Primeiro é o barulho ensurdecedor. Assim que se abre a porta que separa a fábrica do resto das instalações, o ruído de latas vazias e cheias a chocarem quase nos faz desistir. Junta-se o odor a peixe fresco e, de repente, imergimos no universo da indústria conserveira. Ao fim de cinco minutos já nada disto nos incomoda, e fixamos os olhos nos milhares de latas que, com ou sem rótulo vão passando pelos nossos olhos: em média, saem deste complexo 45 milhões de latas de conserva por ano, que a Ramirez leva um pouco para todo o mundo. Os movimentos dos trabalhadores, cadenciados e rítmicos, são quase hipnóticos. E nem sequer precisam de parar enquanto falam com a EXAME – há objetivos para ser cumpridos de hora a hora e já está tudo tão interiorizado que os movimentos quase parecem ser involuntários de tão naturais.
Na fábrica “hiperverde” que Manuel Guerreiro Ramirez e os seus filhos inauguraram em 2015, trabalham atualmente cerca de 200 pessoas, divididas entre produção, manutenção, embalamento e controlo alimentar. E, claro, nos departamentos administrativos e na loja, que hoje ocupa o primeiro piso, partilhado com o Auditório Fernando Machado, em honra a um dos mais antigos funcionários da empresa. A singularidade?
O complexo, situado num espaço de 40 mil metros quadrados, com cerca de 23 mil a uso, tem a forma de lata de sardinha em conserva. Tal como o auditório. E os escritórios. “É giro, não é?”, pergunta retoricamente o patriarca da família Ramirez, quarta geração à frente dos destinos de uma companhia que faturou 31,4 milhões de euros em 2016 e que pretende continuar a crescer. “Isto é uma grande família. É o nosso ganha-pão. É isso. Viu aquela frase no refeitório? ‘Deus é amor – dai-nos o pão nosso de cada dia’? É isto. Isto é o ganha-pão de todos nós. O meu e o deles. É assim que eu vejo a firma”, continua o presidente do conselho de administração, que, aos 76 anos, já soma mais de 50 ao leme da empresa fundada pelo bisavô, Sebastien Ramirez, então em Vila Real de Santo António. Hoje tem ao seu lado o filho mais novo, também ele Manuel, que garante a parte mais executiva “e as viagens quase todas”, conta-nos com um sorriso. As exportações são parte relevante da atividade da conserveira, que detém o título de mais antiga do mundo a laborar atualmente. “Tentamos chegar, pelo menos, aos 50% de exportação, mas já tivemos anos em que ultrapassámos os 70%”, congratula-se o gestor, que gosta pouco de falar das dificuldades pelas quais passou a companhia, preferindo focar-se nos processos de inovação da atividade.
Fala com orgulho do lançamento do primeiro galeão sardinheiro a vapor português, pelas mãos do avô Manuel, e da visão global do pai, Emílio, que decide passar a unidade principal da Ramirez para Matosinhos, nos anos 1940, para fazer face ao marasmo pesqueiro que se vivia a sul – no entanto, é lá que continua durante vários anos a produzir as conservas de atum e cavala, por exemplo. O porto de Leixões abria várias possibilidades em termos de exportação, e Emílio teve poucas dúvidas sobre a deslocalização da atividade. Manuel, que aos 15 anos já enviava telegramas aos clientes com a oferta de produtos, garante que foi a visão global e profissionalizada do pai que permitiu à Ramirez continuar na linha da frente da indústria. “Sempre pensámos one step ahead e é essa ainda hoje a minha preocupação.” Daí que seja praticamente uma exigência que todos os descendentes da família passem uma temporada no estrangeiro. “O meu bisavô foi o único que não foi para fora, mas trouxe uma mademoiselle e uma fräulein como professoras”, revela, referindo-se às professoras francesa e alemã trazidas pela família para Portugal. “Já havia a visão de que era preciso conhecer o melhor que se fazia no mundo” para poder fazer mais e melhor. Manuel Guerreiro Ramirez estudou na Alemanha e garante que “o software alemão” o ajuda no planeamento e na estratégia. Foi pela sua mão que a Ramirez criou, em conjunto com a germânica Baader de Lübeck, a primeira máquina de descabeçar e eviscerar sardinhas, nos anos 1960. E pertence a si, também, a conceção da primeira lata de conservas de abertura fácil, por desafio de um “importante cliente inglês”, e a introdução da refrigeração na indústria, pouco antes do 25 de Abril de 1974, que permitiu que se pudesse trabalhar oito horas por dia, cinco dias por semana, ao invés de apenas quando havia peixe fresco. “Sempre gostei muito de inovação”, atira ainda o empresário, de olhos postos no horizonte.
Binómio homem/máquina
A mais recente fábrica da Ramirez tem capacidade para produzir tanto quanto as antigas fábricas de Peniche e de Leça da Palmeira juntas, mas com menores custos e mais eficiência. Aqui há painéis fotovoltaicos, captação de energia através de painéis solares térmicos, aproveitamento total de águas pluviais, aproveitamento da água do nível freático e até uma caldeira de biomassa – “estamos à espera que o País não arda e que mandem para cá biomassa, mas parece que não estão interessados nisso”, atira o responsável em jeito de provocação. Há pouco mais de uma década, a Ramirez instalou uma linha de embalagem robotizada e um dispositivo de visão artificial para controlo de qualidade. “Essa quarta revolução de que falam hoje já nós a fizemos em 2006”, reitera.
“E sem dispensar ninguém”, nota enquanto explica como realocou os funcionários noutras funções e ainda aumentou o número de colaboradores. “As máquinas só nos fazem ser mais eficientes, não tiram trabalho a ninguém”, garante.
A família de Helena Papa parece ser exemplo disso: além dela, que conta com mais de 30 anos de casa, a irmã, os dois filhos e o genro também já fazem parte da empresa. São uma das 15 famílias que trabalham na Ramirez, e são a mais numerosa. “Os meus filhos foram criados aqui na creche”, diz, orgulhosa e de sorriso aberto, sem parar de arranjar filetes de sardinha que fazem parte da gama premium da marca. Enche entre 35 a 70 latas por hora, sejam de sardinha, cavala ou carapau. Todo o peixe mais delicado é arranjado por mãos experientes, de forma a garantir a integridade do produto. Nas várias linhas de produção, os movimentos são repetidos, cíclicos e só entrecortados pelos movimentos de carrinhos cheios de tabuleiros a passar para o forno ou dos coordenadores de serviço a garantir que tudo está na devida ordem. Pelas janelas, a norte, a luz de um dia cinzento dá alguma leveza ao ambiente; a sul, grandes vidraças permitem ver os laboratórios de controlo de qualidade onde tudo é testado. Manuel sublinha que, apesar de a Ramirez não ser líder de mercado com todos os produtos em Portugal, e de apenas garantir a liderança das vendas na Bélgica, “tem, certamente, o prémio da marca com melhor qualidade”. Sinal disso, justifica, são as várias certificações internacionais que lhe permitem exportar para 45 países de todos os continentes. Só em 2017 a Ramirez recebeu 21 auditorias de distribuidores estrangeiros, o que obriga a uma atualização e a uma vigilância constantes de todos os processos.
Ativo valioso
O ruído das latas vai aumentando de volume enquanto nos aproximamos da zona onde está a ser arranjado o bacalhau que depois será enlatado em azeite e alho ou acompanhado com grão. Atrás, sardinhas previamente descabeçadas, evisceradas e lavadas estão rapidamente a ser enlatadas, também à mão, por colegas de décadas. Adelaide, Fátima e Glória são das mais divertidas, e não param de tagarelar enquanto recordam histórias mais ou menos antigas à EXAME. Há rumores de que a passagem para as novas instalações não foi fácil, sobretudo porque as pessoas se sentiram mais distantes umas das outras. Por outro lado, terá aumentado o número de encontros informais entre colaboradores, que se juntam aos vários momentos de convívio que a própria Ramirez costuma proporcionar anualmente, em jeito de festa. “Há uma parte aqui muito forte que é a equipa”, dir-nos-ia Manuel Guerreiro Ramirez depois de destacar a modernidade da empresa. “Temos um pessoal fantástico com quem dialogamos, conversamos e, se precisarmos de trabalhar mais – porque isto é uma indústria que trabalha com matéria-prima que está a nadar neste momento… –, trabalhamos”, nota. Atualmente, a média de anos de casa entre os trabalhadores da Ramirez ronda os 20 anos, um valor abaixo do que era há uns tempos, garante o presidente. O que significa, também, que está a haver rejuvenescimento dos quadros. Essa estabilidade de pessoal facilita o trabalho e dá segurança em tempos menos propícios ao desenvolvimento do negócio. As contas da empresa revelam que as exportações caíram entre 2013 e 2016, o que impactou os resultados, na mesma altura em que foi feito um investimento de 18 milhões de euros (com capitais próprios e recurso a fundos comunitários) nas novas instalações. Nada que preocupe a administração, que salienta que a Ramirez sempre fez “um entesouramento que permitiu estar à vontade financeiramente” e que tendo em conta os riscos inerentes a esta atividade, está segura. “Ainda na semana passada abri uma lata de sardinha que foi produzida há 23 anos. Estava excelente. Isto é um ativo muito valioso, não tenha dúvida. Melhor do que o ouro – pelo menos, posso comê-lo”, diz, meio a sério meio a brincar. Questionado sobre as atuais restrições à pesca da sardinha em Portugal, uma das principais contingências do negócio, Manuel mantém o tom otimista – se por um lado a Ramirez foi diversificando a oferta em termos de produto para fazer face às alterações na procura e ao estilo de vida cada vez mais apressado dos compradores, também o fez para restringir o risco de ficar sem pescado. E nota que já houve sinais de que a biomassa aumentou exponencialmente este ano, o que sinaliza que em breve a sardinha poderá estar novamente em níveis aceitáveis e a pesca voltar a ser o que era.
No entretanto, vai sendo utilizada a sardinha nacional previamente congelada ou então algum pescado vindo de países limítrofes, nomeadamente de Marrocos. “Mas a gente sabe que a nossa é melhor”, confidencia Adelaide, enquanto enche mais uma lata de sardinhas inteiras que se preparam para ir ao forno. Atualmente, o peixe é cozinhado já enlatado, de forma a garantir a sua melhor apresentação e mais aproveitamento – enlatá-lo depois de cozido faria com que muito se desfizesse e se perdesse no processo. A cozedura dura cerca de 40 minutos e só depois disso o peixe é temperado, de forma mecânica e automática: primeiro o molho (azeite, tomate, azeite e alho…), depois os eventuais complementos (grão, pimentos ou o que for), colocados de forma manual. As latas são então fechadas, lavadas numa solução de água e sabão, enxaguadas e esterilizadas. Depois, são cerca de dois dias em repouso para absorver os temperos, mais um controlo de qualidade e finalmente o processo de embalagem. A fábrica tem capacidade para armazenar cerca de três mil toneladas de peixe, e é com orgulho que Manuel Ramirez nos mostra aquilo a que chama, em tom de brincadeira, “a sala do vinho”, onde oito cubas armazenam os azeites e óleos necessários para a laboração ininterrupta da fábrica. É em passo vagaroso que fazemos o caminho de regresso ao piso dos escritórios: as histórias que nos vai contando são constantemente interrompidas pelos funcionários, que fazem questão de cumprimentar o dono da fábrica.
Antes de subir, uma passagem pela creche que fez “questão de manter. Está a ver aqueles berços de ferro? São ainda os da fábrica original, de Vila Real de Santo António. Não é bom poder dar esta solução às pessoas?”, atira, como se fosse óbvio. Terminamos a conversa numa sala que em nada se parece com as modernas instalações que acabámos de conhecer. Aqui dentro, a madeira escura contrasta com as paredes brancas e a mobília nitidamente antiga faz com que pareça que entrámos numa cápsula do tempo. Os expositores com exemplares das 55 referências atuais comercializadas através das 14 marcas que a Ramirez detém para vários países dão alguma cor às paredes, onde abundam os quadros com fotografias a preto e branco. “Esta sala é igual à de reuniões que tínhamos na nossa primeira fábrica”, explica Manuel Ramirez antes de pedir que chamem o filho, Manuel, que temos visto a passar de um lado para o outro dos escritórios, entre telefonemas e papéis que lhe chegam às mãos. É ele que personifica a quinta geração da Ramirez, aquela que já hoje traça o futuro de uma companhia que Manuel pai espera que ainda tenha mais uns 165 anos pela frente. “Mas ele é da era das comunicações, é outra geração”, diz o patriarca, com um brilho orgulhoso no olhar. Manuel filho entra em passo apressado – “vamos fazer uma fotografia os dois, não é?”, pergunta, de sorriso aberto entre dois telefonemas e mais uns sms. Pai e filho chegaram de Lyon na véspera da visita da EXAME. Foram visitar a Berthe, uma empresa que compraram recentemente e com a qual já trabalhavam há vários anos. Preparam-se para lançar mais sete referências da marca, e sabem que terão boa aceitação no mercado. Quanto ao futuro da empresa a longo prazo, “só Deus sabe”, remata o patriarca da Ramirez, sublinhando apenas que “Deus ajuda a quem se ajuda, portanto, é preciso é trabalhar”.