A ideia surgiu, primeiro, da Câmara Municipal de Cascais em jeito de festival gastronómico. Paulo Salvador e Rui Falcão trabalharam-na até chegar ao formato em que se estreou: a da primeira Wine Summit de Portugal, com a duração de três dias, no Centro de Congressos do Estoril.
“Por razões várias, tornou-se claro que não fazia sentido uma coisa de gastronomia, mas que uma de vinhos poderia fazer”, começa por dizer Paulo Salvador. “Mais do que uma vez já tínhamos pensado que o mundo do vinho de uma forma geral passava muito pouco tempo a refletir sobre o que pensa o setor”, esclarece à EXAME Rui Falcão. “Já há quem se preocupe com o enoturismo, com a produção, com as coisas todas técnicas, mas é tudo muito setorial. E às tantas estamos sempre a olhar para a árvore e não para a floresta. O que quisemos foi trazer a discussão para a floresta, não debatendo os temas de forma tão pormenorizada que acabasse por ser aborrecida – estamos a falar de um dos setores mais dinâmicos da economia nacional e mundial – e tentámos fazer algo que o resto do mundo não estivesse a fazer”. O crítico de vinhos costuma ser também um dos oradores da MUST – Fermenting Ideas, que conta com vários oradores internacionais e portugueses.
“Como sabes, Portugal é um País de feiras de vinhos e isso era tudo o que não queríamos fazer, porque ali não se analisa, não se debatem coisas”, atira Salvador. O jornalista explica que a ideia “era criar um fórum da indústria sobre ela própria. Este formato do MUST não existe em lugar nenhum do mundo. Não temos benchmark para isto. E isso é que fazia sentido criar, para nós. A nossa esperança é fazer, em Portugal, nestes anos, um fórum mundial da indústria. Em que não estamos a olhar apenas para um dos lados. Mal comparado, um Davos dos vinhos. Mas com as pessoas que realmente importam, relevantes. Porque se fizermos um debate apenas com personagens secundárias ou com público, não temos qualquer impacto. Isto é um debate de e para profissionais, para que possa ter consequências”.
No programa para 2019 contam já com nomes como Eric Asimov, crítico-chefe de vinhos do New York Times; Isabelle Legeron, master of wine e defensora dos vinhos naturais ou Gaia Gaja, da italiana Gaja Winery. A lista conta já com outras presenças confirmadas e continuará a crescer até um máximo de 17 oradores, explicam os organizadores. Desta forma, para além das palestras individuais que darão ao longo dos três dias que dura o evento, os oradores participarão ainda, no final de cada dia, numa mesa redonda em que debaterão um tema a ser divulgado oportunamente.
Tal como aconteceu nas últimas duas edições, o evento não será subordinado a um grande tema. “No primeiro ano fizemos um debate sobre as alterações climáticas, mas com um exemplo concreto: geralmente nós falamos das alterações climáticas como sendo algo dramático, e para algumas regiões é. Mas para outras, é uma benesse. Por exemplo, Inglaterra até há muito pouco tempo era um País que praticamente que não produzia vinho. Hoje apresenta-se como uma das grandes esperanças no futuro dos vinhos espumantes. Porque tem os mesmos solos que Champagne e hoje tem o clima que Champagne tinha há 30 anos. Foi assim que quisemos mostrar as preocupações do mundo do vinho: mostrando sempre uma perspetiva de que gostamos de ser diferentes”. Já em 2018 foi discutido, por exemplo, o papel da crítica clássica – com o advento de bloggers e influencers, qual é o papel dos jornalistas de vinho, por exemplo? “E também falámos sobre o que é um defeito no vinho, de enoturismo, do advento dos vinhos naturais..:”
No fundo, a ideia é ter um programa suficientemente flexível para acomodar o que estiver na agenda das preocupações do setor, da forma mais atual possível.
A iniciativa, cujo custo anual ronda os 300 mil euros – a primeira edição exigiu um investimento mais elevado, mas que os organizadores não quiseram revelar – é patrocinada pela Câmara Municipal de Cascais e pelo Turismo de Portugal, com o apoio de outras entidades, como as regiões de turismo, os produtores que marcam presença nos três dias de evento e outras empresas privadas. Os responsáveis do Turismo de Portugal e do Município de Cascais “perceberam que falar de vinhos é falar de enoturismo, de regiões… os oradores visitaram Portugal, visitaram regiões, aprenderam coisas sobre Portugal e é do interesse do Turismo que a marca Portugal se afirme”, adianta Falcão, justificando o interesse e participação do organismo público nesta iniciativa. Os dois organizadores, garantem, não têm qualquer remuneração associada e não há mais pessoas a trabalhar na equipa, durante o ano. Uma empresa de organização de eventos é quem faz toda a parte logística acontecer, quando a hora chegar.
Falcão e Salvador fazem o MUST porque, dizem, são apaixonados por vinhos e porque querem contribuir para uma discussão que acrescente, que “tenha consequências”, explicam entre duas garfadas e um brinde com vinho branco.
Portugueses não estão convencidos
À pergunta sobre se essas consequências já são visíveis, respondem quase em uníssono: sim! Nem que seja por ter conseguido trazer a Portugal “pessoas que nunca vieram e nunca viriam” ao País e que experimentaram vinhos e gastronomia locais, visitaram diversas regiões, publicaram nas suas colunas de opinião, redes sociais ou blogues. Quanto a outras consequências, é difícil de medir, sobretudo porque a grande fatia de participantes na MUST foram estrangeiros (66%), o que também tem deixado os dois promotores do evento com “mixed feelings, porque significa que há qualquer coisa que está a escapar aos portugueses”, lamenta Falcão que esclarece que na última edição houve mais de 500 participantes inscritos.
A EXAME falou com algumas pessoas do mundo dos vinhos – críticos, enólogos, gestores que já participaram ou não ao MUST – para tentar perceber a que se pode dever esta falta de adesão. Uma das razões apontadas por participantes e não participantes é o preço dos bilhetes. No primeiro ano, cada bilhete de 3 rondava os 600 euros. Em 2018 esse valor desceu para 300 euros (aos quais acresce IVA), mas ainda assim é um preço elevado para muitas empresas. Recorde-se que, no setor dos vinhos, a maior parte das companhias são de pequena e média dimensão, e um investimento desta monta não é tão fácil de conseguir. A juntar-se ao preço do bilhete, o facto de o evento ser durante três dias pode também afastar os portugueses, precisamente pelo facto de as empresas terem tão poucas pessoas que não é fácil haver ausências de tanto tempo.
Houve também quem referisse que hoje em dia é mais fácil ter acesso aos oradores que vêm ao Estoril, sem precisarem de o fazer cá, uma vez que os vários concursos internacionais e os eventos em que participam, sobretudo no estrangeiro, permitem esse networking. No entanto, todos foram unânimes no reconhecimento da importância de eventos deste género ajudarem a promover os vinhos nacionais e o País junto de estrangeiros, pelo que pedem que todo o mérito lhe seja reconhecido.
Já entre os que participaram no MUST e que falaram com a EXAME, a avaliação geral foi bastante positiva, com destaque para os oradores, par aa organização e para o facto de os debates serem alargados. À EXAME, e preferindo não ser identificados, explicaram que “sai sempre mais barato ir a um evento que traga oradores internacionais a Portugal do que ter que apanhar o avião para os ouvir. É uma forma de percebermos os desafios que nos esperam em mercados onde também competimos, porque o nosso mercado é o mundo”. Quanto ao preço dos bilhetes, os participantes admitiram que é um preço relativamente elevado, mas que o investimento vale a pena.
Falcão e Salvador acreditam que a ausência de participantes nacionais prende-se essencialmente com o facto de a “indústria portuguesa não valorizar o saber científico, o networking e a aprendizagem. O tom de crítica sobe quando falamos desta aparente falta de interesse por parte de produtores e especialistas do setor vitivinícola. “Talvez não se interessem também por ser um evento feito em Portugal e por portugueses…aquele clássico português”, atira Salvador, aproveitando para lembrar que em ambas as edições foram feiras parcerias com Universidades que tenham o curso de Enologia e Escolas de Hotelaria para permitir a participação de alunos e docentes por um preço simbólico (40 euros/três dias) e que a adesão foi muito reduzida. Falcão acrescenta que não havendo outra iniciativa parecida no País, “as pessoas não têm noção do que é este evento. Acho que há uma certa dificuldade em entender. Há uma questão cultural indiscutível, que é o facto de ser feito em Portugal e por portugueses. Se isto fosse em Londres, as pessoas estariam presentes…” deixa em jeito de provocação.
Certo é que as diligências para a terceira edição da MUST – Fermenting Ideas já estão em marcha, com data e hora marcadas, oradores confirmados e o programa a ser fechado. Entre os dias 26 e 28 de junho o Centro de Congressos do Estoril estará pronto para receber quem se quiser juntar àquilo que Rui Falcão já chama de um “think tank da indústria”. Todas as sessões são exclusivamente em inglês – não há tradução simultânea, uma vez que os promotores acreditam que ela prejudica a espontaneidade dos intervenientes – e os bilhetes já estão à venda no site da MUST. Os sunset do evento continuarão a ter lugar privilegiado no Forte da Cruz, para que os vinhos nacionais possam saber ainda melhor a quem nunca teve oportunidade de os experimentar.