instalações da fábrica. “É o mínimo”, repete Fernando. A meio da nossa conversa, Pierre chega ao refeitório e senta-se, alegremente, numa mesa cheia de funcionários. Brinca com um, sorri para o outro, e fala com todos alegremente. Faz exatamente o mesmo que o pai – “aqui somos todos família”, disse-nos Celso de Lemos, há cerca de três anos, numa das raras ocasiões em que aceitou trocar dois dedos de conversa com um jornalista.
Às 13h30 já todos se levantaram, guardaram os tabuleiros, tomaram café e estão de volta aos seus postos na fábrica. Agora é Hélder Fernandes, responsável de produção, quem guia a EXAME nesta viagem ao mundo dos têxteis. Depois de uma visita rápida às oficinas – onde há eletricistas, torneiros-mecânicos e serralheiros –, entramos pela zona de lavagem e secagem de peças. “Não devíamos estar a começar por aqui, mas pronto… hoje fazemos ao contrário”, diz bem-disposto. Ao fim de 31 anos, não há recanto na fábrica que não conheça ou processo que não domine. “Garanto-lhe que sei fazer um tapete, do início ao fim.” Ao longo das mais de duas horas em que esteve com a EXAME atendeu o telefone dezenas de vezes, respondeu a perguntas em quase todas as secções, e tomou decisões em outras tantas. Sempre de caderno pautado debaixo do braço, olho de lince e sorriso no rosto.
Rapidamente se percebe que toalhas e tapetes podem ser tingidos em fio ou em peça; que os tapetes podem ser feitos em máquinas de seis ou de 24 fios – “por isso são considerados feitos à mão, porque apesar de haver máquinas de costura, não são industriais” – e que podem ser precisos vários dias para se fazer cada unidade. Paula Sampaio, por exemplo, está neste momento a fazer o rebordo de um tapete, numa máquina de seis: produz 4 metros quadrados por hora. Mais à frente, Alcina faz os acabamentos dos tapetes que Paula trabalhou. “Habidecor for Bloomingdale’s”, lê-se na etiqueta. Nem sequer precisamos de fazer a pergunta para ter resposta pronta. “Queriam que fizéssemos os têxteis para a marca deles, mas a administração não foi nisso de perder o nome”, explica o nosso guia com visível orgulho. A famosa casa norte-americana é uma das mais antigas clientes da Habidecor, que tem nos EUA o seu principal mercado: é para ali que segue 40% da produção. A Europa recebe outros 40% e os restantes 20% vão para o resto do mundo – sobretudo para o Médio Oriente.
As máquinas de lavar e de secar trabalham ininterruptamente, seja com peças branqueadas seja com produtos já tingidos. Aqui não há quantidades mínimas de produção e qualquer pedido pode ser feito à medida. Todas as peças são idealizadas por duas designers belgas, que continuam a trabalhar e a viver naquele país e que estão “na empresa desde sempre”. O processo de produção é cuidadosamente escrutinado, e todos os lotes são alvo de testes aleatórios para que não haja falhas. “Um produto desta qualidade não pode ter queixas. E não temos. O número de reclamações é residual”, confidencia Hélder.
A Abyss & Habidecor tem no seu portefólio clientes como os hotéis Grand Hyatt, em Hong Kong, ou o Burj Al Arab, no Dubai. Há rumores de que já terá fornecido também a Casa Branca, a família real inglesa e Cristiano Ronaldo, mas todos na empresa respondem apenas com um sorriso enigmático a estas perguntas. Afinal, o segredo continua a ser a alma do negócio e Fernando diz e repete: a empresa não tem contacto direto com o consumidor final. Vende sobretudo a boutiques e essas sim têm uma clientela fiel que há muitos anos escolhe os produtos nacionais.
O que distingue a Abyss & Habidecor é, garantem, a qualidade muito acima da média. Todas as peças são executadas em algodão egípcio da melhor qualidade, cujo fio é trabalhado na própria fábrica e que pode ser também transformado em algodão caxemira ou em algodão seda. E mesmo os tapetes industriais – a Habidecor faz alguns – só usam as melhores matérias-primas. “Podíamos fazer isto por muito menos dinheiro, mas queremos ser os melhores do mundo. Os melhores de Portugal somos”, garantia-nos Fernando horas antes. O administrador da empesa revela que foi sempre esse o objetivo de Celso de Lemos: fazer melhor, ser o melhor, conquistar os melhores. “Nós não podemos competir em quantidade”, atira, “mas em qualidade podemos ganhar” remata.
Os espaços mais impressionantes ficaram para o fim: as salas dos teares. Na primeira, onde há dois tapetes a surgir em simultâneo diante dos nossos olhos, está um impressionante tear alimentado por 4 mil bobinas de fio. Quando é necessário alterar os desenhos, são precisas seis pessoas, a trabalhar durante um dia e meio, para trocar todas as bobinas. Aqui são feitos os tapetes considerados industriais, que têm pouco de manufatura. Na outra sala estão três teares: dois deles fazem lençóis lisos, e outro, com o dobro do tamanho, faz um impressionante lençol com motivos. “A diferença é que este pode fazer lençóis ou cobertas de cama do tamanho que quisermos, com um desenho único em toda a área.” O equipamento representou um investimento de 600 mil euros no ano passado.“Creio que só há três destes teares no mundo. Um deles é o nosso”, afirma com indisfarçável alegria. Trabalhar com clientes que exigem qualidade e exclusividade obriga a correr riscos deste tipo para não os perder, e a Abyss & Habidecor tem pouco medo de o fazer. Arriscou quando aumentou a fábrica para os atuais 20 mil metros quadrados – começou com 2 mil –, quando passou a fazer toalhas, quando apostou na roupa de cama, por exemplo. Uma linha de têxteis de mesa está também na mira.
Quinta de Lemos à mesa
Se Celso de Lemos pensa rápido, mais depressa executa. Quando entramos no restaurante Mesa de Lemos, cuja cozinha está sob a batuta do chef Diogo Rocha, é fácil perceber que todos os têxteis são Abyss & Habidecor. O projeto também pertence à família e está inserido na Quinta de Lemos, a propriedade que Celso comprou em 1997 na zona de Silgueiros. Queria regressar às origens, depois de muitos anos a viver na Bélgica, onde estudou Engenharia Têxtil e onde conheceu Paulette, com quem se casou pouco depois de terminar o curso. E, se não fosse por ela, possivelmente já estaria de novo a viver em Portugal, garantem os familiares com quem nos cruzámos. Certo é que os cinco hectares que comprou há 20 anos se transformaram em 50, que albergam, além da casa que construiu para si, uma adega, uma vinha e um edifício que um dia até pode vir a ser um hotel, mas hoje é uma exclusiva casa de hóspedes com três suítes – há outras três em construção –, uma piscina interior, diversos terraços e o restaurante, que é a única zona do edifício aberta ao público. A Quinta de Lemos nasceu no meio das serras da Estrela, Caramulo, Buçaco e Nave, e os janelões à volta dão-lhe uma vista privilegiada, na qual se entrecruzam as serras, os 25 hectares de vinha, as mil oliveiras – a partir das quais já se produz o azeite da quinta – e o court de ténis.
O edifício principal da Quinta, projetado por Carvalho Araújo, é um verdadeiro catálogo dos produtos desta empresa familiar que, além dos têxteis, coloca todos os anos no mercado cerca de 100 mil garrafas de vinho com o selo Quinta de Lemos. Todos os lençóis, toalhas, cobertas, almofadas, toalhas de mesa, guardanapos são Abyss & Habidecor. Muitos dos legumes servidos no Mesa são de produção própria, tal como o azeite, que só é comercializado ali, e os vinhos da carta são todos, sem exceção, da empresa familiar. E são uma verdadeira surpresa. “Como em tudo, o senhor Celso quis ser o melhor”, reitera à EXAME Hugo Chaves, o enólogo que assina os vinhos desde o primeiro ano e que durante cinco esteve a fazer estágios por todo o mundo. Aqui só se usam castas da região e multiplicam-se os tintos com Alfrocheiro, Tinta Roriz e Touriga Nacional – monovarietais ou blends.
Estes últimos recebem o nome das mulheres da família. O único branco, Dona Paulette, é um surpreendente Encruzado de homenagem à mulher de Celso. “Basicamente, atiramos fora 75% das uvas, ainda em verde, para garantir que os restantes 25% são constituídos pelas melhores uvas e que recebem toda a intensidade, todas as qualidades que queremos ter presentes no vinho”, explica Hugo, enquanto fazemos uma visita à adega, incrivelmente limpa, depois de uma vindima um pouco mais tardia que a de outros anos.
O investimento de cerca de 5 milhões de euros na adega familiar vai tardar a ser recuperado, sobretudo porque não está previsto um aumento de produção. Os vinhos querem-se a crescer, passo a passo, como aconteceu com os têxteis. Daí que todos os vinhos estagiem entre 12 e 18 meses em barrica de carvalho francês, e descansem cinco anos em garrafa antes de serem colocados no mercado. O tinto que homenageia a mãe do fundador da Habidecor, Dona Georgina, tem ganhado reconhecimento internacional e já figurou na lista dos melhores do mundo.
Ainda o Sol não se pôs e passa Diogo Rocha, o chef que se apressa em chegar ao restaurante, que só abre entre quarta-feira e domingo. Está a apresentar a nova carta de outono, e é inegável a ligação que existe entre vinhos e produtos regionais. A cozinha é de sabores simples mas de técnica apurada, e o chef apressa-se a explicar que muitos dos pratos querem resgatar memórias da sua infância, uma espécie de comida de conforto que alia os melhores ingredientes às melhores sensações. O Mesa de Lemos nasceu porque Celso acredita que é à mesa – sobretudo à portuguesa – que se fazem bons negócios, e é ali que recebe clientes e amigos, mostrando o que de melhor se faz em Portugal, mas, acima de tudo, o que de melhor consegue fazer. Família pouco dada a elogios, gostam de reiterar que o “dinheiro não é tudo na vida” e que se esta não for feita de experiências, de boas experiências, de pouco vale. As vendas aumentam “porque temos qualidade”, as pessoas gostam de trabalhar na Habidecor ou na Quinta de Lemos “porque gostam do que fazem” e a empresa ganha mercado “porque se trabalha muito”. Para a família Lemos, fazer negócio é simples assim.